A Psicologia Tomando a Rua Como Setting: O Fazer Andarilho do Acompanhamento Terapêutico

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: O “Fazer Andarilho”

Referência completa: SILVA, Alex Sandro Tavares da. A Psicologia tomando a “rua” como setting: o “fazer andarilho”. Em: JACQUES, Wilson Cleber Antunes (et al.). Histórias e Memórias de Psicologia: Trabalhos premiados no concurso comemorativo dos 40 anos de regulamentação da profissão de Psicólogo no Brasil. Porto Alegre, RS: CRP – 7º Região, 2003. pp. 73-86.

“O novo psicólogo, acabando com a superstição que até agora proliferava em torno da noção de alma com uma exuberância quase tropical, como que se desterrou a si próprio, para um novo deserto e uma nova desconfiança – pode ser que os velhos psicólogos vivessem de modo mais cômodo e divertido: – mas, ao fim e ao cabo, o novo psicólogo vê-se também condenado a inventar – e, quem sabe, talvez mesmo a descobrir.” (Nietzsche, 1987, p. 27).

Formação AT Certificada | Curso On-line Grátis | Supervisão AT | Portal AT

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: O “Fazer Andarilho”

Venho intervindo-pensando-lendo-escrevendo sobre o Acompanhamento Terapêutico (AT)3 desde 1999. Fiquei sabendo desse recurso terapêutico no decorrer da minha graduação em Psicologia. Logo que escutei algo sobre AT surgiu uma vontade de saber mais; achei interessante um fazer que tomasse os locais fora do consultório (do tradicional setting terapêutico) também como possíveis espaços de intervenção. Por tudo isso resolvi escrever sobre o referido tema no meu trabalho de conclusão de curso em Psicologia. Agora o resgato para falar mais dessa prática em Psicologia, para além do consultório.

Levando em conta minhas leituras4, produções5 e vivências nessa atividade arrisco dizer que Acompanhamento Terapêutico pode ser pensado como uma atividade realizada em espaço não restrito ao consultório (tradicional setting psicoterapêutico), que aqui passarei a denominar genericamente por “rua”6, por sujeitos (geralmente graduados ou graduandos na área da saúde) que têm como objetivo fazer com que a pessoa que está de alguma maneira enclausurada em um território (ou poucos territórios que dificultam o exercício perante as forças do cotidiano), aumente sua participação na tomada de atitude perante a vida.

Por isso, este tipo de trabalho além de usar o nome Acompanhamento Terapêutico pode ser nomeado por vários outros sinônimos, tais como: “fazer andarilho”, “clínica na rua”, “clínica ampliada”, “clínica do espaço”, “clínica itinerante”, etc.

O AT mostra-se como uma forma de dar contingência às manifestações da pessoa (em muitos casos também da família e/ou outros grupos) que de alguma forma se encontra em dificuldade para agir frente aos acontecimentos da vida, na “rua”.

Assim entendido, o “fazer andarilho” vem sendo utilizado como intervenção terapêutica tanto para pessoas com funcionamento neurótico quanto para psicótico.

Grande parte dos pedidos de intervenções ainda são dirigidas a pacientes em crise psicótica, mas também ocorrem atividades clínicas do AT com: deficientes mentais, deficientes físicos, dependentes químicos, idosos, acidentados, etc.

E mais, penso que o “fazer andarilho” também produz algo para além da dupla acompanhante-acompanhado que transitam pela “rua”; acredito que promove algo de dimensões políticas, onde o olhar despromotor de valor ao ser humano pode ser minado-relativizado.

Ou seja, esse “fazer andarilho” pode provocar processos onde as verdades proclamadas (inclusive as que desqualificam completamente o portador de sofrimento psicológico) podem ser, pelo menos, questionadas na vida cotidiana.

Creio que é importante mencionar que como formando em Psicologia e acompanhante terapêutico penso ser igualmente um “singularizador-criador”. “Singularizador” na medida de me permitir capturar-transformar o fazer das teorias-práticas (artístico-científicas-filosóficas) sejam quais forem, os dispositivos7 que podem produzir mais vida nos processos onde a “clínica na rua” participa.

Criador por estar disposto a desenvolver dispositivos e aproveitar os elementos que se fazem presente no cotidiano da “clínica itinerante” compondo processos de produção de mais vida, não só para o paciente.

Com isso, deixo claro que como at não circulo apenas na “rua” mas também nas teorias-práticas, pelo menos naquelas onde creio que possa ocorrer vitalizações no processo de clinicar desse “fazer andarilho”. Tendo esse processo de criação em mente penso que seria interessantes colocar à disposição do leitor a tríade que venho utilizando hoje para operar nessa prática para além do consultório: “acompanhar-esperar-questionar”.

Ao meu ver o AT também pode se viabilizar através desse “conceito-ferramenta” (“acompanhar-esperar-questionar”); acredito que ele pode dar suporte para estratégias de ação do at e não para um programa do acompanhante terapêutico.

