Autora:
- Roberta Wanderley Kehdy – Psicóloga, Especialista em Psicologia da Saúde pela UNIFESP, aluna do 3º ano do Curso de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTAE e Acompanhante Terapêutica da Equipe Composição de Acompanhamento Terapêutico.
Introdução
O Acompanhamento Terapêutico (AT) é um recurso clínico destinado a crianças, adolescentes, adultos e idosos que em um dado momento de sua vida apresentam dificuldades de manter sua circulação social, atividades cotidianas e sua rede de relações com o mundo. A prática do acompanhamento Terapêutico se faz junto a pessoa acompanhada no seu dia-a-dia. Objetiva não só um contato mais participativo em sua casa e em sua cidade, mas também a obtenção de experiências construtivas com seu acompanhante e nos espaços que a cidade oferece. Partindo de seus próprios recursos e capacidade criativa, o acompanhado é estimulado a participar e conviver no mundo que o circunda buscando sempre maior autonomia e uma melhor qualidade de vida.
O presente trabalho pretende apresentar um caso de Anorexia na clínica do Acompanhamento Terapêutico e discutir como a psicanálise, pode trazer contribuições importantes para esta prática.
O Desabrochar de Rosa
Rosa foi encaminhada para acompanhamento terapêutico em outubro de 1998, pelo Hospital-dia Núcleo onde fazia tratamento em período integral desde abril daquele ano. Ela chegou lá, após uma internação de mais de um mês em uma enfermaria de clínica médica, pela gravidade de um quadro de anorexia. Naquela época, Rosa estava com 36 anos, era solteira e pesava 39 Kg. Era universitária , faltando apenas a apresentação da monografia para conclusão de sua Graduação. É bancária, mas estava afastada do trabalho pelo seu estado clínico. Apresentava dificuldades de relação interpessoal e com a família, o que a levou a sair de casa três anos antes do início do tratamento.
No Hospital-Dia, Rosa apresentava irritabilidade, agressividade, alguns comportamentos obsessivos e uma tendência a se isolar. Sabíamos que ela havia passado por períodos de oscilação no tratamento: apresentando uma melhora significativa até agosto daquele ano, quando chegou a retornar à faculdade, mas piorando desde então. Devido a um emagrecimento acentuado, e a sua impossibilidade de se cuidar sozinha: não conseguia se organizar para preparar suas refeições, a equipe impõe a Rosa que voltasse momentaneamente a morar com seus pais e iniciasse o Acompanhamento Terapêutico. Como ela estava em um momento agudo que exigia um acompanhamento diário, optamos por realizá-lo por duas profissionais, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional.
Havia, a princípio, uma demanda da equipe do HD que acompanhássemos Rosa em sua refeição da noite, já que ela estava se alimentando apenas no HD, em geral na companhia de alguém da equipe, por isso Rosa inicia o acompanhamento apresentando resistência à nossa presença e nos comparando a uma “sonda naso-gástrica”. O primeiro objetivo de nossa intervenção foi desfazer esta imagem de invasão e poder nos apresentar como alguém para estar junto e acompanhá-la em seu sofrimento.
Nos primeiros meses, mostrava-se bastante hostil e com dificuldades de aceitar a presença das acompanhantes e o retorno à casa dos pais. Ela tentava boicotar os acompanhamentos de diversas formas: marcando outras coisas no horário, não comparecendo no local e hora combinados, mas, sobretudo nos deixando a sua espera enquanto tomava banho. O banho, parecia-nos um ritual , ao mesmo tempo que um ataque ao nosso trabalho. Bastava chegarmos, que ela entrava no chuveiro, onde passava mais da metade do horário do AT. Hoje, pensamos, que esta atitude poderia ser também uma maneira de testar nossa disponibilidade. Enquanto esperávamos, fomos percebendo a aridez e a precariedade do apartamento onde morava: poucos móveis, sem aconchego. A cozinha sugeria ser o ápice da falta de “calor humano”: poucos utensílios ,uma geladeira sempre vazia, um fogão transformado em armário, apenas um copo, um prato, um garfo, uma panela. Tudo neste ambiente nos dava a idéia da extrema solidão e desamparo de Rosa.
O trabalho de AT desenvolveu-se, então, ajudando-a a se apropriar daquele espaço onde em suas palavras ” não tinha raízes, era apenas um lugar de passagem” (sic). Começamos uma intervenção concreta que mobilizou Rosa para nossas saídas: procurar objetos para seu apartamento ( televisão, microondas, flores, máquina de lavar roupa). Rosa comprou os primeiros utensílios de forma estereotipada. Chegava nas lojas, fazia uma rápida pesquisa de preços e comprava o mais barato, em geral no mesmo dia, como se tivesse se livrando de uma obrigação, sem mostrar prazer ou envolvimento. Esta estereotipia aparecia também na sua alimentação: quase nenhuma variedade ou tempero, uma comida insossa, difícil de despertar o apetite.
