O presente artigo tem como objetivo principal mostrar a prática do Acompanhamento Terapêutico com uma paciente que apresenta graves problemas de memória e a resistência de sua família quanto a esta modalidade de tratamento. Muitos são os trabalhos expostos sobre a prática do AT em pacientes com transtornos psiquiátricos e, neste trabalho, pretendo demonstrar como o trabalho do AT também pode ser realizado com pacientes sem qualquer transtorno, porém com grande sofrimento psíquico tanto do mesmo quanto de sua família.
Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico; Aspectos neurológicos; Resistência familiar
O Acompanhamento Terapêutico de uma paciente com problemas de memória: as dificuldades com a resistência familiar
Introdução
O Acompanhamento Terapêutico (AT) presta um atendimento psicológico diferenciado, sendo uma prática de circulação com pacientes em diversos espaços, sem um local fixo para sua ocorrência. Seus objetivos podem ser os mais variados e dependem da demanda que cada paciente apresenta. Contudo, independentemente dos aspectos singulares que cada caso demanda, uma finalidade desta prática abrangente a todos os paciente é a reintegração do indivíduo no meio social em que foi privado devido a alguma situação.
O presente artigo discorrerá sobre a prática de Acompanhamento Terapêutico realizado com uma paciente que apresenta graves problemas de memória. A memória é uma faculdade cognitiva extremamente importante para os indivíduos, visto que ela forma a base para a aprendizagem. Portanto, serão expostas aqui as dificuldades de se realizar este acompanhamento, no entanto, mostrando que ele é possível, com adaptação tanto do acompanhante quanto do acompanhado e de sua família. Veremos a grande dificuldade da família, principalmente da mãe, de lidar com as dificuldades da filha e aceitar a entrada de um acompanhante terapêutico na dinâmica familiar.
Vinheta Clínica
Roberta[1] tem 28 anos e há cinco sofreu um acidente grave de carro, resultando em traumatismo cranioencefálico que a deixou com um comprometimento grave na memória. Ela voltou a morar com os pais, Paulo e Carla, que viajavam bastante pelo Brasil naquela época. Roberta é a caçula entre três irmãos. Paula é a mais velha, está casada e tem uma filha de 4 anos e Carlos é o irmão do meio, também casado. Antes do acidente, Roberta cursava a universidade e morava com duas amigas. Ela tinha uma vida completamente independente e participava de competições de Tênis. Como todos os filhos já haviam saído de casa, Paulo e Carla viajavam muito pelo Brasil, visitando os parentes que moravam em estados diferentes e conhecendo lugares novos. No dia do acidente de Roberta, os pais estavam em uma destas viagens. As seqüelas do acidente de carro deixaram um comprometimento grave em sua memória, fazendo com que Roberta esqueça em questão de minutos o que estava falando, fazendo e onde está. Desta forma, Roberta não pode nunca ficar sozinha. Logo após sua recuperação, perdia-se dentro da própria casa e esquecia-se de várias pessoas de sua convivência diária. Teve de parar suas atividades cotidianas, como estudar e trabalhar e voltar a viver com os pais. A mãe de Roberta resolveu então, deixar de trabalhar para se dedicar integralmente ao tratamento da filha.
Um ano após o acidente, os pais resolveram a levar para um hospital de reabilitação de referência nacional para que pudesse ser feito um diagnóstico mais preciso do caso. Nesta época, Roberta chorava muito, principalmente quando não conseguia resolver alguma situação ou reconhecer e lembrar-se de algo. Após sua volta para casa, Roberta iniciou seu tratamento em uma clínica de reabilitação na sua cidade, onde era atendida por uma fonoaudióloga, um psiquiatra, um neurologista e uma psicóloga. A psicóloga que acompanhava Roberta fez a indicação de Acompanhamento Terapêutico para ela, para que ela voltasse a ter um convívio social fora da família, fosse a jantas com amigos, a festas e andasse pela cidade. No entanto, a família estava resistente quanto a esta modalidade de tratamento e vieram a procurar ajuda somente um ano após a indicação, por medo de que a filha fizesse atividades longe de seus olhos.
