Acompanhamento terapêutico de pais com patologias psíquicas e seu bebê

Resumo: O presente trabalho visa relatar minha experiência como Acompanhante Terapêutica de Pais-bebê. E também trazer algumas reflexões sobre a posição que este profissional pode ocupar, em situações onde os pais são psicóticos. Sem prevalecer o objetivo assistencial tão empregado atualmente nas instituições para os serviços de acompanhantes, minha proposta é analisar a singularidade deste trabalho e propor uma direção clínica para este acompanhamento. A partir dessas questões fui delimitando minha direção para o acompanhamento. Este trabalho é o resultado de uma parceria com o Caps – Centro de Atendimento Psicossocial – SP e o Infans-Unidade de Atendimento ao Bebê-SP. Irei apresentar a vocês uma pintura em construção3, uma obra inacabada. Uma reconstituição de minha experiência clínica como acompanhante terapêutica. Essa história foi reformulada e escrita, respeitando as leis da gramática, com isto, o presente relato ao tomar-se pela materialidade, marca a distância entre a realidade e a história aqui relatada, transformando-se em uma ficção. Este trabalho foi delineado a partir de uma parceira do Infans – Unidade de atendimento ao Bebê e o Caps-Centro de atendimento psicossocial de São Paulo. Apresentarei primeiramente algumas informações sobre esse acompanhamento, em seguida relatarei as reflexões teóricas que fiz até presente momento na tentativa de formalizar esse trabalho.

Therapeutic Accompaniment

Acompanhamento terapêutico de pais com patologias psíquicas e seu bebê

 

Encaminhamento: Maria, como vou chamá-la, tem diagnóstico de esquizofrenia, foi encaminhada pela analista, estava em análise há alguns meses, e a indicação de uma Acompanhante terapêutica surgiu na proximidade do parto. Maria trabalhava como copeira, residi numa Moradia Assistida, supervisionada pelo CAPS, onde também residem outras pessoas com patologias psíquicas. Seu namorado que vou chamá-lo de João, também reside na moradia.

Na maternidade: Meu primeiro encontro com Maria foi à maternidade, logo após o parto. Após me apresentar, e conversarmos um pouco sobre como foi o parto. Maria dizia que não havia visto Lisa direito, dizia não ter visto seus olhos abertos, sua cor parecia escura, e demorou em chorar. Disse a ela: Você quer que eu vá até ao berçário? Ela respondeu prontamente que sim, recomendando que eu olhasse para os olhos de Lisa e verificasse se estavam abertos. Ao retornar do berçário relatei como Lisa estava, o peso, a altura, sua cor, seu choro. Maria ficou mais tranqüila, e pediu para eu ligar para o pai de Lisa, para lhe contar o que eu havia visto no berçário. O pai que ainda não conhecia, dizia repetidamente ao telefone: “você viu como minha filha é linda”, agradeceu a ligação e mandou um abraço para Maria.

O Primeiro encontro com a filha Não participei do primeiro encontro com Lisa, foi de madrugada. Ao chegar no dia seguinte ao Hospital, Lisa já mamava no peito de Maria.

Encontro com o pai: O pai chegou para visita no mesmo horário que eu, Lisa estava deitada na cama só com a fralda, Maria estava ao lado. João chega bem perto do rosto da filha e a chama pelo nome durante várias vezes. Maria aponta para o João, os sinais no rosto de Lisa que são parecidos com os dele. O pai parece tomado por aquele momento, parece não ouvir os comentários ao seu redor, só vê Lisa, seu olhar se enche de sentido. Maria me pergunta sobre como irá saber se sua filha está ou não com frio. Perguntei se Maria estava com frio, ela disse que sentia um vento gelado, nesse instante resolve colocar o macacão na filha.

