Um panorama geral sobre o Acompanhamento Terapêutico

Autora: Karla Bernardes da Fonseca – Graduanda em Psicologia (PUCRS). Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. E-mail: [email protected]

 

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo dar uma idéia geral sobre como funciona a prática do acompanhamento terapêutico, entendida como um modelo de intervenção em saúde mental baseada em uma clínica que ocorre no cotidiano do paciente. Objetiva-se mostrar a importância de tal prática, as diferenças da clínica comum, habilidades e características que fazem do acompanhante terapêutico um profissional diferenciado e o que se espera desta clínica.

PALAVRAS-CHAVE: Acompanhamento terapêutico, reabilitação psicossocial, habilidades.

 


INTRODUÇÃO:

O acompanhamento terapêutico (AT) começa a surgir na história como uma experiência antipsiquiátrica, dando ao terapeuta a oportunidade de trabalho em locais do cotidiano daquele paciente, havendo assim uma mudança significativa na perspectiva de cuidado aos doentes (BELLOC, 1998; SILVA, 2005). Desde o ponto de vista da Reforma Psiquiátrica, há a possibilidade do tratamento ser proveitoso nos diversos locais, relações e situações para que o sujeito possa experimentar suas formas de estar no mundo. Dessa maneira, o tratamento ganha o espaço das ruas, aproveitando-se de todas as oportunidades para algo novo surgir (BEZERRA; DIMENSTEIN, 2009).

Partindo do objetivo terapêutico de inclusão social, semelhante com os princípios da Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial, o acompanhamento terapêutico é uma atividade clínica, que constantemente procura deslocar o indivíduo de sua situação de dificuldade para poder recriar algo de novo. O projeto terapêutico não é ocasional, apesar da convivência com o inesperado. É como se fosse um guia, provido de uma proposta terapêutica, que procura articular a pessoa em seu espaço social. É um processo de reinvenção que se faz presente a partir da própria condição do sujeito acompanhado (PITIÁ et al, 2009;  SILVA, 2005).

Deixando de se ocupar apenas com a doença, com a prescrição de medicamentos e aplicação de terapias, os profissionais da atenção psicossocial passam a se ocupar dos sujeitos que precisam de tratamento e com a qualidade do cuidado oferecido. Passam a ocupar-se também do cotidiano, do tempo, do espaço, do trabalho, do lazer, do ócio, do prazer e da organização de atividades conjuntas. Em consonância com o processo de reabilitação, espera-se que os profissionais trabalhem enfatizando as partes mais sadias e as potencialidades do indivíduo, mediante uma abordagem compreensiva, oferecendo suportes: vocacionais, sociais, recreacionais, residenciais, educacionais, ajustados às demandas singulares de cada indivíduo (PITTA, 2001; FUREGATO, 2000; AMARANTE, 1999 apud PITIÁ et al, 2009).

 

 

CARACTERÍSTICAS DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO:

O acompanhamento terapêutico é considerado uma proposta clínica porque há uma relação terapêutica entre o profissional e o acompanhado, a atividade ocorre em sintonia com a execução do projeto terapêutico que favorece o processo de reabilitação psicossocial do sujeito atendido. (PITIÁ et al, 2009)

É a possibilidade de o setting ocorrer na rua que diferencia o acompanhamento terapêutico das outras práticas clínicas. Assim, o acompanhante terapêutico busca na rua a possibilidade de o sujeito integrar-se ao contexto social. (PELLICCIOLI, 1998; SILVA, 2005). Ter a oportunidade de participar do dia-a-dia do paciente, mesmo que não o tempo inteiro, “coloca o acompanhante terapêutico em contato direto com o modo como as coisas ocorrem na vida dessa pessoa”. (CARVALHO, 2004, p. 34).

