Fragmentos Sobre a (Não) Indicação de um Acompanhamento Terapêutico
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Eu sou acompanhante terapêutico da ONG ATUA – Rede de Acompanhamento Terapêutico.
Também sou psicanalista, e vivi uma situação com um cliente em análise na qual pensei sugerir o acompanhamento terapêutico, mas acabei por não fazê-lo. Aqui tentarei dizer porque não se indicou um acompanhamento terapêutico.
Gustavo é um rapaz que, aos vinte anos, viveu um ensurtamento. Ele chegou até meu consultório trazido pelos pais quando já não saía mais de casa.
Trocara o dia pela noite, via televisão o tempo todo, não tomava banhos, nem comia, por nojo, a comida que fulano tinha posto a mão.
Porém o pior aconteceu quando iniciou ataques agressivos, primeiro contra a mãe primeiro, depois contra a irmã, depois o pai, até chegar a socar a avó.
Fazia já um ano que Gustavo terminara o colegial. Desde então, se isolara dentro de casa. Suas únicas conexões com o mundo exterior eram a televisão e as revistas de quadrinhos.
Apenas para dimensionar a gravidade da situação, devo lhes dizer que, já no período inicial do tratamento, Gustavo, depois de brigar violentamente com a irmã, fez uma ameaça de suicídio quebrando os vidros da janela do quinto andar do apartamento em que morava, para se jogar dali.
Levamos um bom tempo da análise até Gustavo deixar de se perceber fundido com os personagens das histórias de quadrinhos, e transformar sua vida em uma espécie de universo mágico e fabuloso.
Só depois dessa distinção, pudemos explorar a mitologia de seus super-heróis e super-inimigos. Isso permitiu que ele se re-organizasse emocionalmente, a ponto de voltar a frequentar as aulas preparatórias para os exames da faculdade.
A maior demanda de contato com os outros, mesmo que mínima, voltou a apavora-lo. O enorme retraimento e a intensa angústia por ter que estar no mundo, muitas vezes me levavam a pensar em lhe sugerir o acompanhamento terapêutico.
Eu imaginava que um curso de desenho de história em quadrinhos, por exemplo, seria um ótimo dispositivo para Gustavo por à prova suas formas de entender o mundo.
Mas, ao longo do tempo, percebi que os “nãos” de Gustavo não significavam isolamento. Ele pedia sobretudo uma vida filtrada através de sua lentifição.
Talvez porque tenhamos encontrado essa lentidão, Gustavo prestou os exames e entrou na faculdade.
Ele ficou muito contente com essa perspectiva de vir a ser adulto, nessa forma bem comum que a maioria de nós nos organizamos: uma faculdade e uma profissão.
Entretanto, nas vésperas do início das aulas, Gustavo atingiu o pânico absoluto. Temendo os tradicionais trotes, não sabia como chegar à faculdade para assistir às primeiras aulas.
O receio de ser humilhado o fez começar só na terceira semana. A aflição de Gustavo cresceu até ele me confirmar que nunca mais voltaria à faculdade. Nesse mesmo dia, sua mãe me telefonou para dizer que se disporia a ficar na esquina da universidade enquanto Gustavo tentasse permanecer na sala de aula.
Foi então que pensei outra vez no atê. Pensei no atê como alguém que funcionasse como referência não discrepante, disponível para Gustavo e seu horror.
A presença de um atê, além de ser menos infantilizante e menos endogâmica do que se a mãe estivesse lá, poderia favorecer para Gustavo uma entrada que parecia emperrar logo de saída.
Enquanto pensava nisso tudo, eu experimentava um nítido desconforto se imaginava indicar um atê para estar com Gustavo nesse começo.
Percebi que sugerir um atê significaria o veredicto de minha desconfiança na capacidade de Gustavo enfrentar aquela situação tão crítica. Essa atitude minha representaria o meu trote de veterano sobre a cabeça caloura de Gustavo!
Foi isso que me fez compreender que Gustavo precisaria enfrentar aquela situação extrema com seus próprios recursos: ele tinha algum desejo de superá-la, os pais estavam próximos e poderiam, por exemplo, leva-lo até a porta da faculdade; e se tudo aquilo se tornasse insustentável, significaria que Gustavo ainda não estava preparado para dar um passo daquele tamanho.
Aos poucos e com muito trabalho psíquico, Gustavo teve a sorte de conseguir se aproximar de dois rapazes com os quais estabeleceu um vínculo e esboçou um lugar para suportar os começos.
Todo esforço, não evitou a desistência temporária, oito meses mais tarde…
Mas seguir essa análise nos levaria para longe do que mais nos interessa aqui, que é a indicação do acompanhamento terapêutico.