Saída da Maternidade: Nos primeiros dez dias, após o parto Lisa precisou ficar no hospital, devido uma “sífilis presumida”. Perguntei se ela sabia o porque que Lisa deveria ficar. Maria diz que não tinha entendido direito o que a médica havia dito, estava com medo que pudessem roubar sua filha. Conversei com a médica, e disse a Maria que ela poderia ir todos os dias ao hospital e permanecer o tempo que quisesse com Lisa, falei sobre a segurança do berçário, e o motivo do tratamento. Maria deixou o berçário com os olhos cheios de lágrimas. Durante o período de internação Maria foi todos os dias ao hospital.

De volta para casa No primeiro dia de visita a casa, combinei com Maria e João, os dias da semana que faria o acompanhamento.

Colo: Maria segurava sua filha o tempo todo, constantemente a mudava de posição, não havia uma contenção do corpo desse bebê. Lisa parecia solta em seu colo, parecia não ter lugar.

Amamentar: A cada choro, o peito era colocado em sua boca. Maria dizia que seu leite era fraco, por isso, complementava a alimentação com leite em pó. Dizia que Lisa sentia muita fome, pois chorava o tempo todo, tinha certeza que só conseguiria faze-la parar de chorar com o seio.

Mãe: Maria dizia que estava muito feliz com Lisa, mas que um bebê dava muito trabalho, sua cabeça estava muito cheia, dizia que Lisa estava muito presente em seus pensamentos e que não imaginava que fosse assim, sempre repetia: “Não estou reclamando, mas me sinto muito cansada”.

Sono: Lisa dormia com Maria, numa cama de solteiro. Maria dizia que não adiantava elas ficarem separadas, se Lisa estava presente o tempo todo em seu pensamento.

Pai: No inicio apenas em alguns momentos esteve presente, ele dizia que tinha medo de pegar Lisa e machucá-la, conversávamos sobre isso, pensando numa forma dele estar presente na vida da Lisa.

Lisa: Um bebê ainda grudado ao corpo da mãe separava-se nos momentos que tinha cólica, contorcia o corpo, e fazia com que Maria a mudasse de posição para tentar acalmá-la.

O olhar de Lisa, em alguns momentos se perdia. Em nossos encontros, procurava fisgar seu olhar.

Maria a posicionava de frente para mim, no começo seu olhar não encontrava o meu, até o momento que como uma surpresa, nos encontrávamos e seu olhar ganhava sentido.

Maria dizia, que não conseguir falar com filha, por isso eu perguntava a Maria o que ela queria que eu dissesse para sua filha. Maria nunca sabia o que dizer pedia para que eu conversasse sobre “qualquer coisa” com Lisa.

Em um de meus encontros Lisa, ela começou a balançar os braços, Maria pergunta neste momento se Lisa não corria o risco de ter uma doença, pois tinha visto na TV uma criança balançando os braços de determinada forma (o que me deu a entender que ela falava sobre o autismo).

Maria ficava preocupada se Lisa poderia vir a ter os mesmos problemas que ela e João.

Maria comentava que seus pensamentos tinham vida, e algumas vezes comentava que esses pensamentos poderiam prejudicar sua filha, conversávamos sobre isso, pontuava a pertinência de sua preocupação, mas também procurava pontuar que Lisa era uma pessoa, e ela era outra.

Depois de 30 dias da chegada de Lisa, Maria entra em crise, seu olhar perde o sentido, Lisa solta em seu colo, seu discurso entregue aos delírios de ordem religiosa, onde eu parecia com a Virgem Maria, e meu corpo era usado para trazer as palavras de Deus.

Estávamos na sala de estar da casa, perguntei a Maria se queria que eu dissesse algo para Lisa, ela respondeu: Gostaria de fumar segure ela para mim, pela primeira vez, Maria entregou Lisa em meu colo, Lisa olhava meu rosto, meu cabelo, e eu com olhos fixos nela lhe dizia: que sua mãe não estava bem, e por isso a colocou em meu colo.