No acompanhamento terapêutico, o setting pode ser bastante variável, podendo estas variáveis ser o horário, o local e a duração de cada sessão. Os encontros podem ocorrer em diversos locais tais como shoppings, parques, festas e até mesmo a casa e o quarto do paciente. O horário do acompanhamento não necessariamente precisa ser no horário comercial normal e os encontros costumam ter duração mínima de duas horas. Em certos momentos o terapeuta vai ao encontro do paciente em sua casa, podendo também combinar de encontrá-lo em locais públicos. (CARVALHO, 2004).

O trabalho do acompanhante terapêutico comumente envolve familiares e o círculo de amigos que fazem parte da vida do paciente. Estes podem ser esclarecedores e até produtivos no tratamento, porém por vezes podem fazer com que o tratamento não vá para frente ou que até mesmo precise ser encerrado. (CARVALHO, 2004). O acompanhante terapêutico em muitos momentos acaba por partilhar de momentos de intimidade da família do paciente, como jantares, discussões e disputas, podendo ser convocado a tomar partido da situação. (CARVALHO, 2004).

O dia-a-dia, o contexto familiar, social, o trabalho e o lazer vistos de maneira muito próxima a realidade cotidiana vivenciada nos atendimentos vão mostrando os caminhos a serem traçados, propulsionando para a reconstrução de uma autonomia de base, utilizando-se dos recursos presentes no cotidiano do paciente, “trata-se de reabilitação enquanto reconstrução da existência” (SILVA, 2008). Essa Reabilitação é vista como um processo que passa por remover barreiras que impedem a integração do individuo com a sociedade (CARVALHO, 2004). O trabalho passa por estar junto do paciente, fazer coisas que comumente não são feitas, superar algumas limitações e desenvolver potencialidades, muitas vezes servindo como exemplo (SILVA, 2008).  Faz parte da função do acompanhante terapêutico aproveitar qualquer oportunidade como espaço de tratamento (BEZERRA; DIMENSTEIN, 2009).

O acompanhamento terapêutico é uma clínica sim, mas uma clínica que lança mão de teorias que estão distribuídas, ou seja a gente precisa de um pouco da filosofia, precisa de muito da psicanálise, precisa de arquitetura, precisa dos reichianos e suas teorias corporais, precisa da análise institucional, precisa das teorias de grupo, quer dizer são todas as teorias que evocam algumas regiões do conhecimento e da prática clínica que nos interessam muito para gente poder desempenhar essa função muito complexa do acompanhamento terapêutico (CAROZZO em entrevista apud CARVALHO, 2004, p. 32).

O estar com o paciente não significa apenas estar ali. Deve-se haver uma disponibilidade genuína para que diferentes momentos e situações de vida do paciente sejam partilhados. É como um “estar ali para o que der e vier”. Esse profissional em certos momentos pode ser uma simples testemunha chegando até a ser um parceiro de aventuras (CARVALHO, 2004).

A QUEM SE DESTINA O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO:

O acompanhamento terapêutico costuma se destinar a pessoas que, em geral, são portadoras de um sofrimento psíquico grave, que vai além de um problema de saúde em si. Por mais que neste trabalho muitas vezes não se possa ajudar a resolver todas as dificuldades, pode-se trabalhar com o resgate e promoção da qualidade de vida (CARVALHO, 2004).

As necessidades psicossociais específicas dos pacientes em reabilitação passam por uma reconstrução, como a capacidade de lidar com problemas cotidianos, desenvolvimento de auto-estima, habilidades sociais, autonomia e prática da cidadania (SILVA, 2008).

O acompanhamento terapêutico possibilita aos pacientes um retorno a condições existenciais perdidas e ambicionadas. Da mesma maneira, permite que descubram soluções para problemas práticos da vida cotidiana e das relações interpessoais. A partir do momento em que o paciente aceita a idéia de ser acompanhado e cuidado por alguém, abrem-se as portas para uma longa trajetória até que possa voltar a ser capaz de cuidar de si próprio. Não é simplesmente atingir esse objetivo que faz um tratamento ser bem sucedido, isso mostra que ele atingiu certa capacidade de cuidados capazes de facilitar o crescimento individual e viabilizar processos maturacionais (ESTELLITA-LINS et al, 2009).

O ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO:

O acompanhamento terapêutico, também chamado de amigo qualificado, acompanhante domiciliar, entre outros, é exercido predominantemente por psicólogos, porém outros profissionais da área da saúde como terapeutas ocupacionais, enfermeiros e psiquiatras também atuam nessa área (CARVALHO, 2004).

O acompanhante terapêutico observa, assiste e acompanha o sujeito em tratamento e recuperação nas mais diversas patologias, agindo como um colaborador na terapia. Sua tarefa comumente não é isolada, encontrando-se imersa em uma equipe multidisciplinar (CABALLO et al, 2010).

Esse profissional desempenha papeis fundamentais no que diz respeito a criar contingência, ser um modelo, reforçador social, estimulando e participando da vida do paciente, sendo um importante elemento na intervenção terapêutica (CABALLO et al, 2010).

A função do auxiliar-psiquiátrico, teoricamente, é acompanhar o doente. É estar junto, verdadeiramente, em qualquer hora; é incentivá-lo a atividades construtivas, reprimi-lo em atividades destrutivas, ampará-lo na hora da angústia. É estar com o paciente “na dele” […] Não é fazer as coisas por ele, alimentando a dependência. […] Mesmo que o auxiliar ache uma idéia “maluca”, desde que não traga perigos para o paciente, deve incentivá-lo e mesmo ajudar a executar a obra. Boa ou má, deve ser levada à ação: assim o doente aprenderá por sua experiência. Aí o auxiliar pode até descobrir que o que ele achava não exeqüível, não o é. O auxiliar, como qualquer técnico. Estará aprendendo a toda hora com os doentes. São estes (e a nossa parte doente) que nos ensinam a tratar os doentes e não os Tratados de Psiquiatria […] se “ouvirmos” os doentes, saberemos tratá-los melhor. Isso é uma coisa que o auxiliar tem de saber fazer. (DAMETTO, 1989, p. 103-104 apud SILVA, 2005, p. 106)

 

HABILIDADES DO ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO:

Uma das habilidades do acompanhante terapêutico que o diferencia dos outros profissionais é a disponibilidade. É uma disponibilidade para o outro e para o novo, para incômodos e para situações inesperadas, onde não há a proteção de um consultório ou instituição. É disponibilidade de tempo, afeto e dedicação intensa. Devido à proximidade e liberdade que possuem tais profissionais, muitas vezes são requeridos pelos pacientes em momentos e horários inusitados, é como estar de prontidão para aquele paciente. Cabe ao profissional avaliar se atender a tal solicitação será benéfico ou não para o seu paciente (CARVALHO, 2004).

Outra habilidade do acompanhante terapêutico é o “estar com o paciente”, isso é, uma proximidade existencial e concreta. É atender a demanda do paciente, propiciando assim seu bem estar emocional, fazendo uso de seu ambiente cotidiano como referência e integrando o mesmo ao seu eu. É comum o profissional que acompanha servir como “ego auxiliar” ao acompanhado. Ele age de forma plástica, ousada e continente, auxiliando a organização do indivíduo. Essa prática passa por um envolvimento de forma total, é estar com o outro de maneira integral, buscando formas de experimentação da realidade que está a sua volta (CARVALHO, 2004).

Faz parte dessa prática uma escuta diferenciada, caracterizada pela atitude daquele que escuta. Essa escuta busca compreender verdadeiramente o que está sendo dito ou mostrado pelo paciente, através também daquilo que não é verbalizado. “Tal escuta implica acolher aquilo que extrapola o que o paciente consegue dizer e elaborar, tendo o cuidado de evitar qualquer tentativa de compreensão antecipada, sob pena de embotar a expressão verbal do paciente” (CARVALHO, 2004, p. 101).