Interessa entender aqui que Gustavo, desde o início da análise, carregava consigo seu desejo: ele não queria sair de casa, ele não queria vir à análise, ele não queria fazer coisa alguma, e quando pode ir à faculdade, logo depois ele não queria ir às aulas. Ele tinha um “desejo de não”.
Era assim que ele mantinha preservada uma unidade da sua pessoa.
Sei que se trata de uma posição bem difícil e arriscada essa de afirmar-se “sendo-não”… Entretanto, o forte incômodo que eu sempre senti ao pensar lhe propor o acompanhamento terapêutico, tão forte a ponto dessa sugestão nunca ter se materializado, vinha desse desejo de não que se me opunha.
Havia em Gustavo, portanto, uma interioridade, uma pessoa um pouco formada, uma Forma na “forma do não”.
Agora, aproximemos essa experiência com Gustavo do fragmento de um acompanhamento terapêutico feito por um colega atê, que eu seguia em uma supervisão em grupo 3.
Desde o início desse acompanhamento terapêutico com Alberto, o atê detectara em si mesmo um cansaço, causado pelo engessamento de estar, todo o tempo, ao lado de um rapaz imobilista e gelado, que não deixava nada acontecer.
A história de Alberto era cheia de abandonos e parecia que a separação abrupta da mãe lançara-o numa espécie de desmoronamento incalculável.
Através dessa paralisia, Alberto talvez pretendesse garantir uma mínima interioridade para seu corpo em risco de diluição.
Já há algumas semanas, quando o atê chegava, Alberto sempre estava sentado no sofá, e permanecia no mesmo lugar e, às vezes, na mesma posição corporal, durante todo o encontro.
Os olhares e as palavras eram raros, ainda que o atê tentasse estabelecer algum contato. A impressão de empedramento só crescia.
Congelado, Alberto quase não respondia às perguntas ou às proposições que o atê lhe fazia, nem reagia aos toques que o atê experimentava fazer no corpo dele.
Tudo seguia em meio a esta quase catatonia, quando uma única coisa começou a se movimentar: neste estado de paralisia, Alberto, em algum momento do encontro com o atê, começou a babar.
Lentamente, a saliva que se acumulava em sua boca entornou, e começou a escorrer por um canto dos lábios, derramando-se sobre a blusa, sem qualquer reação da parte de Alberto.
Aquela baba, como um interminável riachinho de cuspe, escorrendo diante do atê, causou bastante nojo no atê, fluiu sem parar, irritando-o bastante, até deixá-lo exangue.
Aquela matéria líquida era a expressão acabada de um abandono aos estados de muita destruição. Mas agora, Alberto parecia se auto-provocar sensações através de uma substância corporal mole, como fazem muitos autistas.
Essa boca de Alberto que babava, aberta na presença do atê, era também o signo do Informe.
Era a porta para a diluição infinita do eu, uma espécie de hemorragia do nada, e, ao mesmo tempo, a configuração, o contorno, de uma porta para o Aberto.
Então, nesse instante, o atê fez o gesto interpretante: segurando um lenço de papel, começou a enxugar a baba de Alberto, iniciando para Alberto o contorno deste buraco de onde vertia o sem-forma.
À medida que limpava a baba de Alberto, o atê lhe fornecia as primeiras marcas de alguma borda, o esboço de uma finitude.
Enquanto o atê fazia este gesto que circunscrevia para Alberto a boca dele, desenhando ao mesmo tempo um fechamento e uma abertura que poderiam também constituir o umbral de um Si-mesmo de Alberto, o atê passou a descrever seu gesto.
Contava para Alberto que ele estava limpando-lhe a boca, porque mais uma vez ela começara a verter; limpava-lhe a boca inerte e infinita, pensando que Alberto poderia cuidar do que lhe ia por dentro; poderia… mas já que Alberto deixava jorrar o de dentro dele – um Dentro que o atê supunha existir – o atê podia secar-lhe a baba, contornando-lhe uma boca.
Falando assim, o atê fazia de Alberto a testemunha de seu trabalho interno: o atê mostrava o reconhecimento de uma angústia de aniquilamento, a sensação de uma impotência e a vontade de assegurar um continente, para daí poder relacionar-se com o mundo dos objetos não-Eu.
Esta situação toda se repetiu mais algumas vezes, até que o próprio Alberto começou, com um lenço, cuidar da própria baba, mostrando que entendera alguma coisa dos gestos do atê.
O salto pode ser enorme, mas penso que o nexo não se perderia em direção à magia se lhes dissesse que dois meses depois desse episódio, uma bola que sempre estivera encostada por ali surgiu, deslocando o campo de jogo desse acompanhamento terapêutico, do corpo de Alberto para o espaço do quintal da casa de Alberto.
