Autora:
- Marcia Limeira – Graduação: Psicologia e formada em Acompanhamento Terapêutico pelo instituto Sedes Sapientiae. Área de trabalho: saúde mental, excepcionais, terceira idade, dependentes químicos. Cidade: São Paulo/SP. E-mail:[email protected]
- Desenvolvido para o Estágio de Acompanhamento Terapêutico, do Curso de Psicologia sob a orientação do Profº Kleber Duarte Barretto. Universidade Paulista – UNIP – Curso de Psicologia. São Paulo, Faculdade de Ciências Humanas, 2001.
Resumo
O trabalho tem o intuito de mostrar a importância das recordações e lembranças, como recurso terapêutico no Acompanhamento de uma paciente de terceira idade, portadora de deficiência visual. Ao assumir o lugar de ouvinte foi possível estabelecer um vínculo e uma proximidade suficiente para que o encontros acontecessem.
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo 1: O Papel Fundamental das Reminiscências para o Idoso: exemplos de uma experiência de encontro
Capítulo 2: A questão da morte e sua relação com as recordações e lembranças
Conclusão
Bibliografia
Resumo
Introdução
Neste trabalho discutiremos a importância das recordações e lembranças, como recurso terapêutico, no acompanhamento de uma paciente de terceira idade. Para tanto, estaremos utilizando alguns autores que fazem referência ao tema escolhido, correlacionando-os com as histórias relatadas por D. Maria, nome que darei a uma senhora de 72 anos e da qual sou acompanhante terapêutica.
O objetivo é compreender o significado destas recordações, destas lembranças para ela; quais as mudanças psicológicas e emocionais que estas vivências produzem atualmente em seu modo de pensar, de reagir frente aos acontecimentos atuais e, por outro lado, registrar a experiência do ouvinte neste papel que ele passou a ocupar. Trechos, frases de sua narrativa ajudarão a ilustrar o pensamento da paciente e a impressão do acompanhante/ouvinte.
Desde que iniciamos nossos encontros, em abril de 2001, cada dia ela me contava um pedacinho de sua vida. São histórias de um passado marcante e doloroso, já que ela vivenciou muitas situações inusitadas quando veio inesperadamente da Espanha para o Brasil em 1952. Apesar de viver aqui há mais de trinta anos, D. Maria ainda mantinha forte suas raízes étnicas. Sempre que possível fazia almoços, jantares e festas em sua casa que possibilitavam desfrutar dos costumes espanhóis junto aos familiares.
Suas lembranças traziam a cada encontro um cenário de como foi a sua infância, adolescência, sua viagem de navio para o Brasil, terra estranha que a assustou num primeiro momento fazendo-a chorar; seu casamento, sua filha e sua velhice. Por vezes saíamos daqui de São Paulo rumo a Santos, depois São Bernardo. Às vezes íamos até o Rio de Janeiro e quando percebíamos estávamos na Espanha. Ao final do encontro tínhamos que retornar, às vezes a volta era dolorosa mas fazia repensar o presente e imaginar o futuro. Gilberto Safra, em A Face Estética do Self, disse que: “muitas vezes, migrantes ou imigrantes podem sentir uma ruptura em si próprios por não se sentirem reconhecidos no novo país. São experiências sensoriais peculiares que quando o indivíduo reencontra, viajando para sua terra natal, é capaz de revigorá-lo e até curá-lo”. (1999, p. 151).
Creio que o trabalho do acompanhante terapêutico abre esta possibilidade de nos aproximar mais da história do paciente ocupando este lugar de testemunha/ouvinte à medida que nos insere dentro da casa dele, lugar de sua maior privacidade, que carregam características de sua personalidade. O paciente por sua vez, ocupa um lugar singular como narrador e, ao sentir ressonância do seu relato, consegue elaborar no trabalho terapêutico suas vivências. No caso de D. Maria isto não só foi possível como sempre ocorreu. Talvez por ela ser deficiente visual, por já ter sofrido dois derrames (Acidente Vascular Cerebral), mas independente do motivo, assim se constituíram os nossos encontros.
As histórias começaram dos dias mais atuais para o passado mais remoto – a sua infância. E, como ressalta Ecléa Bosi: “As mais vivas recordações afloram após a entrevista, na hora do cafezinho, na porta de saída. Muitas passagens não são registradas, porque são contadas em confiança, como confidências”. O que torna mais caloroso o encontro ultrapassando a condição de psicólogo – paciente. (1994, p.39).