Aos poucos, Rosa foi se deixando cuidar por nós, mostrando suas dificuldades de relacionamento e o seu desamparo. Isto ficou bastante explícito quando retomamos o acompanhamento depois de uma pequena interrupção no final do ano. No retorno, sua primeira fala foi: “está vendo, sobrevivi a ausência de vocês”. Ao que a acompanhante (at) respondeu, “então fizemos muita falta”, o que a deixou desconcertada. Percebemos então, que já existia um vínculo forte conosco. Parece-nos que isto foi possível pela constância de nossos encontros e por perceber um real interesse nosso em sua pessoa. Rosa experimenta neste momento, comprar alguns temperos diferentes: manjericão, ervas finas , mas ainda os deixa como enfeite.
Inicia-se uma fase em que Rosa bebe litros de leite, referindo que não foi amamentada pela mãe, e que só muito leite trazia satisfação para o vazio que sentia. Passa em seguida, a comer mingau e tomar iogurte para só depois, começar a ingestão de sólidos, observávamos que ela estava refazendo o percurso alimentar de um bebê para retomar uma relação mais saudável com sua alimentação. A partir desse momento, Rosa começa a cuidar de si podendo até iniciar aulas de natação (um projeto antigo e nunca antes concretizado).
A princípio, tivemos dúvidas quanto a como proceder: se apenas a deixávamos na porta da escola de natação ou se a acompanhávamos durante as aulas. Pelo próprio movimento dela, que pedia nossa presença, passamos a ir com ela, funcionando por um período como mãe que leva sua filha a aula de natação e acompanha seus progressos. Um dia, acena para a at da piscina, como para certificar-se que ela estava lá e atenta a sua pessoa. Parece ter sido fundamental para ela contar conosco como referência.
Neste período, novas atividades começaram a fazer parte dos acompanhamentos, algumas sugeridas por nós, outras por ela mesma: caminhadas no Parque do Ibirapuera, viagem a Campos do Jordão, cinema. Concomitantemente, Rosa tem uma melhora do quadro clínico, iniciando psicoterapia duas vezes por semana. Nos nossos atendimentos, procurava verbalizar mais sobre seus sentimentos e dificuldades, reconhecendo pela primeira vez que precisava de nós.
No Hospital-Dia, inicia-se seu processo de alta e sua volta ao trabalho (por sua iniciativa e sem nossa ajuda procura uma nova agência bancária para trabalhar). Após sua alta e antes de retornar a seu trabalho, Rosa precisa tirar férias que estavam vencidas o que a deixou a princípio bastante perdida, pois, não sabia o que fazer com seu tempo livre; o padrão alimentar restritivo dá lugar a uma alimentação compulsiva. Rosa passava os dias, em suas palavras, “dentro de casa: fumando, bebendo litros e litros de leite , devorando pacotes de bolacha ou frutas da época, enquanto olhava pela janela o tempo passar, completamente paralisada.” Há uma retração no contato conosco, voltando a questionar a necessidade do acompanhamento e o objetivo do nosso trabalho. Vai se configurando um ritmo no AT: períodos de maior aproximação , são seguidos por outros de afastamento. Parece-nos que Rosa se sentia desamparada, diante dos movimentos de autonomia tão almejados por ela como a saída do Hospital-Dia ou a diminuição dos horários de AT.
Como estava paralisada e começando a se isolar, propusemos a organização de suas atividades do dia-a-dia através de uma agenda e da elaboração de um cardápio. A partir daí, marca várias consultas médicas, fica sócia de locadoras de filmes e começa a se articular para ir até a faculdade para tentar retomar a monografia. Nossa presença passa a ser importante para seu contato com o mundo, para além do tratamento.
Na realização destas atividades, tínhamos como foco do trabalho a aproximação de Rosa com seus próprios sentimentos. Percebemos que isso foi acontecendo gradualmente: aos poucos nos fala com descontentamento de como a família se relaciona de maneira pouco afetiva e de como gostaria que fosse diferente.
Após 8 meses do início do AT aprofunda seu contato conosco e com as pessoas ao seu redor. No seu aniversário pela primeira vez na vida, resolve comemorar: leva um bolo para o trabalho, sai com colegas do Núcleo e nos convida para um lanche de comemoração em um Café-bar.