Dia seguinte, sábado: Maria piora da crise, não consegue mais cuidar da filha, chama uma colega da casa para ajudar, Lisa é levada pela avó paterna. Maria não vê sua partida, apenas diz para a levarem logo. Tentam interná-la, mas não conseguem pela falta de vaga, Maria retoma a medicação.

Segunda-feira: Converso com Maria, parece não me ver, diz que está tudo bem, e que foi melhor assim. No quarto, coisas de bebê espalhadas, um carrinho vazio, uma mãe, e um vazio que parecia tomar conta de mim.

Trouxe Lisa para nossa conversa, perguntei, como foi seu dia, como foi sua noite, o que Lisa estaria fazendo naquele momento, aos poucos Maria foi se interessando pela conversa. Propus que ligássemos para avó de Lisa, para saber como Lisa estava, Maria aceitou prontamente, não queria falar, achava melhor que eu falasse, enquanto eu falava ao telefone, repetia o que avó dizia em voz alta, Maria pedia para eu perguntar como ela estava, lembrou da vitamina que ela estava tomando, pediu para perguntar sobre as cólicas que Lisa tinha quando tomava leite em pó.

Ao desligar o telefone, combinamos que ligaríamos em todas as minhas visitas, eu lhe disse também que durante a semana ligaria para a avó para saber sobre Lisa e conversaríamos logo em seguida. Maria dizia que não conseguia ligar para a avó de Lisa, preferia que eu ligasse, ela acreditava que podia fazer algum mal a Lisa.

Após uma semana da saída de Lisa da casa, eu a equipe responsável pela casa, combinamos uma visita de Lisa à Moradia. No início Maria ficou com um pouco de medo de rever a filha, pensou em sair, mas depois resolveu ficar. Durante o reencontro com Lisa, me perguntou se poderia amamentar, digo que não, porque estava tomando medicamento anti-psicóticos.

Estávamos na sala de estar, Maria prefere ficar na sala, no meio de todos, a casa estava cheia, as psicólogas de plantão, os pacientes, a avó, todos em volta de Maria com seu bebê. A partir dessa data Maria começou a pensar como poderia ter seu bebê de volta, o pai estava presente nessa conversa.

No início o pai ficou muito transtornado com saída de Lisa da casa, dizendo que jamais mandaria sua filha para um lugar que ele não suportou ficar, após alguns dias, mudou de opinião, dizendo que achava melhor que Lisa tivesse ido para casa de sua mãe, pois esta seria uma forma de sua família ficar mais próxima.

Maria tentou parar com a medicação para poder amamentar, pediu o consentimento da equipe que a acompanha: referência, as psicólogas responsáveis pela casa, psiquiatra e da acompanhante terapêutica, após conversarmos, a equipe se propôs a acatar sua decisão, desde que ela fosse acompanhada por todos, e que, caso necessário, os profissionais sinalizariam para Maria a necessidade da volta a medicação. Ela ficou apenas dois sem a medicação e por conta própria retornou os medicamentos, dizendo que não conseguia ficar sem os remédios. Atualmente Lisa continua com a avó, Maria vai aos finais de semana para ver Lisa.

O acompanhamento continua na casa da avó, e na casa de Maria. Maria diz saber que não consegue ficar o tempo inteiro com Lisa, mas quer ser sua mãe, quer educar Lisa.

Formulações sobre o caso
Durante todo este trabalho, estive voltada aos aspectos clínicos dessa minha posição, a de acompanhante terapêutica. Ao falar em aspectos clínicos, gostaria de pontuar que minha função como acompanhante terapêutica, não tinha como foco os aspectos assistenciais, mas sim estar atenta a estrutura psíquica que se apresentava frente aos meus olhos, e diante disso, manejar uma direção clínica para esse acompanhamento, que viesse possibilitar sustentação do laço entre pais e bebê, da forma que lhes fosse possível, apostando, desta forma, na constituição psíquica de um novo sujeito.