É necessário estabelecer a diferença entre programa e estratégia; penso que ali está a diferença entre pensamento simplificante e pensamento complexo. Um programa é uma seqüência de atos decididos a priori e que devem começar e funcionar um após o outro, sem variar. Certamente, um programa funciona muito bem quando as condições circundantes não se modificam e, sobretudo, quando não são perturbadas. A estratégia é um cenário de ação que se pode modificar em função das informações, dos acontecimentos, dos imprevistos que sobrevenham no curso da ação. Dito de outro modo: a estratégia é a arte de trabalhar com a incerteza. A estratégia de pensamento é a arte de pensar com a incerteza. A estratégia de ação é a arte de atuar na incerteza. (Morin, 1996, p. 284).

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: O “Fazer Andarilho”

Levando em consideração que o fazer psicológico no Acompanhamento Terapêutico tem como base a crença de atuar com as incertezas produzidas na “rua” tento pensar a estratégia do “acompanhar-esperar-questionar” na “clínica na rua”. Importante destacar, mesmo que pareça óbvio para alguns, que não é à toa que as palavras da tríade estão hifenizadas (“acompanhar-esperar-questionar”). Elas trocam de posição de acordo com a dinâmica vivenciada no “fazer andarilho”. Ou seja, a tríade não é programa executável com início no acompanhar, meio no esperar e fim no questionar. Dito isso vamos trilhar essa tríade…

Com a ideia de acompanhar (sempre usando as escutas da “vida trágica”: com esse conceito divulgo minha crença de que mesmo nos momentos rotulados de doloridos, e justamente por eles existirem, podemos exercitar a nossa força de viver com a vida como ela se apresenta) vem a tona a dimensão da disponibilidade por parte do at de se fazer cúmplice do processo que vai sendo vivido pelas pessoas envolvidas na dinâmica da/na “rua”, mantendo espaços de acolhimento aos medos-desejos do acompanhado.

Como exemplo lembro de acompanhar as errâncias pelo bairro de um jovem adolescente que tinha pavor de cachorros (independente do tamanho dos mesmos); no decorrer das andanças nos deparamos com um cachorro pastor alemão solto pela vizinhança, de imediato o jovem se colocou atrás de mim, demonstrando estar apavorado.

Confesso que naquele momento além de acompanhar o paciente com seus medos-desejos, tive de lidar com os meus pensamentos-sentimentos frente ao possível ataque do cão.

De imediato lembrei da fala de alguns veterinários que diziam que os cães tomam conta do território, na ausência de alguém que o faça; por isso tentei assumir essa posição, antes dele.

Fiquei parado olhando para o cão (tentando sustentar um olhar de autoridade), o cachorro ficou parado latindo muito para nós até que a sua dona percebeu que não era uma boa ideia deixar aquele cachorro solto, pelo menos não naquele momento.

Com o esperar vem a ideia de manter um espaço onde o tempo singular do acompanhado lidar com as forças da vida (e seus infinitos dispositivos que vão modulando o seu viver) seja preservado. Então esperar é respeitar o tempo do acompanhado se experimentar com os dispositivos da/na vida.

Como exemplo recordo os meses de espera até que a criança que acompanhava pudesse lançar mão do recurso de tomar a rua como setting.

Essa criança, por iniciativa dela mesma, foi exercitando a sua circulação: primeiro ia da cozinha para sala, depois a errância mudou da cozinha para o pátio, do pátio para a frente da casa, da frente da casa para a praça da esquina, da praça da esquina para o bairro, do bairro para a cidade…

Então com o esperar pude acompanhar o criar de um espaço gradual de experimentação frente aos territórios-dispositivos que o paciente ia se apropriando. Nesse movimento de vai-e-vem a criança ia utilizando os territórios-dispositivos conhecidos como recurso para novas criações, novas brincadeiras, novos territórios-dispositivos.

O questionar traz o fazer questão para as “duras verdades” que estão segurando o acompanhado em territórios enclausurantes que já não produzem vontade de serem ultrapassados.

Com essa ideia de “questionar” tento deixar claro que o at pode, pelo menos ao meu ver, ter um atitude ativa no processo terapêutico, ativa no sentido de manter um olhar crítico em busca de dispositivos8 com a pretensão de minar as “duras verdades” que prendem o acompanhado num processo despotencializador da vida.

Com “duras verdades” gostaria de divulgar que um “questionar” (dispositivo) pode romper com as ideias, crenças, imperativos categóricos que não estão permitindo, que uma determinada pessoa consiga brincar com as tragédias da sua vida.

Ou seja, essas “duras verdades” não são duras porque são trágicas, elas são “duras” por não permitirem um espaço de trânsito das “verdades”.

Para não me prolongar muito nesse conceito diria que as “duras verdades”, quando não questionadas, podem interromper o processo criativo do ser humano; barrar o brincar com a vida. Como exemplo trago a vinheta clínica do paciente que tinha a crença: “se algum homem me olhar na rua isso quer dizer que ele quer me atacar, brigar comigo”.

A não circulação dessa ideia estava fazendo com que este homem diminuísse cada vez mais as suas circulações pelo seu bairro.