Em seguida, consegue agendar um encontro com o orientador de sua monografia mesmo com o temor dele não mais aceitá-la como orientanda. O temor de não ser aceita como é, e ser um incômodo para o outro aparecia na maioria de suas relações, sempre se considerando um peso para as pessoas. Talvez aí, tivéssemos uma pista do porque precisar ficar tão magra…
Apesar da disponibilidade do orientador, Rosa teve sua matrícula cancelada por problemas burocráticos, pois dava início ao procedimento exigido pela faculdade, mas não dava continuidade por achar que o que já havia feito bastava. Em uma das vezes que vai até a faculdade com uma das ats, percebe que esqueceu um documento importante. Diante deste acontecimento, Rosa ficou completamente aturdida, perplexa mesmo com seu esquecimento, vivido por ela como uma falha. Conseguiu, contudo, ouvir uma sugestão da at, coisa pouco freqüente até então, pois habitualmente tomava nossas sugestões como ordens, opondo-se sistematicamente a elas. Assim , dá seguimento às exigências burocráticas, o que possibilitou sua rematrícula para o ano de 2000, tendo como data máxima para entrega do trabalho o mês de julho. Segue-se novo movimento de retração, desta vez entretanto, as críticas ao acompanhamento são mais sutis. Neste momento de recuo, há em geral, um recrudescimento da restrição alimentar.
Pouco tempo depois, entretanto, Rosa consegue progressos significativos na relação com a família e com a comida: começa a preparar e oferecer almoço para seus pais em seu apartamento aos finais de semana, inventando receitas saborosas, como suflês variados. Pede nossa ajuda para as receitas, mas enfatiza sempre que não as segue fielmente, fazendo mudanças de ingredientes, dando seu toque pessoal, o que é valorizado por nós. No natal, estava muito feliz com esta experiência , podendo compartilhá-la conosco, oferecendo-nos um lanche na sua casa. Vale ressaltar, totalmente diferente das comidas insossas do primeiro período do AT.
No Banco, após período de estabilidade e satisfação, começa a nos trazer questões problemáticas do ambiente de trabalho que culminam na sua transferência a revelia para outra agência. Apesar de sofrer com isto, consegue não se paralisar, procurando imediatamente novo local de trabalho. Esta escolha, entretanto, foi feita cuidadosamente tendo como prioridades: possibilidade de crescimento e proximidade da sua casa. Outra conquista é ter conseguido manter um contato afetivo com sua antiga chefe, com quem tinha dificuldades de relacionamento, surgindo a possibilidade de continuidade de um vínculo. Coisa pouco freqüente até então, pois o afastamento era sempre vivido por ela como ruptura definitiva.
Até março de 2000, sua monografia continuava parada, mesmo, existindo um desejo expresso por Rosa de concretizá-la. Este era um tema para o qual ela nos fechava qualquer possibilidade de auxílio. Nos meses seguintes, Rosa foi apresentando considerável mudança neste processo: solicitou nossa ajuda em várias etapas da realização da monografia e conseguiu se organizar para escrevê-la e entregá-la dentro do prazo .
Com esta conquista consegue o almejado diploma e o acompanhamento passa a ter como principal objetivo o fortalecimento da pequena rede de amizades que Rosa tinha conseguido estabelecer com nosso auxílio, pois considerávamos que o trabalho de acompanhamento terapêutico estava chegando ao fim. O encerramento foi cuidadosamente planejado por nós para que não houvesse uma ruptura brusca como havíamos observado ser o padrão de separação em sua família e o repetido por ela em quase todas as relações. De fato, Rosa pode vivenciar o final do nosso trabalho não como uma quebra desastrosa, mas sim como abertura para novos projetos.
Nos últimos encontros, notamos uma mudança singela, porém significativa: durante vários meses, Rosa tinha em um porta retrato com lugar de destaque em sua sala, uma foto dela conosco, tirada em seu último aniversário. Neste período final, outra foto dela com colegas de trabalho passa a ocupar a parte da frente do mesmo porta retrato, e a nossa é transferida para a parte de trás: este movimento parece-nos sintetizar sua possibilidade de continuar sem nossa presença concreta, contando com seus próprios recursos.
Pensando o desabrochar de Rosa à luz da psicanálise
No decorrer deste acompanhamento, as ats também foram acompanhadas de perto pela psicanálise, tanto por supervisões quanto por leituras. Contamos com o referencial teórico de D.W. Winnicott como pano de fundo para nossa prática.
A teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott enfatiza o ambiente e sua influência sobre a saúde emocional do bebê. O primeiro ambiente que se constitui para o bebê é a mãe, sendo que no princípio ambos estão fundidos numa estrutura ambiente-indivíduo. Neste estágio inicial da relação mãe-bebê a ansiedade está associada à ameaça de aniquilação. O suporte egóico da mãe (ambiente de holding) tem como principal função reduzir ao mínimo a invasão a que o bebê deve reagir, a fim de proteger o núcleo do self do bebê.