Ao final, apresentaremos um encerramento sobre o que foi desenvolvido ao longo do trabalho abrindo para que novas hipóteses sejam levantadas e pesquisadas em uma nova oportunidade.
Capítulo I
O Papel Fundamental das Reminiscências para o Idoso: exemplos de uma experiência de encontro
A memória é um conjunto de funções cerebrais complexas que fixam e conservam na consciência fatos e vivências que tenham provocado algum tipo de impressão no indivíduo e que depois podem ser evocadas, revividas. Portanto, as experiências são situadas no tempo e no espaço. A memória pode ser ativa: onde o indivíduo a restitui por meio de lembranças ou recordações. Ou pode ser inativa, restitui por meio de uma lembrança latente. A fase de evocação, que é especialmente a parte que nos interessa aqui, é influenciada pela afetividade que pode ser facilitada ou frustrada pela qualidade da emoção associada à vivência original. Este ato de relembrar o passado tem recebido o nome de reminiscências3.
O ato de relembrar o passado é um processo natural do ser humano, no entanto, é mais comum na terceira idade. Considerado pela psicologia clínica como um processo terapêutico, recordar estas vivências tem sido utilizado para melhorar aspectos pessoais e sociais, bem como resolver dilemas dolorosos da vida dos idosos. No entanto, para ter este valor primoroso na terapia, faz-se necessário um profissional experiente na área, pois ficar preso ao passado, às experiências de outrora, pode ser uma fuga do presente trazendo muito sofrimento para o indivíduo.
Nas instituições asilares, escolas ou unidades de saúde, a prática das reminiscências tem ajudado os profissionais a compreenderem melhor as dificuldades dos pacientes idosos. Além disso, propicia ao indivíduo sair da monotonia, justapor o passado, o presente e o futuro, melhorar a vivência com outros idosos e pessoas de outras faixas etárias. “A capacidade de manter o passado vívido, principalmente na presença de um ouvinte solidário, pode ser um dos mecanismos que as pessoas de mais idade encontram para manter sua integridade”. (Bosi, 1994, p. 82).
Recordar o passado para o idoso não é simplesmente trazer à mente um fato do passado, mas antes localizar a imagem no tempo e dar uma forma, um contorno. E esta finalidade só pode ser atingida se encontrar ressonância com o ouvinte, que, com sua presença humana, capaz de transmitir ao narrador a experiência de ser ouvido, já proporciona um novo olhar diferenciado sobre fatos antes insignificantes.
Quando encontra interesse em ser ouvido, o locutor narra suas histórias como se as tivesse encenando no palco. Como o poeta que nas sombras das árvores verdes compõe a sua obra humilde para sua amada. A representação dos fatos se torna tão real, passível de provocar sensações que contagiam o narrador e o ouvinte. Ecléa Bosi, em sua belíssima obra, disse: “Na aurora da civilização grega, a memória era vidência e êxtase. O passado revelado desse modo não é o antecedente do presente, é a sua fonte”. (1994, p. 89)
Atualmente a memória nos ajuda a organizar o tempo cronologicamente; a entender o passado, como ele se organiza, se localiza. O velho, nas sociedades capitalistas, se retrai em seu canto e se cala. Fecha-se em seu mundo, guardando consigo uma riqueza que só ele possui, porque ainda não passamos pela velhice. E dessa forma empobrecemos já que não conheceremos os seus dons, a sua experiência de vida, a sua história passada. Bosi se questiona em seu livro Memória e Sociedade, “o que aconteceu com as histórias que as vovós contavam para seus netos; com as canções que as crianças cantarolavam na hora de brincar de roda. E as brincadeiras que eram passadas de geração a geração. Tudo se perdeu com o desenvolvimento tecnológico que deixou muito pouco espaço para as lembranças vividas que traz enriquecimento social, cultural e histórico”. (1994, p.83)
Em um dos encontros que tive com D. Maria ela se recordou de quando sua mãe engravidou pela quarta vez. Contou-me ela: Eu tinha seis anos de idade e era “a caçulinha da casa”. Eu desejava que fosse um menino, um “neninho” como se diz na Espanha, mas meu desejo não foi atendido e minha incompreensão por não ter tido minha vontade atendida, levou-me a buscar explicações. Eu comecei a chorar na mesma hora porque eu tinha pedido para minha mãe uma neninha para brincar comigo, porque eu já tinha dois neninhos em casa. Então a pedido da tia Gertrudes, a vizinha que cuidou de minha mãe, eu fui falar com o tio José, um vizinho já bem idoso que morava num sobrado perto de casa e era ele quem trazia as crianças para as mães no trem da cidade, “pelo menos era o que contavam!” Eu cheguei na casa de seu José, bati palmas e falei para ele: “Tio José, minha mãe ganhou outro neninho e eu vim aqui pedir para o senhor trocar no trem porque eu quero uma neninha para brincar comigo”. Eu não me conformava e durante muito tempo minha mãe tentou me convencer a aceitar aquele neninho que depois Sr. José iria trazer uma nena para eu brincar. Eu espero até hoje, “como eu era boba”.