Muitas vezes ele passava dias dentro de casa, principalmente dentro do seu quarto.

Para minar essa “dura verdade” poderiam ser criados vários tipos de questionar (dispositivo filme, pergunta, brincadeira, leitura, etc.), optei pelo questionar em forma direta de pergunta.

Disse: “então, por eu estar te olhando, isso quer dizer que estou querendo brigar contigo agora?”.

Esse fazer questão provocou um estranhamento no paciente, a partir desse estranhamento começamos a pensar sobre os olhares e seus vários significados-sentimentos.

Penso que o “fazer andarilho” pode se viabilizar através dessa estratégica tríade: “acompanhar-esperar-questionar”.

Digo mais, nessa ideia de “acompanhar-esperar-questionar” está implícito que o acompanhante terapêutico possa ser continente.

Este “ser continente” não diz respeito ao conter das produções desejantes do paciente, mas sim receber o que está sendo jogado, muitas vezes literalmente jogado (objetos, cuspidas, agressões físicas, medos, desejos…).

Nesse jorrar o “clínico na rua” vai tentar lidar com as manifestações de uma maneira sempre nova e singular, por isso estratégica. Essa fala sobre a “clínica na rua” poderia soar vaidosa divulgando um modo terapêutico artista, mas penso que não.

O fazer no AT é sempre novo. A repetição pode ser clamada por alguns acompanhantes, mas na prática o que se encontra são manifestações inéditas dos acompanhados (para quem tem “olhos” para ver o novo). Manifestações modulantes-moduladas por infinitos fatores (desejos, relações, medos, dúvidas…).

Há um universo com o qual o acompanhante terapêutico não teve contato e que agora se faz presente. O acompanhante se vê (com o seu processo) pisando no “mesmo chão” (com seus infinitos dispositivos) do paciente (com as suas características)… o novo é, necessariamente, rotineiro na “clínica na rua”… o que se faz com esse novo (ética do at) apresenta-se de fundamental importância.

No “fazer andarilho” existe a crença de que é no encontro de diferenças, que também acontece na “rua”, que se poderá colocar em movimento processos psicoterapêuticos.

Ou seja, nesse movimento potente de produções de vida na “rua” poderão ser criados infinitos dispositivos, também clínicos, que possam ir abrindo novas rotas de errância, novas circulações não só do acompanhado, mas com efeito das “duras verdades”, inclusive as “duras verdades” sobre o portador de sofrimento psicológico que habitam o imaginário social.

Tendo em vista essas reflexões, proponho que o Acompanhamento Terapêutico que usa a estratégia do “acompanhar-esperar-questionar”, e que, além disso, usa o desejo do paciente como “bússola” nas errâncias pela “rua” seja chamado de “fazer andarilho”.

O “fazer andarilho” é um tipo de AT que não se resume a processos exclusivamente pedagógicos e que, igualmente, opera clinicamente através do “acompanhar-esperar-questionar” a partir da escuta da “vida trágica” dos desejos-medos do acompanhado com o objetivo de exercitar a vontade de poder9.

Vontade de poder é um conceito criado por Friedrich Nietzsche para falar das forças que movimentam a vida. Com esse conceito ele fala da vontade de superação. Não se trata de pensar “apenas” uma superação dos outros que estão a sua volta, duma lógica dual.

Com vontade de poder Nietzsche está querendo falar da eterna superação de si mesmo. Não existe descanso nessa ideia do filósofo alemão, que se dizia o primeiro psicólogo. Com vontade de poder ele deixa claro que o ser humano se faz num caminhar sem fim (na finitude da existência do ser) da superação de si mesmo.

Então vontade de poder é a energia que movimenta os terrestres a lutar-dançar com a vida. É a dinâmica de forças que não para de pulsar, impulsionar. Vontade de poder diz respeito às relações de forças a qual todos estamos ligados.

Ou seja, ela só pode ser entendida na relação dos envolvidos, no entre. Resumidamente arrisco dizer que: Vontade de poder é vida, em busca de mais vida.

Desenvolvo um articulação entre vontade de poder e Acompanhamento Terapêutico porque esse conceito possibilita um aproveitamento do inusitado da/na “rua”.

A vontade de poder abre o “ângulo de visão” do acompanhante terapêutico; com ele exercitamos o nosso olhar para além de uma interpretação moralizante das manifestações encontradas na “rua”. Vamos além duma leitura moral, pois a vontade de poder é vida em exercício, mesmo na dor.

Onde encontrei vida, ali encontrei vontade de potência; e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor. (…) Somente, onde há vida, há também vontade: mas não vontade de vida, e sim – assim vos ensino – vontade de potência! (Nietzsche, 1974, p. 246).

Vontade de poder é um querer poder sem fim. Vontade de poder é vida. Vida em constante exercício de querer mais vida.

A vontade de poder são processos “eternos” de superação de si mesmo. Ou seja, justamente por esse movimento ser de superação de si mesmo, que esse processo de querer não tem fim (na finitude da existência do humano).

