Autores:
- Camille Gavioli – Psicóloga; membro da equipe do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP.
- Flávia Ranoya – Psicóloga; membro da equipe do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP.
- Renata Abbamonte – Psicóloga; membro da equipe do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida do IPUSP.
- Apresentado no Colóquio do LEPSI IP/FE-USP: “Psicanálise, infância e educação”, Ano 03., outubro de 2001, São Paulo.
Este trabalho apresenta reflexões sobre duas experiências distintas de acompanhamentos educacionais realizados em escolas regulares que se propõem à inclusão.
A primeira experiência diz respeito ao acompanhamento terapêutico, uma prática cada vez mais usual nas escolas particulares, que tem como meta propiciar a inclusão de crianças que possuem algum comprometimento no desenvolvimento. No entanto, observamos que esta prática não tem sido suficientemente debatida e questionada pelos meios educacionais. Nossa tentativa aqui é abrir um espaço para a interlocução com a educação, pois entendemos que a função do acompanhante terapêutico nas escolas precisa ser revista.
A segunda experiência, realizada pela equipe do Projeto Incluir, possibilitou a inclusão de uma aluna através do acompanhamento à equipe escolar.
A psicanálise de orientação lacaniana é o instrumento teórico-prático que tem nos ajudado a pensar nas especificidades existentes nestas práticas distintas de acompanhamentos nas escolas devido principalmente à sua relação com a educação e com a clínica da infância.
Acompanhamento terapêutico: o acompanhamento ao aluno
Retomemos a definição sobre o Acompanhamento Terapêutico. Resumidamente, o acompanhamento terapêutico é uma modalidade de atendimento cuja proposta é de auxiliar os pacientes que apresentam distúrbios graves e que estão à margem da sociedade, em sua reintegração social. Esse nome é dado oficialmente aos ATs que trabalham nas ruas, fora de qualquer instituição e tem sido um termo utilizado, por empréstimo, para identificar esta prática na escola. O empréstimo do termo pode ser entendido pela função que o acompanhante possui em escutar, dar voz e encaminhar in locus, as construções particulares que os sujeitos encontram como saídas possíveis para as diversas problemáticas que enfrentam no laço social.
Mas para a educação, o pedido da presença de um AT está relacionado, na maioria das vezes, à demanda de que ele possa responder pelas atitudes e pela educação da criança ainda não adaptada ao universo escolar e com a qual, o corpo docente acredita não saber lidar.
Estamos abordando casos de crianças que apresentam Distúrbios Globais do Desenvolvimento, DGD (classificação psiquiátrica que engloba os casos de psicose, autismo e neuroses graves na infância), aquelas que por uma falha na constituição subjetiva, não têm instalado o desejo de saber ou a curiosidade em aprender.
Quando a escola se depara com crianças que resistem à aprendizagem, é despertada a vivência de insuficiência nos educadores, ou seja, a vivência de que não conseguem ensinar estas crianças. Ora, os alunos que resistem à aprendizagem, contestam, de maneiras particulares, a eficácia da técnica e da educação formal estabelecida pela norma educativa.
De fato, decifrar o que querem dizer estes atos de resistências dos alunos não é tarefa simples, uma vez que apontam para a própria resistência da escola em se desprender de seus ideais.
Diante destes casos fica imaginariamente reforçada, para os educadores, a idéia de que haveria um problema localizado exclusivamente na criança. Desta maneira, passam a acreditar que para estes alunos que não aprendem o conteúdo formal, a saída seria a educação especializada.
Neste sentido, algumas escolas encontram no AT a possibilidade de resolver este impasse, pois ele uniria – dentro do imaginário escolar – a função de ser um suposto especialista, ou seja, o portador do saber sobre o aluno com distúrbios no desenvolvimento, trabalhando dentro de uma escola não especial.
Como então o AT se posicionaria diante desta demanda escolar? Como acolher e manejar esta situação no sentido de poder engajar a escola enquanto uma instituição responsável em educar crianças, independentemente de serem, ou não, especiais?
Apresentaremos a seguir um caso que nos possibilitou a abertura de interrogações sobre as funções do AT, assim como as vantagens e desvantagens deste profissional dentro da escola, que teria como direção de seu trabalho incluir esta instituição no processo de inclusão do aluno.
Este relato consiste na inserção de Rafael, de sete anos, no jardim II. Esse aluno já freqüentava a escola há dois anos e segundo a coordenação, “ainda não estava aprendendo”. Diante desta impossibilidade da escola em ensiná-lo, decidiram chamar um acompanhante, que estaria ao lado de Rafael o tempo todo durante a rotina escolar, a fim de ajudá-lo nas atividades, para que se desenvolvesse, principalmente, nos aspectos cognitivos.