No primeiro encontro que tivemos, os pais de Roberta contaram sua história e pareceram se sentir muito culpados pelo que aconteceu com a filha. Carla refere que desde o acidente, os amigos se afastaram de Roberta e não a convidaram mais para as atividades, pois não sabem como lidar com a situação. Desta forma, ela não sai mais a jantas e festas e praticamente não tem mais um convívio social fora da família. Entre as atividades que realiza, Roberta faz dança, fonoaudióloga e participa de jogos de tênis adaptado, pois o acidente também lhe causou dificuldades motoras e visuais. Ao final do encontro, pergunto o que Roberta gosta de fazer, para planejarmos alguma atividade, mas ela não soube responder e pediu para que a mãe falasse, no entanto, ela fala somente o que a filha não gosta de fazer, que é ir ao cinema, pois esquece o filme e não o compreende. No decorrer dos encontros, percebi muita resistência da família quanto ao tratamento com uma acompanhante terapêutica, além de dificuldades da mãe em lidar com a filha. A resistência acontece com situações de boicote, onde a mãe desmarca nossos encontros algumas horas antes do marcado e dá explicações que não são cabíveis. Por exemplo, na segunda semana que iríamos nos encontrar, o tempo, que não estava bom, era a dificuldade. Havíamos marcado o encontro em um parque aberto, mas chovia e poderíamos marcar em outro local fechado, mas a mãe de Roberta não quis. Em outra semana, havíamos combinado de ir ao teatro, então Carla se prontificou a comprar os ingressos e, ao ligar naquela tarde para confirmar, ela relatou que não havia tido tempo para comprar e que Roberta estava jantando na casa de uma amiga nova e não conseguiria chegar a tempo. Em outra ocasião, duas horas antes do encontro, a mãe ligou e dizendo que confirmaria mais tarde se Roberta iria ao nosso encontro, pois não sabia se a aula de Tênis aconteceria naquele dia. Uma hora depois, Carla ligou e desmarcou, pois o treino foi confirmado. Após todos estes boicotes com o tratamento de Roberta, chamei Carla para conversar enquanto a filha fazia a aula de tênis. Perguntei-lhe o que estava achando do tratamento da filha comigo (enfatizei a palavra tratamento em diversos momentos, já que para ela não considerava meu trabalho desta forma) e ela respondeu que estava gostando, já que a filha estava saindo de casa. Coloquei então meu sentimento em relação ao andamento do trabalho. Expliquei que eu também realizava outras atividades na minha semana, mas que eu estudava e fazia planejamentos em casa sobre o tratamento de Roberta, e que este horário da semana marcado eram dela e ela não estava comparecendo, fazendo com que eu deixasse de realizar outras coisas. Expliquei novamente o que era o trabalho de um AT e expliquei que independente do não comparecimento, seria cobrado o tempo estipulado. Além disso, enfatizei que o trabalho comigo era parte do tratamento de Roberta e que assim como ela cumpria o horário na clínica de reabilitação, teria de cumprir comigo também, pois era importante para Roberta. Carla pediu desculpas e afirmou que após saber que seriam cobradas as horas combinadas, não faltaria mais. A partir deste momento, Carla realmente não desmarcou mais, mas o boicote continuou de outra forma: todas as ideias que eu colocava, que inclusive eram pensadas juntamente com a supervisora, ela não gostava. Carla não queria que a filha reorganizasse sua rotina, queria apenas que ela saísse de casa para “passear” com a acompanhante. Pensando neste aspecto, vimos o quanto era pesado para Carla ter que ficar o dia inteiro em função da filha, ter deixado o trabalho e toda sua vida de viagens pelo Brasil completamente independente dos filhos. Certa vez, Carla me perguntou na frente de Roberta se a filha não era um “peso” para mim, pois ela esquecia as coisas rapidamente e falava repetidamente a mesma coisa. Em outra ocasião, no primeiro mês de pagamento, Carla disse novamente na frente da filha, “você está se saindo muito cara”, e então coloquei que este era um investimento na filha. Roberta ficou chateada com a mãe e concordou comigo “viu mãe, é um investimento para o meu bem”.
Estas são apenas algumas situações que ocorreram durante os atendimentos. O AT de Roberta ainda acontece e estou trabalhando no sentido de me vincular mais com a família para trazê-la mais para perto e ajudar Roberta.
Aspectos neurológicos
Durante o período em que ficou internada no hospital de reabilitação, Roberta realizou um relatório médico detalhado em que foram especificados seus maiores comprometimentos em razão do traumatismo craniano. Após três meses de uso de sonda nasoenteral, Roberta evoluiu com melhora progressiva do seu quadro neurológico. Porém, manteve-se com algumas queixas principais como hemianopsia (campo visual prejudicado), fala mais rápida e anasalada durante o discurso (o que compromete a sua inteligibilidade) e alteração cognitivo comportamental. No entanto, os maiores comprometimentos foram observados na memória, na orientação visuoespacial e no planejamento.