Para aprofundar a articulação entre o “fazer andarilho” e o conceito de vontade de poder divulgo no próximo tópico uma experiência clínica com o uso desses recursos.

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: A Intervenção clínica Com o Uso do “Fazer Andarilho”

Gostaria de divulgar uma experiência na atividade da Psicologia na “rua” que, quem sabe, pode servir para mais algumas reflexões sobre esse “fazer andarilho”.

Penso que é muito importante colocar à disposição do leitor não apenas algumas divagações teóricas-filosóficas; creio que alguns exemplos das experiências que foram “sentidas na carne” podem tornar a leitura menos intelectualizada, e talvez um pouco mais solta; além de mostrar o quanto essas vivências foram produzindo novas ferramentas conceituais que remeteram a outros conceitos, num movimento de retroalimentação onde a prática-teoria se ampliam, transforma-se constantemente.

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: A Vinheta Clínica

Jane10 é uma mulher de 39 anos de idade, mora sozinha. Trabalha como “terapeuta alternativa” dentro de casa. Não tem muito contato com os seus familiares. Em compensação possui muitos amigos, os quais busca a todo momento para ficar junto deles. Quando entende que foi rejeitada por alguém sofre profundas crises, inclusive, acompanhadas de ideias suicidas.

Trago para esse texto a experiência do meu primeiro trabalho com o uso do Acompanhamento Terapêutico. Essa intervenção tem algo de diferente, pois foi realizada sempre no interior da casa da paciente; a “rua” nesse caso era o dentro do lar: a sala, o quarto, a cozinha.

O horror de Jane não era vinculado ao sair pelas ruas da cidade, ir a festas, supermercados, cinema, salão de beleza, essas atividades sociais ela realizava todos os dias com vários amigos.

O que temia era a hora de ficar sozinha em casa; ela sempre tinha que estar acompanhada de alguma amiga em seu território, ou então rumava à casa de alguém para dormir.

Ela dizia: “Tenho medo do que posso fazer comigo quando estou sozinha!” (sic). Esse medo (como todo medo) não era sentido à toa, Jane já havia colocado em prática três tentativas de suicídio, duas cortando os pulsos e uma tomando uma grande dose de remédios.

Fui chamado pela prima de Jane que temia que essa mulher pudesse tentar mais uma vez o suicídio e dessa vez morrer.

No primeiro encontro como seu acompanhante terapêutico, percebi que Jane estava mergulhada numa crise importante, mas mesmo assim continuava trabalhando, atendendo sua cliente.

Esperei no seu quarto-escritório até que ela terminasse a consulta com a sua paciente. Fiquei sentindo o local.

Toda a casa era arrumada como um território de bruxa (ela se dizia uma bruxa): velas, livros abertos, fotos, bruxas dependuradas, véus negros no teto, quadros místicos, vários objetos nas paredes, incenso queimando…

Logo após terminada a sua atividade como “terapeuta alternativa”, Jane entra no quarto para falar comigo…. e “se desmancha”.

Não para de chorar dizendo que não suporta mais a vida, os amigos, os pacientes, a sua própria casa, o filho (que foi criado longe dela), a tesourada que levou nas suas costas (quando ainda era criança) pelas mãos da sua mãe, os abusos sexuais que seu pai lhe fizera…

Diz também que tem medo de adoecer, pois não poderia se cuidar, deixaria de trabalhar e, finalmente, viraria uma “mendiga doente” (sic)… Dizia: “Não tenho nenhuma garantia em minha vida!” (sic).

Esta minha primeira incursão no “fazer andarilho” durou quatro horas. Durante a sessão fiquei escutando o despejar da angústia de uma “vida inteira”. Jane dizia que não tinha história pessoal: “Sou como a andróide do filme ‘Blade Runner’, não tenho lembranças da minha vida, só tenho fotos sem história nenhuma… sem sentimentos!” (sic).

Jane não parava um minuto de falar e chorar. A luta pelo desejo de conseguir garantias estava levando Jane para mais uma, quem sabe última, tentativa de suicídio.

Após “acompanhar-esperar”… lancei mão do fazer questão para Jane, disse: “o suicídio é uma possibilidade para tentar resolver todos os problemas da tua vida de uma vez…” nisso, ela me olhou com uma fisionomia de pavor; continuei: “mas vale lembrar que o suicídio é UMA POSSIBILIDADE, não sabemos o que ocorrerá além do suicídio, além terra! Mas, diga Jane, tu poderias pensar mais algumas outras alternativas para resolver um problema de cada vez, além da tática que vens utilizando há anos… o suicídio?”

Com essa fala, senti que houve um processo que provocou a morte de algo e talvez o nascimento de possibilidades na vida Jane; ela começou a pensar nos momentos que tinha vivido suas crises importantes e havia pensado apenas em se matar para dar fim a dor vivida… ela só via essa possibilidade de resolução de problemas.

O suicídio era um modo limite que Jane utilizava para colocar em movimento sua vontade de poder; modo limite, pois poderia levar à sua aniquilação.