Muitos de vocês podem estar se perguntando: Acompanhante de quem? Responderia-lhes que sou acompanhante do laço entre a mãe o bebê e o pai.Uma espécie de testemunha. Meu trabalho irá percorrer a constituição possível desse laço. Minha proposta é viabilizar a formação de uma parentalidade, talvez de uma forma mais contundente do que habitualmente vemos nos nascimentos de uma mãe, de um pai e um filho. Como acompanhante terapêutica faço parte de uma equipe, onde gostaria de apontar a importância da troca de reflexões entre esses profissionais.

A existência desse acompanhamento se deve a este trabalho em equipe, onde instituição, analista, psiquiatra e acompanhante puderam sustentar suas posições, permitindo que esses pacientes saíssem de uma posição passiva e começassem a trilhar suas escolhas. Maria dizia, que era estéril, e que não conseguia engravidar, já tentava há alguns anos, mas não conseguia. Não podemos deixar de considerar que o momento da gravidez vem conciliar com sua permanência nesta instituição.

A partir disso ela se vê amparada, suprida na sua ausência constituinte que a funda, esse apoio psíquico vindo de vários profissionais, da uma base de sustentação para essa criança nascer. Essa sustentação imaginária dada por essa conjunção de profissionais, não supriu o que precisava essa mulher para exercer uma função materna.

Não fechei os olhos para todas as consequências possíveis que um cuidador primordial4 psicótico pode acarretar na constituição de novo sujeito, mas por outro lado, não posso retroceder diante desta situação. Tenho uma ética a responder, e é dentro dessa ética da psicanálise, que falo.

Para Lacan, falando bem resumidamente5, na psicose o sujeito é invadido pelo Outro, o Nome-do-Pai não está presente, porque o desejo da mãe não foi barrado, fazendo com que o Sujeito fique amarrado a esse desejo materno, o que o impossibilita de ser marcado pela falta. Esse acidente ocorrido em razão das particularidades do complexo de Édipo favorece a formação de uma estrutura psicótica.

Essa estrutura psicótica é marcada por uma desorganização da estrutura simbólica6, em consequência disso, o Outro não existe no psiquismo separado dele, ele e o Outro são uma coisa só, se não há diferenciação, não há porque o Outro saber algo sobre ele, daí justifica-se a certeza do psicótico. Falar em maternidade para uma estrutura psicótica pode parecer ingenuidade para alguns, ou para outros uma missão impossível, é exatamente disso que se trata esse trabalho, pois a experiência da psicanálise se funda nessa transformação, do impossível para modalidades do possível7.

O que vai dirigir essa transformação é a escuta daquele que está à frente de qualquer trabalho analítico, mesmo num trabalho de acompanhante terapêutico. Diante das certezas do psicótico, como minhas intervenções iriam ter efeitos sobre esse laço? Fui atrás dessa resposta.

E a clínica me fez pensar na direção de trabalho: Lacan propõe um manejo na transferência, ou seja, o psicótico se coloca diante da demanda do outro como objeto, mas esse é o lugar do analista, por isso que a clínica da psicose tem suas especificidades, mas isso não quer dizer que não haja transferência, há transferência, a diferença é como manejá-la na clínica com psicóticos.

No meu caso como acompanhante terapêutica, me coloquei na posição de Secretário do alienado8, não estou na posição daquele o qual se supõem um saber. Estou na posição daquele que poderá auxiliá-lo a encontrar modalidades de suplência9, frente aos fenômenos elementares da psicose, podendo ainda, como um sujeito castrado, marcar os limites da relação dessa mãe psicótica com seu bebê.

Uma das formas de dirigir as pontuações feitas foi colocando dúvidas a respeito das certezas inquestionáveis de Maria, um caminho possível, para tentar favorecer alternativas e outras representações que lhe ajudassem em sua relação com a filha. As primeiras preocupações de Maria estavam voltadas aos aspectos físicos do bebê. A surpresa para Maria era ter gerado um bebê perfeito, a completude imaginária do corpo lhe falta, seu olhar está voltado para as partes, para as partes do corpo de um bebê.