Após dois meses, o atê observou que coexistiam, juntos em Alberto, o corpo ausentado e outro corpo, inesperadamente organizado, um corpo que jogava bola, e que surpreendentemente ágil, pulava o muro do vizinho.
Para não me estender demais, deixarei no ar uma ideia a respeito da indicação no acompanhamento terapêutico, que me fez aproximar essas duas situações clínicas aparentemente tão diversas.
A ideia parte da constatação de que tanto Gustavo quanto Alberto estão doentes; ou seja, eles têm diminuídas suas capacidades de produzirem vida em suas próprias vidas.
Toda força libidinal de cada um deles é investida principalmente na autoconservação de si mesmos. Entretanto, cada um deles adoece de modo distinto: Gustavo, por um lado, afirma, para si e para os outros, um desejo e uma vontade próprios.
Mas se ele afirma desejo e vontade, ao mesmo tempo, ele enfraquece aquilo que afirma quando ele afirma um desejo-de-não e uma vontade de negar…
Ao fazer da negação, sua vontade, ele deprecia a vida e a enfraquece. Torna sua vida uma ficção, irrealiza a vida, idealizando uma outra forma que eu chamaria de superior.
Agora, se Gustavo demonstra tal vontade de negar, Alberto faz outra coisa, mais radical: Alberto é o protagonista do nada de vontade.
Para ele, não se trata da vontade de negar, e sim da negação de toda vontade. Sua doença é a extinção, o não-ser, a vida tornada nua.
Ele respira a abolição da vida e nesse sentido, ele está muito mais abraçado com a face mortal da Morte 4.
Penso que na trilha dessa diferença poderemos entender porque Gustavo resiste e recusa a entrada do atê, enquanto Alberto o recebe.
Será que a resistência de Gustavo corresponde à capacidade que ele tem de ainda afirmar algo, mesmo que uma realidade negativada, enquanto Alberto quer, com necessidade, alguém a seu lado, em seu quarto, mais perto, ligado a seu corpo, porque ele já resvalou para cair na passividade mortífera?
Poderíamos nos apoiar nessa diferença para afirmar que Alberto largou a vida inteira para deixar-se ser tratada enquanto Gustavo preserva o terapêutico apenas para os espaços terapêuticos?
Até que ponto poderemos avançar na generalização que nos orientaria para determinar em quais situações psíquicas o acompanhamento terapêutico é uma indicação que pode dar parto a um corpo, e dar um corpo às palavras, e em quais situações ele é contra-indicado porque não faria mais do que “psicologizar” a vida e deter o vivo?
Notas
1 – Trabalho publicado no Site AT em 21/02/2010.
2 – Mauricio Porto – Telefone: 3871-1261. Email: [email protected]
3 – Agradeço a Enrico Faldini com quem tive a oportunidade de partilhar esta elaboração do acompanhamento terapêutico.
4 – Por causa desse próprio lançamento no tão abissal, Alberto se avizinha ainda de uma outra morte: uma morte que não termina, uma morte que é antes um poder-morrer, infinitas vezes. Essa morte que é antes um morrer, é a face vital da morte. É o Informe. É também aquilo que Freud chamou de Inorgânico, tempo do originário, âmbito do brotamento original das pulsões antes de seus destinos, espaço intacto do Real.
5 – Agradezco a Enrico Faldini con quien tuve la oportunidad de compartir esta elaboración del acompañamiento terapéutico.
6 – A causa de ese propio lanzamiento en lo tan abissal, Alberto aproximase de otra muerte: una muerte que no termina, una muerte que antes es un poder-morir, infinitas veces. Esa muerte que antes es un morir, es la cara vital de la muerte. Es lo Informe. Es también aquello que Freud llamó de Inorgánico, tiempo del originario, ámbito del brotamiento original de las pulsiones antes de sus destinos, espacio intacto del Real.
Autor: Mauricio Porto – Mauricio Porto – psicanalista, acompanhante terapêutico, professor do Curso de Psicopatologia na Faculdade de Saúde Pública/USP, participante do Estágio Assistido em Acompanhamento Terapêutico, em São Paulo.
Formulário de contato on-line e 24 horas com o autor:
http://Graça%20Feio
Na minha experiência,o papel do acompanhante terapêutico é fantástico.
Ao meu ver, isso tem que estar ligado ao psiquiatra e psicoterapia. Pois, quando o paciente tem esses acompanhamentos, melhor é a ajuda com o trabalho do acompanhante terapêutico, entre paciente, família e ajuda ao mesmo!!!