A certeza da impossibilidade de resolver todos os problemas de sua vida com apenas um ato a levava constantemente a pensar no suicídio como tática que divulgava força perante a vida.

Segundo Jane, era no suicídio que mostrava algum controle sobre a sua vida.

Vale lembrar um acontecimento, após uma tentativa de suicídio, ela havia sido socorrida por amigos que a levaram para um hospital; o médico que a atendeu disse:

Você é muito corajosa, não é qualquer pessoa que consegue fazer isso consigo mesma!.

Essa fala, para ela, confirmava que o suicídio era uma alternativa que divulgava o seu poder pessoal.

Perguntei para ela se poderia me dizer o nome de apenas uma pessoa que tivesse as garantias totais que buscava.

Antes de falar isso pensei… entre outras coisas, é a busca de garantias eternas que está matando essa mulher.

Finalmente, Jane não conseguiu responder essa pergunta. Não havia nenhuma pessoa no mundo que possuísse todas as garantias que ela desejava, e pelas quais estava morrendo para conseguir. Estava morrendo por querer garantias eternas para viver.

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: “Fazer Andarilho” e a “Vida Trágica”

Para realizar o “fazer andarilho” de Jane contei com a ideia de “vida trágica”. Através da escuta da “vida trágica” pude manter o “acompanhar-esperar-questionar”.

Quando escrevo “vida trágica” busco deixar claro a ideia grega de tragédia, a qual diz que até os sofrimentos da vida são necessários, através deles somos impelidos a criar novos recursos, táticas existenciais para continuar vivendo nossas vidas.

Então “vida trágica” é vida em criação de mais vidas, mais rotas de circulação dos desejos-medos do vivente. Viver a “vida trágica” é promover o exercitar das nossas forças.

Ou seja, nesse processo do “acompanhar-esperar-questionar” o “agente na rua” busca apontar as conquistas do acompanhado, mostrando que aquele que até então se via e/ou era visto como impotente frente à “vida trágica” pode ter reconhecida sua atividade desejante; nesse “jogo de dispositivos” o acompanhante tenta provocar a (re)formulação dos olhares que são viciados numa lógica despotencializadora do ser humano acompanhado.

Além disso, acredito que se não tivesse em mente essa ideia de “vida trágica” talvez não teria conseguido ser o at de Jane.

Ou seja, o conceito de “vida trágica” permite que possamos manter um espaço de escuta aos processos doloridos do acompanhado sem necessariamente intervir de uma maneira rápida; a escuta da “vida trágica” permite a existência de um espaço temporal necessário onde o acompanhado possa pensar sobre os movimentos que está enfrentando na sua vida.

Igualmente, esse espaço temporal produz momentos onde o acompanhante terapêutico pode analisar os processos que se tornam visíveis ao mesmo, e através desse tempo de visualização poderá desenvolver intervenções clínicas necessárias ao trabalho do “fazer andarilho”.

Então, a ideia de escuta da “vida trágica” (além de preservar o tempo de elaboração das crises do acompanhado, pelo próprio acompanhado) produz uma reserva de saúde também para o acompanhante terapêutico que pode esperar o momento de elaboração se dar, sem necessariamente correr atrás de uma resposta pronta que dê conta de tudo.

Através da escuta da “vida trágica” a estratégia do “acompanhar-esperar-questionar” pode se viabilizar no “fazer andarilho”.

Isso ocorreu no primeiro dia de AT… nos que se seguiram, Jane foi tentando resgatar a sua história de vida (dar sentimento para suas fotos… (re)significar o filme “Blade Runner”… sua vida), foi nomeando os problemas a resolver, encontrando várias alternativas para resolver cada um deles, se percebendo na relação com os outros, etc.

Um dia Jane experimentou, por conta própria, o contato com um mendigo que fazia seu café no meio da rua (ficou admirada com a felicidade daquele sujeito… era mais feliz do que ela que tinha casa, comida, trabalho).

Com isso pôde pensar no medo que tinha de viver na rua, medo que a estava levando também ao suicídio. Ela dizia preferir morrer do que chegar a esse ponto.

Esse encontro produziu mais vida na sua vida, pois ficou sabendo que mesmo os momentos vistos como horríveis podem fazer o ser humano se superar, o “eterno superar a si mesmo”.

Nesses momentos trágicos talvez a vida potencialize a criação humana para que se afirme igualmente a vida como valor máximo.

Muitos outros momentos trágicos se fizeram presentes nesse AT, como, por exemplo, o medo de viver uma doença. Jane preferia morrer do que sentir-se doente.

Ela tinha certeza de que se adoecesse ficaria o resto da vida numa cama sofrendo, preferia morrer do que esperar isso.

Aliás, ela tinha “duras verdades” a respeito da dinâmica da vida, explicava tudo com sua rápida racionalização, ou melhor sua intelectualização embasada pela leitura constante de Freud, Jung, Nietzsche e vários outros pensadores.