Quando eu vou ver o bebê no berçário, meus olhos vêem, que além de ter organismo perfeito, (do qual fala Maria), esse bebê possui um corpo. Neste momento lembro-me das recomendações de Maria, referente a sua preocupação com a perfeição do organismo, mas vejo também um bebê bonito, frágil, que chora ao ser pego pelas mãos da enfermeira.

Esse bebê que no meu imaginário pede acolhimento, colo e uma mãe. Quando retorno ao quarto e falo sobre seu bebê, eu estou falando do seu corpo recoberto por minhas impressões, bonito, saudável, esperto. Portando, faço um empréstimo de um imaginário, uma ponte que possibilita um distanciamento desse bebê como organismo, acredito tratar-se do início de um percurso para esse bebê deixar de ser um objeto como parte dela, e através das minhas palavras, repletas de meu imaginário, passar a ter um corpo.

Maria tranquiliza-se e pede para eu ligar e falar com o pai de Lisa tudo o que eu vi no berçário. Ela poderia falar nesse momento, mas pede para eu contar a ele o que eu vi, isso não é uma ajuda que ela me pede, mas uma certeza, de que esse imaginário ela não possui, e por isso que eu deveria transmiti-lo. Esse momento marca o início de nosso trabalho, eu tinha um saber suposto sobre sua filha, que ela impossibilitada não só pela anestesia, mas também impossibilitada estruturalmente não conseguia imaginar esse bebê.

Maria é psicótica, mas uma mãe impossibilitada de psicotizar um filho, seu desejo foi barrado na sua constituição, esse bebê não vem tamponar uma falta, pois esta não foi constituída.

Mas, esse bebê depara-se com uma falta: essa mãe não pode ressignificar seu apelo, com isso esse bebê será obrigado a buscar essa ressignificação. Lisa ao demandar algo para além do biológico depara-se logo com a falta, instaurando-se neste momento a primeira operação que marca uma falta, a frustração, neste momento a um recobrimento de duas Faltas – 1. Nem a mãe pode satisfazer a criança – 2. Nem a criança pode completar a falta materna.

A partir disso muda-se a posição do laço entre o bebê e agente materno, a mãe que antes era simbólica, torna-se real, porque no descompasso entre as vindas e idas da mãe, no caso de Maria um descompasso psíquico, o bebê vê-se impossibilitado de reencontrar o objeto perdido, com isso ele acredita que, quem irá trazer esse objeto é mãe, ela deveria torna-se uma potência, e como sabemos, Maria estruturalmente não sustenta essa posição de potência, o que me faz arriscar a dizer e apostar, que Lisa diante desta não resposta, buscará em seu meio esse sustento simbólico.

Em nossos encontros eu insistia para chamar a atenção de Lisa, Maria ao perceber minha insistência posicionava Lisa de frente para mim. Essa insistência deve-se a uma aposta, que a meu ver é fundamental, ou seja, eu supunha que em minha frente havia um sujeito.

Nas palavras de Mathelin10, é nessa troca entre semelhantes habitados por seus desejos, pensamentos e afetos, nesse endereçamento ao outro, capturado pela linguagem, que nos parece estar, para além das palavras, operando para a criança, como um continente.

Durante a amamentação, Maria complementava com leite em pó, dizendo que seu leite era muito fraco, várias vezes falamos sobre esse assunto, onde eu demarcava que não existia leite materno fraco, isso não adiantava, Maria continuava dando o leite em pó, dizendo que se não desse o leite em pó, Lisa não parava de chorar.

Mudei de foco e começamos a conversar sobre outras formas de fazer um bebê parar de chorar, paralelamente a essa conversa Lisa começa a retorcer seu corpo, como se estivesse com cólica, chama nossa atenção. Nosso assunto voltou-se para os motivos das cólicas, e chegamos a conclusão que uma hipótese seria o leite em pó, Maria resolve parar de dar o leite em pó, neste dia e Lisa dorme tranquila.

