Acompanhando Rumo à Solidão: o Acompanhamento Terapêutico (AT)

ALUCINAÇÃO

Um dia vou tocar teus pés com os meus
num aconchego que lembra o fim
e a preguiça que se inicia,
Toda esta roupa não impede
que eu feche os olhos
E passeie por tuas costas
antes de beijar teu pescoço.
Quero até fazer um poema
Mas teus seios me salivam a boca
E sou convidado a cenas onde o diabo
certamente gostaria de estar
e Deus, espiaria, morrendo de inveja.

Há alguns anos venho trabalhando com a clínica do Acompanhamento Terapêutico (AT) num crescente desenvolvimento e avanço no que diz respeito ao estudo e prática de suas especificidades.

Vem me inquietando ultimamente uma pergunta: Por quê recebo alguém em tratamento? Talvez a pergunta devesse ser para quê?

Colocando a discussão num âmbito mais técnico e não tão direcionado para as questões pessoais, não que estas não sejam de fundamental impotência. Freud inicia seu texto Análise terminável e interminável, de 19371 afirmando que:

“A experiência nos ensinou que a terapêutica psicanalítica – a liberação de algum dos sintomas neuróticos, inibições e anormalidades do caráter – é um assunto que consome muito tempo”.

O interessante nesta colocação, é que ela traz um fragmento muito importante acerca de um tratamento, de um acompanhamento. Ou seja, liberar o sujeito de algum sofrimento, procedimento que ao meu ver, não tem outro objetivo senão o de que o sujeito viva melhor.

Uma vida melhor aqui não deve ser traduzida como a felicidade total, mas também não, como o simples suportar do mal-estar. Mas sim, a busca da possibilidade de o sujeito pensar.

Pensando criamos novas alternativas, novas estradas, que por sinal, de tranquilas não tem nada. Muito antes pelo contrário, essas alternativas, essa liberdade para pensar nos coloca diante do novo, do inesperado, da surpresa que podem e é quase certo que irão colaborar para nos remeter novamente ao sofrimento, a angústia e a dúvida de um novo dia.

Quando se está mentalmente doente, não se pensa e consequentemente não se fala . Nesta situação, qualquer pensamento antes impensado, ou impensável torna-se ameaçador e acima de tudo, imobilizador, o que nos leva, imediatamente, a sintomas obsessivos e comportamento agressivo, entre outras coisas.

Podemos citar aqui o caso de uma paciente que na infância, desejou em pensamento a morte do pai e este, por uma fatalidade, veio a falecer.

Fala também da sua sensibilidade para perceber e sentir fatos que estejam ocorrendo em algum outro lugar. Cita um acidente grave ocorrido com seus filhos e que no exato momento estava na casa de uma amiga e começou a ter cessações estranhas, sendo logo em seguida comunicada do acidente.

Hoje, sofre muito pois tem medo de que seus pensamentos tornem-se realidade. E é claro, tem muita dificuldade para falar de si.

Um caso mais grave, é de um paciente que tem pensamentos grandiosos, como atirar-se de um edifício sem que nada lhe aconteça. Ou ainda, parar um caminhão em pleno movimento, apenas com a força dos braços e por aí a fora.

Aqui não ocorre nenhum tipo de racionalização ou metáfora e o medo de seus próprios pensamentos é tão grande que não lhe resta outra alternativa se não o silêncio e introspecção quase que total em um mundo particular. Avesso às coisas a sua volta.

Sobre a importância do pensar livremente, Freud fala quando refere-se a Igreja Católica no texto de 1928, Moisés, seu povo e a religião Monoteísta 2, colocando-a como força impeditiva do livre pensar e também em seu texto em memória de Josef Breuer (1925)3, onde conta um pouco do início dos estudos psicanalíticos e afirma que para realmente chegarem – os psicanalistas da época – a alguns conceitos e formulações por volta do ano de 1880, realmente foi preciso “um considerável grau de liberdade de pensamento”.

É interessante observar a reivindicação de Freud por liberdade de pensamento em dois momentos bem distintos de sua obra, ou seja, logo no início e no final, o que nos leva a pensar que tal idéia deve tê-lo acompanhado durante boa parte de sua vida e lhe permitiu desbravar e avançar sobre caminhos desconhecidos até então, utilizando-se de um pensamento livre e que lhe permitia passear por campos até então impensáveis.

Ser livre é estar sozinho. Conhecer-se a si mesmo é solitário, pois somos únicos, específicos. Não há outro senão unicamente eu e isto significa solidão e ao mesmo tempo que queremos a liberdade, não queremos ficar sós, então paramos de pensar , de falar e de criar alternativas e podemos então adoecer.

Mas qual a relação disto com a clínica do Acompanhamento Terapêutico?

Esta clínica que quer andar pelas ruas e transformar, os passos de uma dupla – acompanhante e acompanhado – na possibilidade de um caminhar solitário e em algo mais que o ser simplesmente pedestre, na forma de uma fala e de uma escuta que se deslocam.

Uma escuta que se faz sob os efeitos do cotidiano, da rua, de uma fala meio presa, meio abandonada. Mas que também faz uso das esquinas em seus desdobramentos, das escadas em seus altos e baixos, do barulho do trânsito em sua vontade de não ser pensada, percebida e falada.

Acompanhar rumo à solidão. Esta é a situação em que nos encontramos no dia-a-dia da clínica do AT, situação contraditória esta em que nos envolvemos, onde estamos juntos, andando pela cidade, entrando na casa do paciente, buscando estabelecer alguma comunicação viável, alguma transferência, colocamo-nos na escuta e nosso objetivo final é que este sujeito um dia possa fica só.

Não estamos falando do sentimento de solidão, mas sim do livrar-se do fantasma, do sintoma, (por meio do próprio reconhecimento destes) das coisas que nos cercam e que nos impedem de viver uma vida com diferentes caminhos e opções e também de sofrimentos, mas com um cardápio inteiro deles, com várias entradas mas outro tanto de saídas. . Livrar-nos desta doença que nos conduz por um único caminho, onde temos a certeza ilusória de estarmos seguros, enquanto o céu não nos vem.

Nossa função então passa obrigatoriamente por um retomar da fala soterrada com o passar do tempo, dando-lhe o devido valor. Estabelecendo como lugar de escuta, o lugar mais próximo daquele de onde esta fala vem Trata-se de buscar certa (re)inserção do sujeito num processo de pensar e falar, procurando estabelecer outros contatos possíveis, para que novamente passe a desenhar seus caminhos e descubra suas vias de acesso para outras alucinações e delírios.

Autor

Nauro Mittmann – Psicólogo, formado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) em janeiro de 1996. Especialista em Teoria Psicanalítica pela mesma universidade. Iniciou o trabalho de Acompanhamento Terapêutico enquanto estudante, passando por instituições como a Comunidade Terapêutica D.W.Winnicott e Clínica Pínel, ambas em Porto Alegre. É membro fundador do grupo de Acompanhamento Terapêutico Circulação, onde desenvolve atualmente trabalhos ligados ao AT. E-mail: [email protected]

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