Em resumo, eram as certezas das suas hipóteses que a estava enlouquecendo. Como diria Nietzsche (2000, p. 56): “Não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece…”

Fui, a cada Acompanhamento Terapêutico, colocando dúvidas em suas certezas, minando suas “duras verdades”, fortificando suas dúvidas e constante busca de alternativas. Com minhas intervenções fui tentando acompanhar sua vontade de viver com a vida como ela é… trágica.

Hoje, dois anos após o primeiro dia de AT, Jane continua morando sozinha, renovou seu apartamento (está prestes a comprar o mesmo), passa os finais de semana sozinha ou acompanhada (isso já não é mais problema; aliás, às vezes deseja curtir momentos solitários, reflexivos ou não), vendo filmes em casa ou no cinema, estudando, fazendo compras, falando com seus parentes, pacientes…

Parece que Jane sabe que ninguém nunca vai capturar a vida em sua totalidade, mas isso não a mata, pelo contrário faz viver, mostrando sua força frente aos momentos difíceis da vida… Quanto aos belos momentos… ela os vive!

Penso que minha função como seu acompanhante terapêutico está chegando ao fim, é hora de me despedir… Tchau Jane!

“O fim de um acompanhamento terapêutico aponta para esse momento, no qual uma existência singular ganha possibilidade de vida no mundo. Quando conseguimos construir com o acompanhado e suas famílias (se possível) um campo legitimado no qual essa diferença possa acontecer para além da morte ou da doença mental. Essa é nossa ética, nosso norte.” (Eliane Berger, 1997, p. 81)

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: Considerações Finais Desse “Fazer Andarilho”

Nessa produção tive como objetivo divulgar algumas reflexões sobre a prática a qual venho me dedicando desde 1999: Acompanhamento Terapêutico. Escolhi o tema do “fazer andarilho” para aprofundar nessa produção pois com o transcorrer das intervenções percebi o quanto o AT pode contribuir para uma clínica psicológica ampliada, criando processos interessantes nos acompanhados. E não só neles!

Também devo dizer que houve outros motivos para abordar esse tema: o Acompanhamento Terapêutico, ainda hoje, não possui muitas publicações, por isso achei importante colaborar com mais esse texto sobre a “clínica na rua”; igualmente, tentei desenvolver uma articulação entre o conceito de dispositivo (de Michel Foucault) e AT para pensar uma possível base teórica para que aproveitasse as saídas pela “rua”.

Para realizar essa articulação contei com a presença de vinhetas clínicas com o uso do “fazer andarilho” e ainda com alguns suportes conceituais de Friedrich Nietzsche tais como: vontade de poder e a ideia de “vida trágica”. Esses conceitos me levaram a desenvolver uma estratégia do AT: o “acompanhar-esperar-questionar”.

Acompanhar os processos trágicos que vão sendo vividos pelo acompanhado, me mantendo continente de seus medos-desejos. Esperar o seu tempo singular de lidar com as experiências na “rua”… na vida. Questionar as “duras verdades” que o estão segurando, enclausurando em territórios que já não produzem vontade de serem ultrapassados; acompanhando processos de criação de rotas de fuga, de vida.

Fiz a conexão entre Acompanhamento Terapêutico e dispositivo, pois o mesmo abre uma infinidade de opções de análise-intervenção sobre os objetos-situações que encontramos na “rua”. Com esse conceito a “rua” deixa de ser um simples pano-de-fundo e torna-se um elemento igualmente produtor de intervenções, de vida.

Então, ao meu ver, além do acompanhante terapêutico, a “rua” também é um dispositivo que poderá promover exercícios sobre a vontade de poder. Com isso deixo em evidência que o “clínico na rua” pode ser um dispositivo (também clínico) que faz parte dessa rede de dispositivos que podem ser viabilizadores de encontros, circulações, vivências que indicam que a vida está em constante exercício.

Penso que, por estar na “rua”, o acompanhante terapêutico poderá acompanhar o exercício do acompanhado na “superação de si mesmo” rumo à afirmação desejante. Com afirmação desejante, creio que fica em evidência uma marca fundamental, uma característica do “fazer andarilho” que venho desenvolvendo: o desejo do acompanhado é a “mola” propulsora da errância pelos dispositivos na/da “rua”.

Então, esse tipo de “clínica na rua” com o viés do desejo do acompanhado se diferencia das propostas de cunho exclusivamente pedagógico. Com isso fica claro que há vários tipos de Acompanhamentos Terapêuticos. Levando em conta esse movimento, proponho a você que o “fazer andarilho” seja um tipo de AT que se viabiliza pela estratégia do “acompanhar-esperar-questionar” e, além disso, usa o desejo do acompanhado como “bússola” das “caminhadas” na “rua”.

É a escuta da “vida trágica” do “norte” do desejo-medo do acompanhado que indica os dispositivos da/na “rua” que serão trabalhados com o uso do “acompanhar-esperar-questionar” em busca da vontade de poder. Esse é o “fazer andarilho”, de uma maneira extremamente resumida.