Por apostarmos nas capacidades prematuras de um bebê, não podemos resumir essa situação numa solução para complemento da amamentação. Essas cólicas, além das causas orgânicas, também podem ser compreendidas como um apelo, como bem cita Rohenkohl11, “apelar do latim appellare, significa evocar a proteção ou testemunho, ação de convidar a vir, por uma voz, um gesto”, para ouvirmos esse apelo é necessário uma distancia possível do outro, essa distancia que Maria está impossibilitada de ter com sua filha.

Quando eu olho para Lisa, e vejo seu corpo contorcer, pontuo essas reações para Maria, neste momento Maria pode ouvir o apelo da filha e ressignificá-lo, dando-lhe algo além da necessidade, ela tira o leite em pó, atendendo ao que supunha ser o pedido da filha, operação esta de suposição, que sabemos ser muito difícil num caso como esse. Esse apelo como afirma Rohenkohl é condição estruturante na constituição do sujeito, essas ressignificações se elevam a posteriori, à condição de demanda, esse reconhecimento de algo que existe além da necessidade é o desejo.

A forma como Maria segurava Lisa, causava um incomodo, Lisa ficava muito solta em seu colo, Maria dizia que não conseguia vê-la chorando, por isso preferia deixá-la no colo a maior parte do tempo. Maria falava sobre sua intolerância diante dos cuidados12 que um bebê exige, dizia: “Estou muito feliz com minha filha, mas não pensava que um bebê exigisse tanto assim da gente.”

Conversávamos sobre esse cansaço, e pensávamos em alternativas possíveis, como uma creche, ou uma pessoa para ajudá-la nos cuidados. A certeza do psicótico pode levá-lo aos delírios, mas também pode marcar a impossibilidade real de permanecer o tempo todo como mãe.

O pai nas palavras de Julien13 não se define pela consanguinidade, mas pelo ato de um soberano apossar-se de uma criança e declarar publicamente, que ele é o pai dessa criança, mas para que esse homem possa ocupar esse lugar é fundamental que a mãe inscreva um lugar na ordem simbólica- lugar vazio, que esse homem possa ocupar.

O nome de Lisa foi escolhido pelo pai. Na maternidade Maria marcava no rosto de Lisa as semelhanças com o Pai, o nome desse pai está inserido no discurso materno, o que possibilita a instauração do pai simbólico.

Durante nossos encontros Maria frisa a importância da presença de João, o chama para acompanhá-la nas consultas pediátricas, reivindica sua presença, declara que acha importante que Lisa tenha um pai mais presente. João relata suas experiências com seu pai, relações que de acordo com suas palavras foram pouco conciliadoras, diz não ter referencias de um pai, para poder ser um. Sabemos que suas dificuldades estão para além de uma referencia, estruturalmente o significante que sustentaria sua posição paterna lhe falta. Aposto nesse pai, seu esforço para constituir seu lugar, é muito claro, minha função é reconhecer e nomear esse esforço, para que suas palavras possam atingir o nível de representação e quem sabe se transformar num sentido para ele.

No momento da crise Maria recusa-se a cuidar da filha, tem certeza que não lhe fará bem, a fronteira entre corpo e linguagem se rompe completamente, por isso Lisa é levada pela avó paterna. Com Lisa longe,

Maria tranquiliza-se, dessa forma acredita não poder fazer mal a sua filha, retomo nossos encontros, e trago Lisa em meu discurso, mesmo não estando presente eu poderia traze-la em palavras, o que para Maria era impossível, parecia tomada por um vazio, que só era preenchido pelo delírio. Ao propor os telefonemas para saber sobre Lisa, estou como acompanhante propiciando essa distancia possível entre a palavra e a coisa.