O enquadre deste trabalho foi estabelecido pela escola e aceito pelo AT que, a partir de sua entrada, pôde perceber que esta criança demandava intervenções intensas direcionadas na instauração de uma linguagem no lugar de suas manifestações corporais. Rafael apresentava uma fala estereotipada, repetitiva, com um repertório muito curto e fixo (dirigia-se várias vezes à mesma pessoa para dizer “Oi, tudo bem?”, “Qual o seu nome”?); não conseguia se situar diante das regras, tendo dificuldade de aderir a elas; tinha uma reação corporal de resistência aos limites (reagia agressivamente) e às mudanças (largava o corpo, recusando-se a sair do lugar).
O início desse trabalho caracterizou-se, portanto, por um momento de ambientação e observação do que se passava na relação de Rafael com a classe. Foi ficando claro ao AT, que seria preciso colocar em palavras os atos bizarros e abruptos que Rafael manifestava, uma ação que iria no sentido de conter o imaginário que estas ocorrências desencadeavam na professora e nos outros alunos, ocorrências estas que poderiam tomar proporções ainda maiores.
Um exemplo mais recente disto se deu quando Rafael, num momento em que se colocou fora da situação de roda, ameaçava, como já havia feito anteriormente, empurrar a carteira na direção dos colegas. Este ato de Rafael foi contido pelo AT, que evocando a participação da professora nesta situação, pôs em palavras sua leitura de que ele estava tentando dizer algo para o grupo, ou seja, havia a suposição de que seu ato era uma manifestação de que talvez quisesse se incluir no grupo.
Neste caso, o AT realizou a função de ser porta-voz do aluno, indicando para ele e para os outros a possibilidade de ser reconhecido não só como aquele que “bagunça, atrapalha e detona”. Uma intervenção como esta pode proporcionar a essas crianças, a saída do lugar estigmatizado que muitas vezes ocupam na escola. Para o professor, esta leitura cria a possibilidade de que ele se espelhe no AT e passe também a supor que o aluno tenha algo a dizer.
O acompanhante funciona, então, como testemunha do que acontece nas situações cotidianas que o aluno vivencia na escola, possibilitando o reconhecimento de suas produções, assim como de suas conquistas. Um exemplo disto se deu em uma situação em que a professora demandou que Rafael lesse a palavra chocolate e ele o fez corretamente. Este fato causou surpresa, pois ele supostamente não estava alfabetizado. O AT pôde, com sua presença, validar a ação de Rafael, sublinhando-a como uma conquista.
Fica claro que nem sempre estas crianças responderão aos educadores de maneira típica. Neste sentido, a presença de um outro funciona como um interlocutor, fazendo a mediação entre o ideal do professor e a realidade que o aluno lhe apresenta.
Estas são algumas das funções do AT na escola que podemos destacar neste trabalho, que vão na perspectiva da Educação Terapêutica, quer dizer, de alguém que sustenta para a criança as regras que regem aquela instituição, ao mesmo tempo em que dá lugar, dá voz ao aparecimento de seus interesses, da subjetividade do aluno. Como diz Kupfer, “a proposta da Educação Terapêutica é instituir o simbólico em torno do real; não é apenas educação em seu sentido clássico, pois não visa moldar a criança ao ideal do eu do educador (…) Precisa apresentar materiais, sugerir caminhos (…) Ao mesmo tempo, deve escutar o pouco de sujeito que ali por vezes emerge” (2000, p. 115-6).
Os efeitos destas intervenções eram visíveis, Rafael não mais fazia xixi na calça ao ouvir um não, assim como passou a mentir para poder sair da sala de aula. Mas estas mudanças não eram reconhecidas pela escola que insistia na presença do AT para “auxiliar a professora no trabalho com Rafael, pois ela não daria conta sozinha”. É interessante que, ao falar que queria manter o acompanhante para auxiliar a professora, a escola estava dizendo, não mais de uma dificuldade de Rafael, mas de uma dificuldade dela em não conseguir dar o suporte necessário para o trabalho da professora. Entretanto, não abria espaço para esta discussão, não assumindo a parte de responsabilidade que lhe cabia na inclusão de seu aluno (que era, de fato, aluno da professora e da AT).
O resultado disto foi que, aos olhos da escola, ficou centrada em Rafael a incapacidade, o que a afastou do confronto com suas próprias incapacidades. O fato de Rafael ainda precisar, segundo a escola, de um acompanhante o tempo todo, de certa forma apagava seus avanços, como também impedia a instituição de rever sua prática educacional.
Concluímos então, um acompanhamento de perto, no espaço onde se constroem laços sociais, abre a possibilidade para uma criança que ainda não fez essa construção, estar e permanecer na escola. O AT é, sem dúvida, um agente facilitador deste processo de escolarização, o qual sem sua presença, pode ser desestruturante e insuportável para a escola e para a criança.
É possível de se pensar, sim, num acompanhante que também produza questões na escola, que a faça sair do lugar, movimentar-se. Para tanto, ele precisa transitar pela instituição, sempre atento a quando e como deve fazer sua entrada em sala de aula e não lá permanecer esquecido e excluído junto ao aluno.