Após ter percorrido esse processo acompanhado por você, devo dizer que acredito que o Acompanhamento Terapêutico pode ser encarado como um dispositivo que além de transitar com o acompanhado pela “rua”, também pode circular com profissionais de outras áreas e “linhas” teóricas. Igualmente penso que os “respingos” dessa “caminhada” se lançam para além da dupla acompanhante-acompanhado. Os movimentos dos dispositivos criados na/pela “rua”, ao meu ver, podem ter efeitos igualmente políticos, onde as “duras verdades” sobre o portador de sofrimento psicológico que habitam o social, entre outras, podem ser relativizadas, para não dizer quebradas.

Então, na “rua” o at participa também de situações inusitadas junto com o acompanhado; situações-dispositivos que podem potencializar processos de exercício e de identificação da vontade de poder do sujeito que acompanhamos, através desse reconhecimento na/da “rua” poderão se processar efeitos políticos que extrapolam a dupla acompanhante-acompanhado.

Em suma, levando em conta o que foi escrito nesse trabalho, penso que o “fazer andarilho” pode ser considerado também como um dispositivo criador e descobridor de infinitos dispositivos onde a vontade de poder se mostra e se viabiliza (fortalece) também na “rua” (com seus dispositivos) para exercitar processos de superação de si mesmo… Exercícios da vontade de poder.

Após as reflexões que joguei nesse trabalho, penso que temos de nos permitir criar-brincar no fazer da Psicologia, seja ele onde for: no consultório, ou como o músico canta: “… na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé….”.

A Psicologia Tomando a “Rua” Como Setting: Referências do “Fazer Andarilho”

  1. A CASA, EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA (org.). (1991). A Rua Como Espaço Clínico: Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: Escuta, 247p.
  2. A CASA, EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA (org.). (1997). Crise e Cidade: Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: EDUC, 308p.
  3. BARRETTO, Kleber Duarte. (1998). Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco Editora, 210p.
  4. BERGER, Eliane. Acompanhamento Terapêutico: Invenções. (1997). Em: A CASA, EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA (org.). Crise e Cidade: Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: EDUC, p. 71-82.
  5. CABRAL, Károl Veiga. (2000). Acompanhamento Terapêutico: Uma Ampliação Possível Para a Clínica das Psicoses. (Monografia UNISINOS). São Leopoldo.
  6. CAUCHICK, Maria Paula. (2001). Sorrisos Inocentes, Gargalhadas Horripilantes: Intervenções no Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: Editora AnnaBlume, 142p.
  7. CIRCULAÇÃO, GRUPO DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO (org). (1998). Cadernos de AT: Uma Clínica Itinerante. Porto Alegre, 150p.
  8. DELEUZE, Gilles. (1996). O Mistério de Ariana. Lisboa: Editora Passagens.
  9. FOUCAULT, Michel. (1999). Microfísica do Poder. 14º ed. Rio de Janeiro: Graal, 295p.
  10. LOURAU, R. (1995). A análise institucional. Petrópolis: Vozes.
  11. MAUER, Susana Kuras de e RESNIZKY, Silvia. (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos. São Paulo: Papirus, 164p.
  12. MORIN, Edgar. (1996). Epistemologia da Complexidade. Em: SCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas.
  13. NIETZSCHE, Friedrich. (2000). Ecce Homo: Como se chega a ser o que se é. São Paulo: Martin Claret, 125p.
  14. NIETZSCHE, Friedrich. (1987). Para Além de Bem e Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Lisboa: Ed. Guimarães, 262p.
  15. NIETZSCHE, Friedrich. (1974). Assim Falou Zaratrusta. Em: Obras Incompletas. São Paulo: Abril, 424p.
  16. PALOMBINI, Analice de Lima. (1999). O Louco e a Rua: A Clínica em Movimento Mais Além das Fronteiras Institucionais. Em: Educação, Subjetividade e Poder. Porto Alegre. Número 6, v. 6. p. 25-31.
  17. ROTELLI, F. et. alli. (1990). Desinstitucionalização. São Paulo, Hucitec.
  18. SERENO, Deborah. (1996). Acompanhamento Terapêutico de Pacientes Psicóticos: Uma Clínica na Cidade. (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo). São Paulo.
  19. SILVA, Alex Sandro Tavares da (1999 a). Sobrenome Psi. Trabalho apresentado na IV Jornada Gaúcha de Psiquiatria: Novas Tendências na Prática Clínica. Porto Alegre.
  20. SILVA, Alex Sandro Tavares da et alli. (1999 b). A Síndrome de Asperger e o AT. Trabalho apresentado na IV Jornada Gaúcha de Psiquiatria: Novas Tendências na Prática Clínica. Porto Alegre.
  21. SILVA, Alex Sandro Tavares da. (2000 a). A “Clínica de Rua”: Acompanhamento Terapêutico. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. V. 22 – Nº 3. Porto Alegre, p. 244.
  22. SILVA, Alex Sandro Tavares da et alli. (2000 b). Acompanhamento Terapêutico & Psicologia. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. V. 22 – Nº 3. Porto Alegre, p. 243.
  23. SILVA, Alex Sandro Tavares da. (2001). “Reflexões Sobre a Clínica do Acompanhamento Terapêutico”. Trabalho apresentado no 2º Fórum de Debates da Região Sul. Home Care: Uma Visão Multiprofissional. Porto Alegre. Produção publicada no Site AT. Disponível em: < https://siteat.net > Acessado em: 10 de dezembro de 2001.
  24. SILVA, Alex Sandro Tavares da. (2002). Acompanhamento Terapêutico & Vontade de Poder: Por um “fazer andarilho” em Psicologia. Trabalho de conclusão de curso em Psicologia na UNISINOS. São Leopoldo, 85p.