Sabemos que é extremamente difícil para uma mãe psicótica efetivar o jogo de presença e ausência com seu bebê. Inclusive aí reside a grande dificuldade do trabalho, pois ou se compactua com uma colagem mãe-bebê ou se força um desaparecimento do bebê para essa mãe. Atualmente estou fazendo com Maria uma agenda semanal, o que possibilita uma organização do tempo e do espaço, o que sabemos ser muito difícil para um psicótico.

Essas letras inscritas na agenda delimitam um contorno, uma borda possível ao real. Com o pai, este está mais presente, participando de nossos encontros, podendo reivindicar seu lugar como homem na relação com Maria, instituindo o pai real, aquele que tem a sua mulher como objeto de gozo e desejo. Com Lisa, João diz estar “iniciando”.

Com a avó, meu trabalho é de favorecer a construção de um lugar de avó, dado que uma outra neta que ela cria, é tida como filha, e não como neta. Existia aí a tendência a uma marca repetitiva com a outra neta, a Lisa. Com Lisa, continuo com nossos diálogos, sendo que hoje ela está muito mais atenta, respondendo com sorrisos e olhares, além de estar podendo fisgar o gozo daqueles que a rodeiam. Com a neta mais velha, começa a surgir um ciúme fraterno, dela em relação a Lisa, tenho procurado ouvir essa criança e na medida do possível, ressignificá-lo para ela.

Pois, trata-se de uma criança que teve sua mãe assassinada, e que possivelmente se encontra paralisada diante da cena, que Maria e Lisa mãe e filha, lhe propicia. Gostaria de pontuar: que a função exercida por cada um desses personagens se encontra na direção da constituição de um laço possível do bebê com todos esses cuidadores, como uma forma de manter uma continuidade em cada um desses lugares, de pai, de avó, de mãe, de prima, para este bebê.

Concluindo a posição de secretário do Alienado é aquela que auxilia o psicótico a encontrar modalidades, ele é secretário e não agente da situação. Interprete de palavras sem sentido, uma presença que marca um limite, procurando romper com a cadeia delirante, neste caso retirar o bebê desse lugar de objeto de delírio dos pais.

 

Notas:
1 – Fonte: http://www.estadosgerais.org/encontro/acompanhamento_terapeutico.shtml
2 – http://www.infans.org
3 – …podemos considerar o caso como a passagem de uma demonstração inteligível a uma mostra sensível, a imersão da idéia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e podemos, finalmente, concebe-lo como a pintura viva de um pensamento abstrato- Juan David Nasio em Os grandes casos de Psicose
4 – Rohenkohl, C. M F. (org) – A clínica com o bebê – Texto: Do Transitivismo à antecipação
5 – Leite, M.P.S.- Psicanálise Lacaniana – Cinco Seminários para analistas kleinianos – 2000 – Ed. Iluminuras – SP
6 – Souza, A. A. S.F. – A metáfora paterna -A Clínica da Psicose – Ed. Papirus –
7 – Birman, J.Damião, M.M. (coordenadores) Psicanálise – Ofício Impossível? – 1991
8 – idem
9 – I Trabalho apresentado na III Jornada do Espaço Moebius por Aurélio Souza em 04/12/1993 – Publicado na revista Topos: Boletim do Espaço Moebius, 1994 – BA
10 – Mathelin, C. O sorriso de Gioconda – Ed. Cia de Freud – 1999
11 – Rohenkohl, C.M.F. Topos: Boletim do Espaço Moebius – ano 1: 1990 – Texto: Quem Apela
12 – Quando falo em cuidados não estou me restringindo somente aos cuidados físicos, mas também frente as manifestações pulsionais deste bebê.
13 – Julien, P. – O Manto de Noé – Ed. Revinter – 1997.

 

Autora: Íris Cosas – Psicóloga Membro fundadora do Infans-Unidade de Atendimento ao bebê, Co-responsável do Site http://www.infans.org

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