Creio que é dessa ingenuidade que Ecléa Bosi está nos falando. Do tempo em que as crianças acreditavam nas histórias que lhe eram contadas sobre cegonha, vovôs que traziam as crianças no trem, ao questionar algumas situações desconhecidas. E era com essas fantasias que as crianças conviviam, expressando espontaneamente seus desejos, mesmo quando impossíveis de serem realizados.
No entanto, nos dias atuais, muitos pais não contam mais estas histórias para seus filhos porque estão preocupados em atender às necessidades materiais de uma sociedade capitalista, não tendo tempo para perder com lembranças que poderiam ajudar a estimular a criatividade delas. Neste sentido, sobra pouco espaço para o velho, pois ele é considerado ultrapassado; suas histórias são retrógradas e não se ajustam na realidade atual. Desta forma, a memória pode ser destruída à medida que o idoso é oprimido, pois acredita-se que o encontro entre avós e netos não contribuem para o desenvolvimento das crianças; eles “mimam” demais os netos fazendo todas as suas vontades. Além disso, existem outros meios para complementar a educação das crianças. E não apenas a riqueza de uma experiência vivida é desperdiçada, mas toda uma habilidade de poder criar.
Mas não pretendemos aprofundar mais nesta questão do papel social do idoso em nossa realidade atual. Nosso interesse agora reside em explorar mais o valor de sua narrativa. O quanto suas histórias contadas de forma singular podem modificar o significado das situações atuais, não só do acompanhado mas também do acompanhante. E para iniciar essa reflexão, utilizaremos os conceitos de Walter Benjamin4 sobre o assunto.
Segundo Benjamin, a narrativa se constitui de histórias populares que são contadas de pessoas para pessoas. É da experiência de vida que o narrador compõe a sua narrativa. Ele não incrementa a história para relatar, mas simplesmente a transmite com naturalidade, renunciando às sutilezas possibilitando ao ouvinte registrá-la e integrar à sua experiência pessoal. Antes de contar, o narrador situa no tempo e no espaço o fato que irá transmitir, de modo que o ouvinte tenha uma noção clara das circunstâncias em que este ocorreu. Desta forma, as histórias sobreviverão ao tempo cronológico e serão transmitidas de geração a geração, pois as verdadeiras lembranças devem indicar ao ouvinte, o lugar exato em que o investigador se apossou dela.
Está presente na narrativa não só a memória do narrador, mas principalmente, a sua sabedoria. É por meio das reminiscências que o indivíduo se torna capaz de ultrapassar o dualismo entre mundo interno e mundo externo, pois resgata no seu passado o sentido da vida. Disse o autor: “Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento”. (Benjamin, 1987, p. 215).
O narrador vem do povo e sua arte de contar histórias é artesanal. Os seus gestos, já moldados pelo trabalho, agora servem como artifícios para sustentar o que está sendo dito. Ele sabe dar conselhos, por isso é considerado o mais sábio entre os mestres, pois sabe recorrer à própria vida e, em muitos casos, à vida alheia para “ensinar”. Neste caso, vozes de outros membros da família e mesmo de amigos, ajudam a compor o enredo. Em alguns momentos o narrador nem se dá conta deste acontecimento, visto que o fato já faz parte de sua obra e foi enriquecido pela sua experiência pessoal. “Seu dom é poder contar a sua vida; sua dignidade é contá-la inteira”. (Benjamin, 1987, p. 205).