Notas

1 – Esse texto está publicado como: SILVA, Alex Sandro Tavares da. A Psicologia tomando a “rua” como setting: o “fazer andarilho”. Em: JACQUES, Wilson Cleber Antunes (et al.). Histórias e Memórias de Psicologia: Trabalhos premiados no concurso comemorativo dos 40 anos de regulamentação da profissão de Psicólogo no Brasil. Porto Alegre, RS: CRP – 7º Região, 2003. pp. 73-86.

2 – Site Pessoal: http://www.alextavares.com.br

3 – Utilizarei a sigla “AT” para Acompanhamento Terapêutico e “at” para acompanhante terapêutico.

4 – A Casa (1991 e 1997), Barretto (1998), Cabral (2000), Cauchick (2001), Circulação (1998); Mauer e Resnizky (1987), Palombini (1999), Sereno (1996), etc.

5 – Silva (1999a, 1999b, 2000a, 2000b, 2001 e 2002).

6 – Gostaria que a palavra “rua” (quando utilizada com as aspas) seja tomada como metáfora nessa produção. “Rua” é todo e qualquer lugar para além do consultório. Nessa lógica “rua” pode ser a cozinha, o cinema, o museu, um bar, uma quadra de futebol, a piscina, o quarto do paciente… Em suma, “rua” é todo lugar possível de trânsito pelo acompanhado num determinado momento, para além da sala do profissional da saúde.

7 – Segundo Foucault (1999, p. 244, grifo meu): “Através deste termo (dispositivo) tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (…) entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes”. Após a leitura de Foucault, por dispositivo entendo um conjunto de forças (que englobam e criam vários “elementos”) que podem produzir processos que coloquem em movimento os desejos dos sujeitos. O dispositivo atua em todos que entram em contato com ele, provoca mudanças fundamentais que podem abalar o que até então era tido como “eternamente estável”. Com isso, o dispositivo pode ser usado para minar as “verdades”, no afetar dessas “verdades” poderá se dar a ampliação do modo como enxergamos os processos que vivemos. Ou seja, um dispositivo pode provocar um ampliar da nossa maneira de criar a/na vida. Como diz Deleuze (1996, p.83-84): “os dispositivos são (…) máquinas de fazer ver e de fazer falar”.

8 – Importante levar sempre em consideração que os dispositivos trabalham também o/no acompanhante terapêutico, por isso a necessidade de supervisões (outros olhares), dai também a importância do que os institucionalistas (Lourau, 1995 e Rotelli, 1990) chamam de “análise de implicação” que remete a necessidade de um trabalho terapêutico também para o próprio at.

9 – Optei por utilizar a tradução “vontade de poder” do original em alemão Wille zur Macht mesmo correndo o risco de alguns leitores tomarem o “poder” num único sentido de proclamação do nazismo, entendimento que o autor do referido conceito não quis dar (apesar de alguns pensadores terem tentado forçar esse entendimento colando o pensamento nietzschiano a essa ideologia). Finalmente é importante deixar claro que dependendo do tradutor dos textos de Friedrich Nietzsche poderemos encontrar também:”vontade de domínio” e “vontade de potência” como possíveis interpretações de Wille zur Macht.

10 – O nome e outros dados da acompanhada foram intencionalmente alterados para tentar manter o sigilo clínico necessário.

Autor

Alex Tavares.

Tags:, , , , , ,

3 thoughts on “A Psicologia Tomando a Rua Como Setting: O Fazer Andarilho do Acompanhamento Terapêutico”

  • http://Luciane%20de%20Oliveira%20Rocha

    Maravilhosos trabalho.Veio como uma estrela norteadora do meu atual trabalho quanto psicoterapeuta.A construção esclarecimento e proposição desta nova prática faz um sentido amplo e profundo na contemporaneidade, no cotidiano.Na prática terapêutica mesmo.Uma possibilidade de resposta adequada e fidedigna para nova demanda que brota.Parabéns por esse trabalho de vanguarda.E obrigada.
    Luciane de Oliveira Rocha
    Crp 08/09610

    • Prezada Luciane.
      Muito obrigado pelas suas palavras!!!
      Fico muito feliz que este artigo (A Psicologia tomando a “rua” como setting: o “fazer andarilho”) continue provocando efeitos tão belos como o que você relata.
      Bom trabalho cara colega!!!
      Abração!!!

Comente aqui.

%d blogueiros gostam disto: