A inserção do Acompanhamento Terapêutico na vida escolar
1. Apresentação
Desde o início de minha prática como acompanhante terapêutico na área escolar, sempre existiu o desejo de reunir as informações, os dados, as percepções dos atendimentos em um artigo, e com a oportunidade da realização do curso de capacitação em acompanhante terapêutico, bem como a organização necessária do material armazenado durante os anos de 2005 a 2008 para aula ministrada sobre o mesmo tema, surge o momento, então, de agregar e discutir a inserção do AT na vida escolar.
Em um outro âmbito, podemos pensar no entrelaçamento da psicologia (AT) e da educação como instrumentos que, unidos, pensam e auxiliam nas questões escolares que denunciam dificuldades. Ou seja, quando o sofrimento psíquico revela-se na vida escolar, nos primeiros enfrentamentos, nas primeiras relações sociais extra-familiares.
Palavras-Chaves: Acompanhamento Terapêutico (AT); Psicologia e Educação.
2. Introdução
A característica diferencial do trabalho do acompanhante terapêutico é o atendimento psicológico em outros settings terapêuticos e aplica-se nas mais variadas áreas de necessidade do ser humano.
O presente artigo visa refletir sobre a Inserção do Acompanhante Terapêutico (AT) na Vida Escolar. Uma nova vertente, um novo espaço e, como vêm se mostrando, uma importante forma de atuação do acompanhante terapêutico, que apresenta-se como, dentre várias funções, uma forma de prevenção do sofrimento psíquico na vida escolar.
Para pensarmos esta nova forma de atuação, apresento neste artigo uma breve reflexão dos objetivos, das funções do acompanhante terapêutico, bem como o perfil do aluno encaminhado para o AT, inseridos em meu contexto profissional, o Projeto Ex-Cola – Acompanhamento Escolar, projeto este criado em agosto de 2005, destinado a auxiliar alunos do ensino fundamental e do ensino médio, já tendo contemplado universitários.
3. Objetivos do AT na Vida Escolar
O “Projeto Ex-Cola – Acompanhamento Escolar” visa ser um auxílio ao aluno nos momentos de dificuldades|crises que podem surgir, por inúmeros motivos, desde o início da vida escolar, e tem como objetivo principal investigar e compreender as questões que podem estar interferindo|dificultando|bloqueando a aprendizagem e que, quando trabalhadas, transformam o processo de aprendizagem em processo terapêutico.
O AT Escolar, auxiliará ao aluno na dificuldade de aprender, na dificuldade de realizar|organizar as atividades escolares, estimulando a criatividade, a imaginação e as potencialidades, de forma a desmistificar crenças de incapacidades, oriundas dos momentos de crise, buscando o fortalecimento da auto-estima e da auto-confiança e a ter, como foco principal, uma rotina.
Assim sendo, o AT Escolar pode ser visto como um agente facilitador do processo de escolarização e integrador da rede “aluno-família-escola-e-demais profissionais” envolvidos no atendimento desta criança|adolescente. O AT será um parceiro, um incentivador da criação de um novo modo de ser e agir do aluno, acompanhando sua rotina escolar, buscando compreender como este aluno aprende, estimulando, assistindo, integrando os profissionais envolvidos na formação desta criança ou adolescente, organizando hora e local de estudo em casa, levando em consideração desde o espaço físico (até mesmo a claridade, iluminação do local), como o silêncio e o conforto, itens de suma importância, os quais denomino “agentes facilitadores da aprendizagem”.
O acompanhante terapêutico que optar em trabalhar nesta área, a escolar, deverá estar ciente da necessidade de circulação nos âmbitos familiar, escolar e de rede de atendimento dos demais profissionais que atendem a este aluno.
Com relação à família, será um agente que intermediará os conflitos escolares que desgastam as relações do aluno com seus pais (familiares ou responsáveis), pois insere-se de forma a organizar algo que a família não está conseguindo fazer, gerando brigas, desentendimentos, castigos etc. Sob um outro foco, será um agente que com seus conhecimentos, esclarecerá à família o funcionamento desta criança|adolescente, desmistificando, muitas vezes, a crença da família que julga que seu filho (a) possui algo muito mais grave do que a realidade mostra. Algumas vezes, fazendo o movimento contrário: a família crê na “simplicidade” da dificuldade quando, infelizmente, o comprometimento do aluno é mais significativo do que era esperado. Muitas vezes, o aluno visto como desinteressado, “vagabundo”, “sem vergonha” pode apresentar comprometimentos muito maiores do que a família imaginava, sendo investigado através de psicodiagnósticos, avaliações psiquiátricas, neurológicas dentre outras. Não são poucas as vezes nas quais são necessários encaminhamentos para psicoterapia, psiquiatria e avaliações diagnósticas amplas.