Mas e o ouvinte? Como estas histórias podem influenciá-lo? Ao se dispor a ouvir, este precisa “esquecer de si” para incorporar espontaneamente o que lhe está sendo contado. Em minha experiência pessoal com D. Maria, em muitos momentos me senti fazendo parte de sua história, pois nós entrávamos num túnel do tempo onde ela tinha a certeza de que poderia reviver a cena pois eu estaria ali, ao seu lado assistindo com ela e acompanhando de perto. Seus apelos constantes para se certificar de que eu estava vivenciando as emoções junto com ela, fez com que nossa sintonia e nosso vínculo ficassem maiores. Era como se minha presença lhe assegurasse que aquilo estava acontecendo realmente. Tiveram alguns momentos que a sensação era de que nada podia nos atingir, porque não estávamos mais na sala de sua casa, eram outros lugares.
Esta experiência se tornou possível porque D. Maria tinha ao seu lado uma pessoa que, não fazia parte daquela longa trajetória de vida, mas que foi eleita por ela para ouvir suas confidências. Alguém em que ela podia contar seus desejos mais íntimos, quando por exemplo, contou-me que “não gostava de certos tipos de homens”. Até que ela conheceu quem estava procurando: “Ele não fumava, não usava bigode, não tinha várias mulheres e não tinha pêlos no peito, este então, veio a ser meu esposo”, disse ela.
No próximo capítulo, discutiremos a questão da morte, tema que esteve presente em muitos encontros com D. Maria.
Capítulo II
A questão da morte e sua relação com as recordações e lembranças
Nossos encontros nem sempre foram assim tão bem delineados. A angústia que sentia muitas vezes ao me questionar sobre o meu papel com D. Maria foi um dos motivos que me levou a estudar suas recordações e lembranças. Em alguns momentos não conseguia fazer nenhuma intervenção, pois quando tentava eu era interrompida. E por vezes, a minha insistência dificultou o discorrer dos fatos. Só aos poucos fui compreendendo o significado de suas insistências em relatar o seu passado. D. Maria, inicialmente, não aceitava que está cega e que sua cegueira é irreversível. Creio que ao mergulhar nas profundezas de sua vida, buscando lá no fundo fatos marcantes de sua experiência, ela pode resignificá-los e expressar suas emoções, compreendendo o que passara até então. E, talvez, entender melhor seu lugar no mundo hoje.
A conclusão de que eu precisava me despir de minhas interpretações e permitir que ela conduzisse o encontro, fez com que diversas vezes, D. Maria relatasse suas visões de pessoas já falecidas. “Não são sonhos, porque eu não estava dormindo”, dizia ela. Sempre me questionando o que estas pessoas queriam lhe dizer, às vezes me via sem respostas para aliviar a sua preocupação. O que me intrigava era que, tanto nas visões quanto nos sonhos de D. Maria, sempre estavam presentes pessoas que já morreram. Será que era a presença da morte que se fazia mais próxima? Mas, como explicar a sua luta pela vida diante de tantas situações difíceis que vivera com sua saúde debilitada? E as recordações de fatos importantes de sua vida que à ajudavam entender sua condição atual?
Acerca deste tema, Benjamin diz que a sabedoria do sujeito e, principalmente, sua experiência vivida compõem as histórias e, é no momento da morte que estas assumem pela primeira vez uma forma, capaz de ser transmitida5. Isto me ajuda a compreender o porquê de ela me colocar neste lugar de ouvinte, pela sua necessidade de ter alguém para transmitir suas vivências com a certeza de que elas ficariam registradas em algum lugar, na minha memória.
A questão da morte, em muitos casos, é encarada pelo idoso de forma realista. Esta consideração é mais freqüente em pessoas que sofrem de alguma ou várias patologias, pois muitas vezes, envolve o reconhecimento de que a morte dará fim ao sofrimento. Normalmente, quando existe a preocupação em relação a morte no idoso, ela está pautada nas conseqüências que trará a família. Ou de prolongarem a sua vida e então passarem a constituir um “fardo” na vida dos entes próximos.