A memória é uma das funções neuropsicológicas mais complexas, que possibilita ao indivíduo remeter-se a experiências impressivas, auxiliando na comparação com experiências atuais e projetando-se nas prospecções e programas futuros (ABREU, 2010). A memória comporta processos pelos quais o indivíduo codifica, armazena e recupera informações. De acordo com Abreu (2010), A codificação refere-se ao processamento da informação que será armazenada. A armazenagem é o processo que envolve o fortalecimento das representações enquanto estão sendo registradas (Strauss, Sherman e Spreen, 2006 citados por Abreu, 2010) e a sua reconstrução ao longo da sua utilização e da entrada de novas informações. E, por fim, a recuperação é o processo de lembrança da informação anteriormente armazenada. Desta forma, Roberta apresenta um prejuízo neste processo, sendo que não consegue armazenar e recuperar as informações recebidas. A repetição por um longo período é a única forma de benefício que ela apresenta. Como exemplo, podemos citar quando nos conhecemos, onde por algumas semanas ela não lembrava meu nome, mas com uma foto nossa ao lado de sua cama e com meu nome escrito na frente, algum tempo depois ela pôde recordar.
Existem diferentes categorias de memórias (CARDOSO, 2011): A memória ultra-rápida, onde a retenção não dura mais que alguns segundos; a memória de curto prazo, que dura minutos ou horas e serve para proporcionar a continuidade do nosso sentido do presente; e a memória de longo prazo, que estabelece engramas (traços duradouros), que pode durar dias, semanas ou anos.
A memória de curta duração tem sua capacidade limitada, englobando a análise da informação sensorial nas áreas cerebrais específicas e a sua produção imediata, com um tempo de permanência muito breve, de um a dois minutos (GIL, 2010).
A memória de longa duração é dividida entre explícita (ou memória declarativa), e implícita (ou memória não declarativa). A memória explícita se refere à capacidade do indivíduo armazenar e recordar conscientemente experiências prévias. Este sistema de memória envolve dois subsistemas (ABREU, 2010): memória episódica e memória semântica. A memória episódica permite resgatar eventos pessoais com rótulo temporal, como o nascimento de um filho ou uma viagem realizada. E a memória semântica abrange a memória do significado das palavras (CARDOSO, 2011).
Abreu (2010, p. 79) refere que o sistema de memória declarativa (explícita) acumula informação tanto do tipo espacial quanto temporal. Desta forma, o autor afirma que podemos observar pacientes com transtornos de memória associados a lesões traumáticas, por exemplo, apresentarem sintomas amnésicos iniciais de dificuldade de orientação e lembrança de informação espacial. Este é um aspecto que foi observado inicialmente na paciente, pois a família relata que logo após sua recuperação, ela tinha dificuldades de se localizar mesmo em casa, trocando os cômodos e muitas vezes batendo nas paredes por falta de orientação.
Já a memória não declarativa (implícita), diz respeito à habilidade para realizar algum ato ou comportamento que inicialmente exigia certo esforço consciente, mas que com o passar do tempo não requer resgate consciente ou intencional da experiência, ou seja, se torna automático (ABREU, 2010).
Para expandir o entendimento proporcionado pelas teorias propostas no século passado, Abreu (2010) propôs um novo tipo de memória, a memória prospectiva, que menciona a capacidade de lembrar-se de executar uma ação planejada para o futuro. Desta forma, ela requer que o indivíduo recorde tanto da natureza de um evento futuro, quanto da hora de sua ocorrência ou então, que se lembre do conteúdo a ser tratado em um evento futuro. O autor ainda refere que diversas funções cerebrais podem acabar comprometendo o desempenho da memória prospectiva, e como exemplo utiliza pacientes com traumatismo cranioencefálico, que podem desenvolver prejuízos na memória prospectiva tanto para intenção baseada no tempo quanto no evento. Esta é uma dificuldade bastante visível em Roberta. Durante nossos encontros, não posso planejar alguma atividade futura sem fazer com que ela escreva em sua agenda, pois certamente ela não lembrará na outra semana o que planejamos nem lembra o que fizemos na semana que passou.
Barbizet e Duizabo (1985) descrevem subtipos da amnésia orgânica, entre elas a amnésia axial, que descreve o quadro de Roberta. De acordo com os autores, uma das características desta amnésia é o esquecimento contínuo, caracterizado pela incapacidade de aprender dados novos que é quase total e em apenas alguns minutos o paciente esquece tudo o que acabou de dizer, de fazer ou de viver. Como exemplo, podemos citar o primeiro encontro realizado com Roberta, em que tiramos uma foto que iríamos revelar logo após, com a finalidade da paciente deixar ao lado de sua cama para lembrar-se da sua AT. No caminho para a loja, em questão de cinco minutos, Roberta perguntou por duas vezes onde estávamos indo, pois já não lembrava que havíamos tirado uma foto juntas.
Além da dificuldade permanente de memória de Roberta, ela também apresenta um quadro de agnosia. Agnosia significa incapacidade de reconhecer. É uma perturbação que se caracteriza pelo fato da pessoa ver e sentir os objetos, porém não consegue associá-los ao papel que usualmente eles desempenham nem à sua função (MSD, 2009). Dentre os diversos tipos de agnosias existentes (visual, espacial e táteis), Roberta apresenta maior dificuldade no que diz respeito à agnosia visual. Esta é caracterizada por uma abolição das sensações visuais e pode estar relacionada a objetos, a figuras, a cores e a fisionomias, sendo que estes déficits estão frequentemente associados entre si (GIL, 2010). Por exemplo, após o acidente, Roberta não consegue diferenciar um rato de um sapo, e sua fonoaudióloga lhe ajuda dando desenhos destes dois animais para que ela possa deixar ao lado de sua cama e olhar todos os dias, com o intuito de lembrar com a repetição. Além disso, Roberta troca algumas cores, não conseguindo diferenciá-las e esquecendo os nomes. A agnosia é causada por um defeito nos lobos parietais e temporais do cérebro, que armazena a memória dos usos e a importância dos objetos conhecidos (MSD, 2009).
Acompanhamento Terapêutico e as especificidades do caso Roberta
A prática do Acompanhamento Terapêutico é relativamente nova e tem uma demanda cada vez maior. O AT oferece um atendimento psicológico diferenciado e específico para determinado paciente, com a característica de não ter um setting fixo, realizando atividades das mais variadas nos mais variados locais.
Camargo (1991) considera que o trabalho do acompanhante terapêutico consiste em estar com o paciente em diferentes situações e contextos para, como um ego auxiliar, ajudá-lo a receber, identificar e responder aos diversos estímulos que possam se apresentar, em um clima em que se sintam seguros e incentivados para a abertura de novas vivências. A função de ego auxiliar significa funcionar como ponte entre o mundo interno e o mundo externo do paciente e o acompanhante terapêutico se torna um intérprete ativo, pois atua no mundo real, concreto e cotidiano do paciente.
Além da função de ego auxiliar, Silva (2001) acrescenta que o Acompanhamento Terapêutico é uma prática que tem como objetivo fazer com que o indivíduo que se encontra isolado do convívio social, seja capaz de aumentar sua participação na tomada de decisão perante a própria vida. Nesta busca de autonomia e cidadania, o AT irá se utilizar de intervenções que façam com que o paciente coloque em movimento sua força diante do existir.
De acordo com Mauer e Resnizky (1987), o AT precisa incluir-se no mundo do paciente, escutando-o sem medo, sem julgá-lo, sem se apressar em indicar se o que ele disse corresponde ou não à realidade e sem fazer qualquer interpretação. Além disso, deve situar-se a uma distância razoável para que possa pensar com autonomia.
As autoras argentinas Mauer e Resnizky (1987, p.40-43) definem claramente as funções do acompanhante terapêutico:
- Conter o paciente
- Oferecer-se como modelo de identificação
- Emprestar o “ego”
- Perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente
- Informar sobre o mundo objetivo do paciente
- Representar o terapeuta
- Atuar como agente ressocializador
- Servir como catalizador das relações familiares
Além das funções do acompanhante terapêutico com o paciente que as autoras citam, Eggers (1985) acrescenta que o AT também tem funções com a família do mesmo: fomentar novas formas de comportamento no grupo familiar; atuar na família baixando o nível de ansiedade; avaliar o paciente na família, no seu meio ambiente; e avaliar as condições que a família oferece para manter o paciente em seu meio.
No trabalho que realizado com Roberta, um dos principais objetivos iniciais foi “atuar como agente ressocializador”, pois após o acidente, ela deixou de realizar atividades fora do ambiente familiar. O que a paciente apenas realiza são suas aulas de Tênis e de dança, no entanto não tem amigos que possam sair com ela em uma festa, por exemplo, pois acabou afastando-se de todos. Neste sentido, o objetivo era fazer com que ela resgatasse esta vida social e pudesse interagir com outras pessoas e com os amigos do passado. Certa vez ela foi convidada para o aniversário de um colega do Tênis e ficou muito contente, pois não o via há alguns anos. Eu a acompanhei ao aniversário e percebi o quanto ela estava contente por rever os amigos de infância. Acredito que este dia tenha sido muito importante para ela, já que se sentia sozinha e fora de um grupo social com pessoas de sua idade.
No entanto, na medida em que os acompanhamentos foram acontecendo, percebi que este objetivo não era o único em meu trabalho. Roberta precisava retomar atividades cotidianas em que pudesse se sentir mais autônoma em sua vida e mais integrada nos momentos de encontro com os amigos. A mãe relata que após o acidente, a filha sente muita dificuldade para escolher a roupa que vai usar, sendo assim, a mãe é quem escolhe suas roupas, pois não tem paciência de esperá-la decidir. Desta forma, sugeri que fizéssemos uma organização em seu guarda-roupa, com códigos ou números nas prateleiras e também combinações de roupas que estivessem escritas em um caderno para que esta pudesse ter mais facilidade de se organizar. Além disso, apesar da dificuldade de olhar um filme até o final, seria importante que Roberta pudesse olhá-lo e escrever em um caderno a história para que mais tarde, quando necessário, conseguisse conversar com outras pessoas e interagir com assuntos diferentes. Porém a família não aceitou a ideia e expressou que seu interesse era que Roberta saísse de casa para conhecer lugares diferentes, que não achavam necessário ficar em casa com ela. Neste sentido, meu trabalho com Roberta e com a família acontece em passos pequenos, onde tenho que ter tolerância e compreender o quanto é difícil entrar na dinâmica familiar, visto que a mudança ainda é mal recebida nesta família. Sendo assim, na medida em que eu for fazendo uma vinculação mais forte com Roberta e sua família, terei que trazê-la para o tratamento e mostrar a importância de tê-la como aliada no tratamento da paciente.
Uma das dificuldades encontradas no decorrer do trabalho é a de que não estou integrada a nenhuma equipe psicoterapêutica que possa dar suporte. Mauer e Resnizky (1987) acreditam que o trabalho do AT não pode ocorrer de forma isolada. Este está sempre escrito no seio de uma equipe. É pertencendo a ela e tendo identificação com o referencial utilizado por eles que irá permitir perfilar o papel com clareza. No entanto, Pelliccioli, Guareschi e Bernardes (2007), trazem uma ideia oposta:
O AT não se trata somente de uma forma de auxiliar, de ajudante técnico de um determinado profissional de saúde, quer dizer, ele mesmo se coloca como um profissional e toma a frente dos tratamentos em questão.
Acredito que o AT possa trabalhar como um profissional independente de uma equipe terapêutica, porém também acredito que este trabalho se torna mais muito difícil. Quando iniciei o AT com Roberta, ela ainda era atendida em uma clínica de reabilitação, porém em razão de uma atrapalhação da mãe, que achou que a filha tinha recebido alta, mas na verdade havia apenas diminuído os dias, a mãe deixou de levá-la aos atendimentos e Roberta acabou perdendo o tratamento. Este fato ocorreu logo no inicio dos meus atendimentos a Roberta e, portanto, não pude me integrar na equipe para trabalhar em conjunto. Sendo assim, hoje tenho uma supervisora que me acompanha neste processo.
Apesar das dificuldades encontradas, eu e Roberta também realizamos atividades muito prazerosas, importantes para que ela possa ter uma vivência agradável e se sentir integrada com a realidade. Frequentar museus, exposições, livrarias e teatros parecem fazer bem a ela. Apesar da resistência da família, um grande avanço é que juntos estamos procurando algum curso, atividades ou mesmo trabalho voluntário que Roberta possa realizar. Mesmo que as opções na cidade ainda sejam muito escassas, há instituições que aceitam estas pessoas com o intuito de reintegrá-las a sociedade.