De certa forma, no que diz respeito à escola e à família, o AT será um interlocutor na mediação entre o ideal do professor|família e a realidade que o aluno apresenta. Na escola, abrirá um espaço de discussão acerca da realidade das dificuldades deste aluno, muitas vezes auxiliando no processo de inclusão escolar, buscando uma igualdade de oportunidades, trabalhando o direito e, principalmente, o sentimento de pertencimento à sociedade (um grupo), a uma cultura, gerando, assim, um sentimento importante, significativo de acolhimento e compreensão.
Com relação à equipe multidisciplinar, o AT atuará como um elo de ligação dos profissionais, um agente integrador de informações, das informações levantadas, bem como será capaz de disseminar estes dados, quando necessários à compreensão do funcionamento deste aluno, utilizando sempre estas informações de forma ética e sigilosa.
4. Funções do AT na Vida Escolar
De certa forma, algumas funções do AT na vida escolar já foram contempladas acima. Entretanto, acrescento às funções acima, as funções que Cenamo, Prates e Barretto (1991) consideram como funções do AT e que, certamente, serão identificadas e realizadas no contexto escolar.
Além de proporcionar um lugar, um espaço, uma voz ao aparecimento de interesses, de uma individualidade|singularidade, sob o ponto de vista de ser um ego auxiliar, o “acompanhar” significa “pensar junto”. Para Mauer e Resnizky, o AT deve tender a reforçar as defesas de adaptação adequadas e ajudar a desenvolver novos mecanismos de defesa, mostrando à criança ou ao adolescente que, frente a uma determinada situação há modos diferentes de se reagir. Referem, também, como sendo funções do AT: conter o paciente (em nosso caso, o aluno), perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente, informar sobre seu mundo objetivo, atuar como agente ressocializador e servir como catalizador das relações familiares.
Retomando Cenamo, Prates e Barreto (1991), o AT exercerá a função de modelo de identificação, permitindo que o paciente (aluno) projete e reconheça nele o que deseja ser ou desenvolver. O AT, através de atitudes interpretativas, aliviará os níveis de ansiedade do paciente (aluno), contendo suas angústias e através da função especular, promoverá ao paciente (aluno) suas próprias características, sendo um interlocutor de desejos e fantasias, passando da esfera da necessidade para a esfera do desejo. Muitas vezes, na prática escolar, pode-se claramente identificar em algumas frases dos alunos do tipo: “eu preciso mesmo fazer isso?” (necessidade) para a frase: “eu quero fazer tal atividade” (desejo).
As funções que Eggers (1985) cita acerca do acompanhamento terapêutico são visíveis no âmbito escolar. São elas:
Com relação ao paciente (aluno):
- estar próximo ao paciente (aluno), diminuindo seu sentimento de solidão; (aqui, grifo a tabela do perfil do aluno encaminhado para acompanhamento, onde a solidão está presente);
- auxiliar o paciente (aluno) a planejar, organizar o pensamento, a estruturar hábitos, a reorganizar condutas mais adaptativas, auxiliando nas suas novas decisões, quando este se propõe a fazer algo novo, a enfrentar a nova conduta;
- estimular capacidades latentes;
- auxiliar no working through;
- agir como um superego, examinando com a criança|adolescente os seus limites;
- manter o vínculo terapêutico, caso o paciente (aluno) troque de terapeuta;
- executar com o paciente (aluno) um programa de atividades físicas e recreativas (dependendo de cada caso).
Com relação à família:
- fomentar novas formas de comportamento familiar;
- baixar os níveis de ansiedade;
- avaliar o paciente (aluno) em sua família, no seu ambiente – que papel ou função ele representa? O que ele “denuncia”?
Com relação à equipe:
- ser um indicador sensível; ou seja, informar sobre os efeitos da psicoterapia;
O acompanhante terapêutico é capaz de informar pois é testemunha e porta-voz do processo terapêutico. Ele é uma testemunha do que ocorre nas situações cotidianas, reconhece o processo que está acontecendo e identifica as novas produções e conquistas deste aluno. Por isso, é capaz de informar.
O acompanhamento proporciona um olhar integral ao acompanhado e ao processo em andamento. Nas séries iniciais, fornece uma atenção especial aos primeiros objetos de identificação da criança, está atento às influencias que estes podem causar e no que podem interferir, assim como está atento às primeiras vivências grupais escolares, aliando à compreensão da primeira vivência social, a família. Lembrando Kupfer (2000), identificação não é uma mera imitação.
O acompanhante fornecerá holding, a segurança necessária para a formação de um ser humano saudável, assim como proporciona a escuta dos medos e anseios deste cidadão em formação, trabalhando as questões de desânimo e descrença, motivando-o, visando uma autonomia de pensamento e desta autonomia, deste pensamento, ações. Novas ações.
Da mesma forma, o acompanhante auxiliará no vínculo professor-aluno e aluno-professor, promovendo uma compreensão, um entendimento mútuo, fortalecendo e qualificando esta relação, proporcionando melhores e significativas condições de aprendizagem.
Por fim, o acompanhante terapêutico na área escolar é capaz de mostrar para o aluno e para a equipe envolvida (incluindo a família), que este é um ser que aprende, que se emociona e que interpreta o mundo conforme suas vivências, sua personalidade e suas percepções e que para cada aluno há necessidades especiais, específicas. Não existe uma fórmula, muito menos, uma fórmula única de intervenção. Para cada aluno, uma técnica. Para cada dia, de cada aluno, talvez, uma técnica diferente.
5. Análise de Demanda
A tabela abaixo revela o perfil dos alunos encaminhados para o acompanhamento escolar, considerando dados atualizados dentro do período de agosto de 2005 a junho de 2008.
Definição | Números | Observações |
Total de alunos atendidos | 24* | *Sendo 01 adulto |
Número de meninas | 11 | |
Número de meninos | 13 | |
Procura sem retorno | 04 | |
Raça | Negros: 06 Brancos: 15 Outros: 03* |
*Bugre |
Escola | Pública: 14 Particular: 10* |
*Sendo uma Universidade |
Idades | 06 anos: 02 alunos 07 anos: 01 aluno 08 anos: 03 alunos 09 anos: 04 alunos 10 anos: 02 alunos 11 anos: 06 alunos 13 anos: 02 alunos 14 anos: 01 aluno 15 anos: 01 aluno 17 anos: 01 aluno Outros: 34 anos* |
*Universitária |
Índice de repetência | 03 alunos | 3 meninas (2 adoções e 1 procura tardia pelo AT*) * novembro. |
Filhos biológicos | 17 | |
Filhos adotivos | 07 | Tipo de adoções:- Adoção paterna: 01 – Adoção materna: 03 – Adoção casal heterossexual: 03- Situação da criança no momento da adoção:- Doação Intrafamiliar: 01 – Adoção via abrigo: 01 – Adoção direto hospital: 02 – Doação da família: 03 |
Situação familiar | Pais casados: 07 Pais separados: 11 Apenas pai: 01 Mãe + família materna: 03 Apenas avós: 01 Adulto independente: 01 *Ênfase: Novas configurações familiares. |
Com relação a irmãos:- Irmãos recasamento do pai: 06 – Irmãos recasamento da mãe: 03 – Com irmão (mesmo pai e mesma mãe): 10 – Sem irmãos: 05* (*) sendo 01 apenas sem irmãos e 04 – adotivos – com irmãos na família biológica. |
Dificuldades observadas | – Depressão – Solidão – Transtornos de Ansiedade Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) – Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) -Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) Abuso Sexual – Violência Doméstica – Tourette |
Pais:- ausentes devido ao trabalho – ausentes|desinteressados – presentes, interessados – presentes e “radicais” – cobranças em excesso |
Situações de risco | 02 | – Violência doméstica – Risco de suicídio |
A análise de demanda, sem dúvida, nos renderia mais alguns artigos, para cada item de definição: o fato de ser menina ou menino, as procuras sem retorno, as raças, as reflexões acerca de escola pública ou particular, filhos biológicos e adotivos, as situações familiares, as peculiaridades e curiosidades, bem como as histórias tristes e engraçadas vivenciadas em cada atendimento. Um universo de possibilidades de reflexão. Vinte e quatro histórias. Certamente escritas nos próximos artigos.
6. Conclusão
O acompanhamento terapêutico na área escolar, neste artigo de certa forma representado pelo Projeto Ex-Cola, visa ser um auxílio ao aluno nos momentos de dificuldades|crises, que podem surgir por inúmeros motivos, desde o início da vida escolar.
A prática do AT Escolar é uma atividade extremamente gratificante.
Dentre as principais dificuldades, ou desafios, encontra-se o desafio na atualidade de mostrar a importância da educação na vida das pessoas, pois, na grande maioria dos alunos (não incluindo séries iniciais), há a idéia de que as atividades que realizam não contribuem em sua formação, e de que certos trabalhos solicitados não lhes serviram ou servirão para nada. Da mesma forma, é fácil de perceber o quase nulo interesse pelo desejo de aprender. Isso torna-se preocupante: a ausência de “sentido” e “desejo”.
Nesta hora, a paciência, a tolerância deverá se fazer presente devido à necessidade de argumentação. Auxiliá-los a construir um sentido no que irão produzir torna-se imperativo. Demonstrar a importância de uma atividade, de uma disciplina não é tarefa fácil, quando temos concorrendo com o sofrimento de aprender, vídeo-games e jogos eletrônicos de computador.
Outra questão importante, ainda dentro dos desafios, é a questão do tempo. Cumprir o cronograma escolar, cumprir datas de entrega de trabalhos, preparar-se, dentro de um espaço de tempo, para uma prova. O tempo, no AT Escolar, é diferente do tempo da psicoterapia de setting tradicional, ou do próprio AT tradicional. Pois o aluno terá que cumprir suas tarefas com datas. E, quando pensamos em psicoterapia, o tempo será aquele necessário para refletir, lembrar|relembrar, elaborar que o paciente necessitar. Sem prazo delimitado. E, pensando em um outro conceito, resistência, talvez, seja um “luxo” que uma criança ou um adolescente, para as atividades escolares, tenha que lutar contra, em um curto espaço de tempo. Enquanto a resistência no setting tradicional será “tratada” de uma outra forma. Mas, em algumas situações, a resistência vencerá. Não há como, em determinados momentos, por mais que se tente “convencer”, argumentar para um aluno que não está aberto a aprender. Caberá lidarmos com a frustração.
Dos desafios já comentados, é impossível não falar sobre acompanhar alguém que está dentro de seu próprio território, sua casa, muitas vezes, trabalhando dentro de seu próprio quarto. Seu território maior. Por outro lado, estar frente-a-frente com as situações e os seres significativos do acompanhado, nos permitirá ter uma visão “in loco” das questões que permeiam os conflitos e o seu sofrimento.
Contudo, como disse anteriormente, a prática do AT Escolar é extremamente gratificante. Ver uma criança ou um adolescente (até mesmo o universitário citado na tabela) atingindo seus objetivos, rompendo suas dificuldades e realizando seus sonhos é uma emoção muito grande. Trata-se de uma atividade desgastante, porém importante na formação do ser humano. Das pequenas às grandes conquistas.
Muitas vezes, nosso trabalho não será atender às demandas escolares. Muitas vezes, será intermediar a relação da mãe com um filho adotivo, de uma etnia e de um funcionamento completamente diferente do de sua mãe. Imagine uma mãe de origem italiana com um filho adotivo bugre. Imagine os funcionamentos e os ritmos diferentes de cada um.
Da mesma forma, imagine-se chegando à casa de uma criança e ouvindo uma mãe dizendo a ela que não a deseja mais, que quer “cair no mundo” e que caso a família não permita, ameaça suicidar-se. E o que dizer do menino que ainda lembra, antes de ser adotado, do gosto do chá de papelão que sua mãe fazia para passar sua dor no estômago? Mais tarde, ele compreenderá que essa dor é a dor da fome. E entenderá a intenção da mãe. Por enquanto, cabe-nos nomear e apresentar outras e novas questões. Um fato é inevitável: cada criança tem sua história e dela um fator importante entrelaçado com a dificuldade escolar. Certamente muito maior e, às vezes, muito mais traumática do que imaginávamos. Isso é um fator surpreendente da prática.
Não poderia deixar de mencionar, por fim, que, acima disso tudo, estão crianças sedentas por um olhar, por limites, afeto, atenção, por uma ajuda na organização de seus afazeres, por vários motivos: seja pela ausência por trabalho dos pais, seja pela ausência emocional, afetiva, quando muitas vezes têm os pais “perto-longe” – perto fisicamente, longe emocionalmente.
7. Referências
- CENAMO, PRATES E BARRETTO (1991), EGGERS (1985), MAUER e RESNIZKY (1987) Algumas funções do Acompanhamento Terapêutico. (http://siteat.vilabol.uol.com.br/funcao.htm)
- KUPFER, Maria Cristina. Freud e a Educação. Scipione: São Paulo, 2000.
- RAMOS, Roberto Carlos. A Arte de Construir Cidadãos – As Quinze Lições da Pedagogia do Amor. Celebris: São Paulo, 2004.
- RIEZ, Bruno E; RODRIGUES, Elaine Wainberg (orgs.) Psicologia e Educação – Fundamentos e Reflexões. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2004.
- Site AT – https://siteat.net/
Autora: Alice Peres Duarte – Psicóloga. Membro do Setor de Psicopedagogia da CTW. Coordenadora do Setor de Acompanhamento Terapêutico e do Clube de Amigos da CTW. Autora do Projeto Ex-Cola – Acompanhamento Escolar. Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. Fone: (51) 9915-6528. E-mail: [email protected]
Tags:escola, Psicologia