Winnicott (1941) afirma que “o morrer é parte da saúde, parte do processo maturacional do sujeito”6. No entanto, só pode morrer quem existiu, ou seja, quem produziu e agiu no mundo humano. Seria terrível para o indivíduo se desvincular da vida sabendo que seu self não se constitui satisfatoriamente em seus diferentes níveis e possibilidades. “Nesta etapa, quando o indivíduo se sente capaz de abandonar o mundo humano, a individualidade de seu self deixa de ser importante para si e adquiri ênfase na história da humanidade. Ele delega sua vida ao espaço potencial, lugar onde irá morar junto a todos que existiram e/ou existirão”. (Safra, 1999, p.155).
Lembro-me de um encontro em que perguntei à D. Maria o que ela pensava a respeito da sua morte. Ela respondeu que há muito tempo pensava nisso e se considerava preparada para deixar este mundo. Disse ainda que se fosse para continuar sofrendo era melhor que Deus a levasse de uma vez. Sua preocupação era com sua única filha, pois a moça não conseguia nem mesmo conversar sobre o assunto implorando à mãe que não a abandonasse. A filha alegava que não saberia viver neste mundo sem D. Maria para cuidar dela.
D. Maria por diversas vezes expressou sua preocupação com o relacionamento de sua filha com o pai: “Eu sei que eles vão brigar muito sem a minha presença”, disse ela. Tentei mostrar a D. Maria que sua despedida do mundo poderia estar sendo influenciada por estas questões que ela me trazia, mas que ela poderia ajudar a filha e o marido a suportarem sua ausência apresentando a eles a sua compreensão a respeito de sua morte. A segurança dela em poder morrer depois de já ter constituído uma vida, poderia ajudar a tranqüilizar os seus. E que sua história passaria a viver junto com os que ficam, marcando a sua passagem em suas vidas. Não estou segura de que esta minha interpretação acerca da angústia de D. Maria possibilitou a ela um conforto em relação aos acontecimentos, mas fiz o que me foi possível naquele momento.
A presença de pessoas já falecidas faziam D. Maria lembrar de momentos que passou ao lado delas e o quanto algumas destas pessoas marcaram a sua vida. É o caso por exemplo de seu pai. Ela o viu pela última vez antes de partir para o Brasil. Devido à idade dele e problemas financeiros, tornou-se impossível um novo encontro, nem mesmo no enterro dele. Sabemos que os laços de família são enfraquecidos pela mobilidade geográfica, talvez este motivo tenha dificultado um reencontro, mas D. Maria falava muito pouco dele em nossos acompanhamentos, comparativamente com outras pessoas, então, pegava-me pensando o que ela gostaria de poder ter dito a ele, ou ele a ela, já que várias vezes ele veio a seu encontro em suas visões, chamando-a para junto dele?
Às vezes eu tinha medo de estar, como os outros membros da família, aumentando as expectativa de D. Maria em prolongar sua vida, desconsiderando o seu estado real; sua possível vontade de seguir numa viagem rumo a morte; de estar ajudando D. Maria a regredir em seu destino. Por outro lado, apesar de ainda não estar muito claro o significado destas visões e sua relação com a morte no caso dela, acredito que poder confiar a mim a declaração destes fatos, certa de que teria acolhimento ao relatá-los, possibilitou que nosso vínculo ficasse ainda mais fortalecido e, com isso, continuarmos em busca de novos significados, de novas situações. Como por exemplo, uma das visitas que fiz a D. Maria levando comigo uma pessoa especial. Foi assim: D. Maria mudou-se temporariamente para a cidade de Santos para cuidar de sua saúde, lugar este que morou por muitos anos, conquistando amizades sólidas além da presença de alguns parentes, hoje já falecidos. Com a distância, nossos encontros passaram a se realizar pelo telefone e, em alguns fins de semana, uma visita surpresa. Em uma destas visitas, tive a idéia de levar meu sobrinho de cinco meses de vida. Eu já havia comentando o seu nascimento para D. Maria, e sempre, ao final dos encontros, ela me perguntava dele. Ela o chamava de “meu Luquinhas”, como se o conhecesse desde de que ele nasceu. Enquanto conversávamos na sala da casa de D. Maria, o Lucas a olhava fixamente, como que buscando nela um olhar que parecia escondido. Ela segurou ele em seu colo e o acariciava como se fosse seu netinho. Coincidentemente esta visita se deu no dia de finados e D. Maria tinha ido assistir a missa em homenagem aos mortos naquela manhã. Estava triste porque lembrara de muitas pessoas que estimava, mas a presença de uma criança veio lhe trazer a alegria; o Lucas veio presentificar a vida que continua através de outras gerações, de novos seres que em algum momento muito especial, passam a fazer parte de nossas vidas. Acredito que essa troca de experiências entre gerações que simbolizam: de um lado a despedida e de outro o começo, possibilitou que D. Maria desse continuidade à sua história através de uma nova vida que ela o abençoou com seus carinhos. Como diz Tagore [1913?] 7 em seu livro Religião do Homem: “A haste da fruta se solta, sua polpa amolece, mas a semente endurece para prover a próxima vida. Nossas perdas externas, devido à idade, têm igualmente correspondente nos ganhos internos”.
Com tudo isso percebemos que é necessário renunciar o mundo externo, os ganhos materiais, a própria vida, para ganharmos a liberdade eterna. Certos de que deixamos a nossa marca nas pessoas que nos cercam, nos objetos que compartilharam conosco momentos significativos e assim, usufruirmos da verdadeira riqueza que constitui o nosso mundo interno. A questão da morte se apresentou como um desafio para nós duas, pois se tratava de um momento de sua vida em que ela precisava se certificar de que já havia feito tudo e, então, preparar-se para o abandono deste mundo.
Conclusão
Ao longo deste trabalho pudemos explorar mais afundo o papel das recordações e lembranças para as pessoas de terceira idade. A experiência adquirida nos encontros com D. Maria, nos permitiu exemplificar o tema e refletir sobre o significado de suas histórias. Percebemos que D. Maria utilizava suas recordações para tentar entender o que tinha lhe acontecido ao longo dos anos, e tentar compreender seu lugar no mundo hoje. Foi o meio que ela encontrou de resignifcar situações vivenciadas e poder se preparar para uma nova etapa.
A presença do tema da morte, muitas vezes nos fez pensar em como seria para D. Maria não estar mais aqui. A sua preocupação com a filha e o marido eram questões que dificultavam uma reflexão de seus próprios sentimentos. Aos poucos, ela foi percebendo que não tinha como mudar as pessoas que iriam ficar, mas a compreensão dela em relação ao que iria lhe acontecer, poderia ajudar a aliviar a saudade.
Através de alguns autores pudemos verificar que, em muitos casos, os idosos se sentem preparados para receber a morte, pois ela é encarada como um fim. A preocupação reside naqueles que irão ficar, geralmente os filhos, que nem sempre estão preparados para aceitar a separação definitiva. No entanto, pudemos notar ainda que mesmo se tratando de um tema que, em nossa cultura, é muito triste, esta experiência pode ser muito enriquecedora, no sentido de nos ajudar a compreender a natureza, onde tudo que nasce, cresce e morre.
Nos encontros semanais com D. Maria e através de suas histórias, pude, aos poucos, compreender a importância deste trabalho para ela e para mim. Constituímos um vínculo que a medida que o tempo passava, ficava mais fortalecido, possibilitando que eu me questionasse a cada instante os meus valores e o meu papel como acompanhante terapêutica e psicóloga, disposta atuar com pessoas idosas.
A seguir…..
Para encerrar esse fechamento, gostaria de apresentar as considerações de Tagore sobre a morte, apresentada em seu livro A Colheita. Diz ele: “O que oferecerás à Morte, quando ela bater à tua porta? Vou oferecer à minha hóspede a taça cheia de minha vida. Não deixarei que ela vá embora de mãos vazias. Colocarei diante dela a suave colheita de todos os meus dias de outono e de todas as minhas noites de verão. No fim dos meus dias, quando ela bater à minha porta, vou entregar-lhe tudo o que ganhei e tudo o que recolhi com o árduo trabalho de minha vida”. (1913, p. 90)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas:
1 – Produção publicada no Site AT em 09 de abril de 2003.
2 – E-mail:[email protected]
3 – VARGAS, Heber S. Psicologia do Envelhecimento: Funções mentais e envelhecimento, Revista Psicogeriatria Geral, v. I, cap. III-2, p. 43-44.
4 – BENJAMIN, Walter. O narrador. Obras escolhidas, vol. 1, p. 197-221.
5 – BENJAMIN, Walter. O narrador, Obras escolhidas, vol. 1, p. 207.
6 – SAFRA, Gilberto. A face estética do self: teoria e clínica, p. 154.
7 – TAGORE, Rabindranath. Religião do homem, p. 4.
Artigo publicado no “Site AT” em 09/04/2003.
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