O Acompanhamento à escola
Ana, de oito anos, tinha hipótese diagnóstica de DGD e iria para a primeira série, em uma outra unidade da escola em que já estudava.
Após alguns encontros com a direção da escola, decidimos que o trabalho aconteceria por meio de supervisões com a própria direção e os cinco professores de Ana. Desde o início havia o pedido de que estivéssemos com a aluna em classe, pois a diretora queria que observássemos como a criança se comportava.
No início destes encontros, a equipe encontrava-se extremamente queixosa de Ana, diziam não saber o que fazer com a aluna, que segundo a coordenação, chorava intensamente, não parava na classe, batia nos professores e soltava gritos repentinamente.
A coordenação nos enderereçava a demanda de que pudéssemos responder sobre o que eles deveriam fazer com Ana. Nos perguntavam se ela era capaz de suportar a introdução dos limites e se era capaz de entender o que falavam, já que não se comunicava verbalmente com eles e mal respondia aos seus pedidos. Fazemos um parêntese de que Ana não tinha nenhum comprometimento orgânico que justificasse o fato dela não falar.
Em nossas reuniões com a direção, eram freqüentes as visitas de Ana na sala onde estávamos. Quando isto acontecia observávamos que a equipe não realizava intervenções que a impedisse de estar ali, num local onde os outros alunos não podiam circular. Para Ana parecia ser permitido fazer o que queria, ela transitava pelas classes, ficava na sala da direção com os adultos. A equipe escolar não se dirigia a ela no sentido de interpretar a sua intenção de estar com os adultos, nem tão pouco barrava a sua permanência ali.
Diante desta paralisação que Ana causava na equipe escolar, entendemos que era preciso, naquele momento, acolher a angústia que viviam pelo inusitado que aquela aluna desencadeava, mas também era preciso começar a questioná-los sobre o fato de deixarem Ana circular pela escola e de não introduzirem as leis da instituição, leis fundamentais para todos os alunos e principalmente para uma aluna como Ana que parecia perdida diante desta nova situação escolar.
Estas primeiras intervenções foram no sentido de tentar resgatar, junto à escola, sua possibilidade de educar a aluna, mesmo que isto pudesse provocar reações inesperadas (gritos, choro, etc.).
As dúvidas trazidas pela escola: se Ana era uma criança inteligente, se poderia ser educada como os outros e se deveria estar na escola regular, eram freqüentes, assim, insistiam no pedido de que a observássemos em sala de aula para que avaliássemos o quão difícil era a tarefa de mantê-la na classe.
Acolhemos esta demanda, sem, no entanto, atendê-la, justamente por supormos que os próprios professores poderiam lidar com estes impasses. Propusemos, então, por meio de encontros individuais com estes professores, a reflexão sobre sua prática, na intenção de resgatar os interesses que Ana apresentava e assim ajudá-los a pensar em maneiras de aproveitar os próprios recursos dela, conciliando-os com a temática das aulas.
Neste sentido, uma intervenção significativa ocorreu a partir de uma idéia do professor de Educação Física. Este sugeriu que Ana tivesse a companhia de um outro aluno para ajudá-la tanto nas atividades, quanto a permanecer na classe.
Essa parceria com os colegas propiciou que Ana se interessasse pelas atividades da classe. Uma professora percebeu seu interesse e sugeriu que a aluna tivesse a mesma apostila dos outros. Após estas intervenções, foram feitos diversos comentários sobre Ana no sentido de supor que ela sabia ler, que estava falando diversas palavras e que respondia às demandas escolares.
Foi interessante acompanhar como a equipe foi conseguindo se desfazer da idéia inicial que tinham de Ana, a idéia de que talvez não fosse aquela escola o lugar para ela. Este Acompanhamento, sustentado pela escuta, abriu espaço para que estes professores, ao restituírem seu lugar de educadores, percorressem o caminho, da queixa e da impossibilidade de trabalhar com a aluna, para a construção de uma educação possível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Lajonquière, L. (1999). Infância e Ilusão (Psico) Pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes.
Jerusalinsky, A. (1997). A escolarização de Crianças Psicóticas. Estilos da Clínica: revista sobre a infância com problemas. São Paulo, IPUSP, ano II, vol. 2, p. 59.
Kupfer, M. C. (2000). Educação para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo, SP, Escuta.
Patto, M. H. S. (1993). A Produção do Fracasso Escolar. São Paulo,SP, T. A. Queiroz, 3a. edição.
Vorcaro, A. (1996). Psicanálise e Prática Interdisciplinar. Revista Pulsional. São Paulo, SP, ano IX, vol.87, pg. 41.
Fonte:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000032001000300020&script=sci_arttext&tlng=pt
Artigo publicado no “Site AT” em 23/12/2004.
Tags:escola, Psicanálise