A grande parte do material sobre acompanhamento terapêutico publicado se refere ao tratamento de pessoas psicóticas ou com algum transtorno psiquiátrico. Entretanto, o AT não é realizado apenas com esta população e Belloc (1999) deixa claro que o acompanhamento terapêutico também pode ser utilizado enquanto clínica para tratar de outros casos, independente de a estrutura ser psicótica ou neurótica, mas onde se faça preciso outra integração possível, uma ressignificação.
Para finalizar, a atividade do AT é um recurso valioso entre as modalidades terapêuticas disponíveis e vem auxiliando tanto no atendimento a pacientes com patologias diversas, como na orientação à familiares, além de compor uma possibilidade terapêutica abrangente e enriquecedora para todos que necessitam dela.
Resistência familiar
Ao trabalhar como acompanhante terapêutico (AT) de um paciente é quase inevitável que não tenhamos contato também com a família do mesmo. O trabalho do AT normalmente se inicia em um momento de sofrimento intenso tanto para o paciente quanto para sua família. Por ser uma prática em que não há setting definido, ela pode ocorrer tanto em local público quanto em local privado, ou seja, a casa do paciente. Esta entrada do AT no contexto familiar sempre provoca grandes expectativas e tensões. Cerqueira (2003) menciona que a presença do AT faz surgir um movimento importante, ainda que ambíguo por parte da família do paciente: alívio da angústia vivia e dificuldades de aceitar um “terceiro” na dinâmica familiar. Mauer e Resnizky (1987, p.85) referem que:
Geralmente, no começo do tratamento, a família aceita com alívio a presença do AT, já que se sente impossibilitada de conter o paciente. À medida em que o processo terapêutico vai se desenvolvendo, e uma vez superada a crise, a família frequentemente começa a resistir ao tratamento e, portanto, também à presença do acompanhante.
No entanto, as autoras também enfatizam que além das conotações positivas que a família costuma ter no início do trabalho do AT, ele também é recebido como um intruso. Geralmente a família sente-se sendo examinada, espionada e invadida em seu ambiente natural. Para Cerqueira (2003), esta conotação de “estranho intruso” que é capaz de desvendar situações e papeis que o paciente ocupa na doença familiar está em nível inconsciente na família.
Como há sempre um contato com a família do paciente, Teixeira, Dename e Balduino (1991) surgiram com questões sobre como podemos nos integrar no contexto sócio-familiar de um indivíduo e ajudá-lo em seus problemas, sem nos envolvermos com as outras pessoas que também fazem parte deste contexto. As autoras, então, colocam que pela própria natureza do trabalho de acompanhamento terapêutico, não seria possível este distanciamento, visto que o objetivo básico de nossa prática visa a integração no cotidiano do paciente e, portanto, iremos ter contato com as pessoas que fazem parte de sua rede de relações. Desta forma, entendemos que o paciente nunca pode ser percebido como uma estrutura individual isolada, mas sim um membro dentro de uma estrutura familiar comprometida e que também precisa ser tratada.
Alex Sandro Tavares da Silva (2006) cita alguns processos que o acompanhante terapêutico encontra na sua prática clínica, com o foco voltado na relação com a dinâmica familiar do paciente acompanhado. Sendo assim, citarei aqui apenas alguns destes processos com os quais podemos nos deparar, que foram sentidos no decorrer do trabalho com Roberta e sua família:
- A família que direciona ao at uma “demanda de salvação”, depositando no profissional as últimas esperanças para o tratamento do paciente que durante anos passou por inúmeros profissionais.
- A família que toma o at como um intruso que irá levar para fora do “protegido lar” algo “feio”, e se fecha, não permitindo a entrada do profissional.
- A família que despeja sobre o at a responsabilidade por toda e qualquer forma de tratamento, não ajudando em nada e cobrando tudo.
- A família que contrata o at, mas faz de tudo para que a intervenção não ocorra, pois o tratamento que a mesma é incompetente para resolver os seus próprios problemas.
- A família que coloca sobre o at a responsabilidade de resolver todos os problemas da família, fazendo dele um “terapeuta familiar” que atende em domicílio.
É de extrema importância que o AT preste muita atenção a estes processos vividos não apenas com o paciente, mas também com sua família. Silva (2006) menciona que:
“Se a família do paciente não for considerada como elemento importante no processo clínico, a intervenção do acompanhante terapêutico poderá sofrer interferências (de forma abrupta), ou, no mínimo, sofrer sabotagens constantes, tornando inviável a sua continuidade, pelo menos com o objetivo de ser ético e terapêutico”.
De acordo com Cerqueira (2003), mesmo que desejemos, nem sempre é possível um distanciamento mínimo necessário para que o AT consiga exercer adequadamente o seu papel. Normalmente, a família projeta no AT as expectativas de desempenhar o papel que eles próprios não conseguem realizar e buscam nele um apoio para suas angústias e, frequentemente, tenta se apropriar do trabalho e da atenção do AT. Nestas situações, é muito importante que o AT preste atenção aos seus sentimentos contratransferências para não atuar-los em sua relação com o paciente e com sua família, de forma que os compreenda como elementos que são fundamentais para poder perceber a dinâmica das relações. Teixeira, Dename e Balduino (1991) acrescentam que a partir do momento que os vínculos entre o paciente e o AT vão se fortalecendo e se estabelece uma relação onde há confiança, cumplicidade e carinho, o acompanhante terapêutico tem a possibilidade de perceber contratransferencialmente os sentimentos do paciente e deve fazer desta percepção um instrumento para compreender melhor a relação entre o paciente e sua família.
A tarefa do AT com a família do paciente é intensa e delicada. Se por um lado ele tem que ganhar a confiança, mostrando ser uma pessoa capaz de compreender seus hábitos e códigos, por outro, terá que estabelecer muito bem sua integração à equipe terapêutica e sua identificação profunda com as regras de trabalho que pratica. Somente desta forma podem-se evitar mal entendimentos que possam vir a prejudicar o bom funcionamento do trabalho (Mauer e Resnizky, 1987).
Teixeira, Dename e Balduino (1991) acreditam que, para abrirmos caminho para uma interação de maior abertura e proximidade, precisamos compreender e aceitar os recursos e os limites que os familiares do nosso paciente possuem, trabalhando com o intuito de favorecer um relacionamento menos defensivo e mais flexível entre AT e família e entre paciente e família. Mauer e Resnizky (1987) ainda acrescentam que para cumprirmos nossa tarefa, é indispensável que o AT tolere e assimile as reações de descrédito, indiferença ou mesmo agressividade por parte da família. Compreender que estas reações se incluem no contexto global do tratamento evitará que esta situação se transforme em aborrecimento ou disputa pessoal, que possam “conduzi-lo a confrontos estéreis” (MAUER e RESNIZKY, 1987, p.87).
Por fim, compete ao acompanhante terapêutico compreender os sentimentos subjacentes às demandas familiares para que possamos elaborar as estratégias de atuação mais eficazes. Frequentemente as demandas que as famílias nos trazem demonstram que há medo e ansiedade em relação às mudanças que podemos gerar. Desta forma, nossa atuação precisa ser marcada por um misto de firmeza e flexibilidade que deixem claro os mecanismos mais saudáveis de relação.
Considerações finais
O presente artigo buscou trazer um pouco da minha prática como acompanhante terapêutico com uma paciente que apresenta dificuldades graves de memória. Casos como este são raros de se encontrar e, por este motivo, o trabalho realizado com a paciente se torna um tanto quanto peculiar. Adaptar-se a situações não comuns ao nosso cotidiano e ter em mente que iremos repetir e escutar diversas vezes a mesma fala em questão de minutos, são aspectos necessários para o bom andamento do trabalho do acompanhante terapêutico.
Nossos sentimentos em relação ao paciente, como aspectos constratransferenciais e identificação com a história – já que temos a mesma idade – são aspectos que precisam ser trabalhados internamente seja em supervisão, seja em psicoterapia, para que estes sentimentos não tomem conta de nós nem prejudiquem o tratamento da paciente. Além disso, é necessário buscar compreender os motivos que levam a família a resistir ao tratamento e a esta terceira pessoa que entrará nesta dinâmica e estará mais próxima do que qualquer outro profissional. Acredito que esta relação do acompanhante com a família constitui para o primeiro, um verdadeiro desafio e que para enfrentá-lo, este deverá fazer uso de toda sua perspicácia e serenidade. Aspectos contratransferenciais são quase impossíveis de não aparecerem em algum momento.
Neste caso específico, acredito que uma das maiores dificuldades da família em lidar com a filha seja pela falta de independência que esta voltou a ter. Os pais já haviam e superado o momento difícil que é ver os filhos saírem de casa – Síndrome do ninho vazio – e já haviam reorganizado sua rotina com viagens longas e passeios pelo Brasil, entretanto, têm que lidar mais uma vez com a dependência de um filho que perdeu sua autonomia. Ter que deixar uma carreira profissional e se dedicar completamente ao tratamento de um filho não devem ser uma tarefa fácil para ninguém. O luto, neste caso, é pela perda desta autonomia, pela perda de uma vida que em princípio, já estava encaminhada. Além disso, ter uma acompanhante terapêutica da mesma idade que a paciente, formada e independente, deve ser difícil para os pais não pensarem que este era o caminho a ser seguido pela filha caso não fosse este acontecimento do acidente.
Para finalizar este trabalho, acredito que no acompanhamento terapêutico da paciente alguns passos já foram dados e ainda há muitos passos para se dar. Estar consciente do seu objetivo e que seu contato com a família tem de ser “terapêutico”, sem que ele se torne o “terapeuta” dela, são aspectos importantes para que o trabalho continue evoluindo e para que se possa dar uma vida mais digna e com mais qualidade de vida para ela.
Referências
- ABREU, Neander. Memória. In: MALLOY-DINIZ, Leandro F.; FUENTES, Daniel; MATTOS, Paulo; ABREU, Neander (Col.). Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: ARTMED, 2010.
- BARBIZET, J.; DUIZABO, Ph. Manual de neuropsicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
- BELLOC, Márcio Mariath. Algumas reflexões sobre a clínica do acompanhamento terapêutico. In: PELLICCIOLI, Eduardo; CABRAL, Károl Veiga; BELLOC, Márcio Mariath; MITTMANN, Nauro (Orgs.). Cadernos de AT: uma clínica itinerante. Grupo de Acompanhamento Terapêutico Circulação, 1998.
- CAMARGO, Elisa Maria de Cavalcanti. O acompanhante terapêutico e a clínica. In: A CASA. Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia (Org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991.
- CARDOSO, Silvia Helena. Memória: o que é e como melhorá-la. Revista Mente e Cérebro. Disponível em <http://www.cerebromente.org.br/n01/memo/memoria.htm>. Acesso em 14 jul. 2011.
- CERQUEIRA, Áurea Chagas. Acompanhamento Terapêutico: um olhar sobre a família. Disponível em https://siteat.net/aurea/. Acesso em 15 jul. 2011.
- EGGERS, José Carlos. O Acompanhamento Terapêutico: Um recurso técnico em psicoterapia de pacientes críticos. In: Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. n. 7, Porto Alegre, jan/fev, p.5-10, 1985.
- GIL, Roger. Neuropsicologia. São Paulo: Santos, 2010.
- MAUER, Susana Kuras; RESNIZKY, Silvia. Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos. Campinas, SP: Papirus, 1987.
- MSD. Manual Merck. Biblioteca Médica Online. Portugal, 2009. Disponível em <http://www.manualmerck.net/?id=101&cn=927>. Acesso em 25 jul. 2011.
- PELLICCIOLI, Eduardo Cavalheiro; GUARESCHI, Neuza; BERNARDES, Anita Guazzelli. O trabalhador da saúde mental na rede pública: o acompanhamento terapêutico na rede pública. Disponível em http://siteat.wordpress.com/. Acesso em 16 jul. 2011.
- SILVA, Alex Sandro Tavares. Acompanhamento terapêutico e a família do paciente. Disponível em https://siteat.net/alex-6/. Acesso em 15 jul. 2011.
- SILVA, Alex Sandro Tavares. Reflexões sobre a clínica do Acompanhamento Terapêutico. Disponível em https://siteat.net. Acesso em 15 jul. 2001.
- STRAUSS, E.; SHERMAN, E.M.S.; SPREEN, O. A compendium of neuropsychological tests: administration, norms and commentary. New York: Oxford University, 2006)
- TEIXEIRA, Ana Paula A.; DENAME, Débora; BALDUINO, Rita de Cássia. O Acompanhamento Terapêutico e um enfoque humanista das relações familiares. In: A CASA. Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia (Org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991.
Nota:
[1] Por questões éticas e de sigilo, todos os nomes aqui citados são fictícios.
Autora: Gabriela Moyses Kilian – Psicóloga formada pela PUCRS e no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. Fone: (51) 9112-2914. Linkedin. E-mail: [email protected]