O ambiente facilitador possibilita ao indivíduo a chance de crescer, freqüentemente em direção a saúde enquanto o ambiente que falha principalmente no início levará provavelmente a instabilidade e a doença.
Winnicott considera que no início da vida, a agressão é sinônimo de atividade e motilidade e faz parte da expressão primitiva do amor. No início de sua obra, ele refere-se à agressão primária, estabelecendo que esta é originalmente parte do apetite. Com o passar do tempo, a agressão modifica suas características e pode ser integrada a personalidade, sendo um dos componentes da criatividade. Entretanto, para que isto aconteça é fundamental, a maneira como o ambiente (mãe) lida com esta agressividade inicial. Se este não é capaz sobreviver ao ataque e devolve a agressividade do bebê em forma de retaliação, o bebê pode se retrair, passando a viver centrado preponderantemente em seu mundo interno. Assim, se o bebê não puder experimentar a agressão desde um estágio inicial onde ainda não há nela uma intencionalidade destrutiva, ele perderá também em um algum grau sua capacidade de amor, isto é de relacionar-se com objetos.
Nos poucos contatos com a família de Rosa, percebíamos uma falta de afeto e uma rigidez extrema o que levou às saídas das irmãs mais velhas de casa de uma maneira abrupta e irreconciliável. Vale ressaltar que logo após a saída não menos turbulenta de Rosa de casa, sua mãe inicia um Diabetes grave, perdendo também muito peso. Durante o acompanhamento, Rosa viveu com as ats, explosões de raiva intensas. Em uma delas depois de ter jogado no chão um objeto e ter gritado com a at, surpreende-se com o fato, desta não a abandonar e poder conversar com ela sobre o que estava acontecendo. Conta-lhe então, que em sua casa, sempre que manifestava algum afeto mais intenso, era deixada falando sozinha.
Parece-nos que o ambiente inicial de Rosa não pode lidar com sua agressividade primária e é interessante notar que seu sintoma: a anorexia, o não comer, incide exatamente na esfera do apetite. Pensamos que Rosa desenvolveu um distúrbio narcísico para fazer face a este fracasso ambiental. Grande parte de sua libido ficou concentrada sobre seu corpo e seu mundo interno e houve uma grande retração do investimento objetal o que fez seu mundo de relações e experiências ficar empobrecido. Parece-nos que o não-comer é uma tentativa desesperada de manter a ilusão de onipotência, a não dependência de nada e de ninguém e proteger-se da percepção do fracasso ambiental.
Winnicott enfatiza que a mãe suficientemente boa é aquela que no início, pode se adaptar às necessidades do bebê. Quando o ambiente inicial não se adapta às necessidades do bebê e funciona de forma rígida e estereotipada, o bebê tem sua possibilidade de desenvolver um sentimento real de existência e a espontaneidade , prejudicados. Passa a reagir ao que o meio lhe oferece e pode desenvolver um falso self.
Antes do desencadeamento do sintoma, Rosa levava a vida de forma mecânica, trabalhava, estudava, voltava para casa, tinha poucas relações e pelo seu relato não sentia prazer ou se envolvia afetivamente com nada e ninguém. Nossa hipótese , é que isto acontecia, pois ela não pode desenvolver espontaneidade.
Pensamos que nossa intervenção no AT, foi eficaz por oferecer um ambiente de holding, isto é, nos adaptamos às suas necessidades: respeitávamos sua maneira de se alimentar ao mesmo tempo que demonstrávamos nossa preocupação com sua magreza, pudemos lidar com sua agressividade, sobrevivendo a ela sem nos afastar como sua família, oferecíamos ajuda (emprestando-lhe receitas), mas valorizávamos suas modificações a elas por acreditar que esta era uma maneira de desenvolver o que lhe era próprio e espontâneo. Assim, oferecemos uma ampliação de seus interesses e novas possibilidades de circulação pelo mundo, proporcionando que ela o investisse de maneira mais afetiva e diminuindo sua introversão.
Referências Bibliográficas
- ABRAM, J. A linguagem de Winnicott. Revinter. Rio de Janeiro, 2000
- WINNICOTT, D.W. O brincar e A realidade. Imago. Rio de Janeiro, 1975
- _________________. Textos Selecionados: Da pediatria à Psicanálise. Francisco Alves. Rio de Janeiro, 1978.
Fonte:
http://www.estadosgerais.org/encontro/o_desabrochar_da_rosa.shtml
Artigo publicado no “Site AT” em 20/05/2002.
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