A clínica do acompanhante terapêutico exige fundamentalmente flexibilidade. “Trata-se de lidar com a vida como ela é” (CARVALHO, 2004). Essa flexibilidade não significa ausência de limites, bem pelo contrário, trata-se de ter limites concretos que podem ser ajustados conforme conveniência. É o contato com aquilo que não é previamente estabelecido, possibilitando maior abertura no contato acompanhante / acompanhado. É uma clínica que exige do terapeuta a capacidade de agüentar e saber lidar com o imprevisto, de criar, inovar e experimentar (CARVALHO, 2004).

Também pode ser considerada uma habilidade do acompanhante terapêutico a capacidade de trabalho em equipe. Esse profissional age como um agente articulador entre os serviços de saúde mental do qual se utiliza seu paciente. Faz parte dessa prática a disponibilidade de análise pessoal e supervisões (CARVALHO, 2004).

Enquanto profissionais provenientes de diversas áreas da saúde mental, os acompanhantes terapêuticos poderiam acreditar que foram treinados para este fim, que aprenderam técnicas e foram capazes de aplicá-las no momento oportuno. Contudo, a disponibilidade afetiva constitui sua principal habilidade, pois o desenvolvimento de qualquer vinculo terapêutico depende desta disposição (ESTELLITA-LINS et al, 2009).

EFEITOS DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO:

Um dos efeitos que se busca na prática do acompanhamento terapêutico é a viabilização de novas maneiras de o paciente estar no mundo. Assim, o acompanhado constrói e reconstrói possibilidades de se relacionar com as pessoas e de desempenhar papeis sociais. É um trabalho de reconstruir juntamente ao paciente subjetividades perdidas ou ameaçadas, levando em conta sua singularidade (CARVALHO, 2004).

Também é esperado que o paciente se inclua socialmente. Para alguns indivíduos o simples fato de conviver com outras pessoas em lugares comuns do seu cotidiano já representa um ganho considerável na qualidade de vida. A inclusão social se da na vida como um todo, seja na sociedade propriamente dita, ou até mesmo na família de origem. O paciente passa a ser visto como um ser com inúmeras possibilidades, mesmo que este possua dificuldades (CARVALHO, 2004).

CONCLUSÃO:

 

O presente artigo buscou apresentar características a respeito da prática do acompanhante terapêutico partindo do ponto de vista prático e teórico de autores do assunto. Aqui pude ter uma idéia mais ampliada do que é essa prática clínica e da sua importância no que diz respeito, principalmente, a reabilitação psicossocial e resgate da qualidade de vida dos sujeitos.

Vi o acompanhamento terapêutico como uma clínica que funciona assim, estar presente de forma inteira com o paciente, em momentos de intimidade e de loucura, buscando sempre auxiliá-lo no que for necessário, compreendendo-o e fazendo uma escuta adequada, sempre estimulando suas potencialidades e auxiliando na construção de sua independência, aprendendo a lidar com as dificuldades do cotidiano.

Todo profissional da saúde que deseja trabalhar com esta forma de acompanhamento, deve estar disposto a entregar-se a uma clínica onde o imprevisto anda lado a lado com a certeza de possibilidade de melhora. Acompanhar o paciente é sim, “entrar em roubadas” juntos com ele, mas, a partir disso, conseguir fazer com que ele veja com os próprios olhos que nem tudo da certo. Assim, pode-se promover a independência e adequação deste sujeito a sociedade, onde ele com certeza vai ganhar com qualidade de vida e com um “amigo qualificado”, que ele pode contar a qualquer hora.

 

 

REFERÊNCIAS:

  • BELLOC, M. Algumas reflexões sobre a clínica do acompanhamento terapêutico. In: PELLICCIOLI, E.; CABRAL, K.; BELLOC, M.; MITTMANN, N. Cadernos de AT: uma clínica itinerante. Porto Alegre: Grupo de Acompanhamento Terapêutico Circulação, 1998.
  • BEZERRA, C.; DIMENSTEIN, M. Acompanhamento terapêutico na proposta de alta-assistida implementada em hospital psiquiátrico: relato de uma experiência. Revista Online: Psicologia Clínica – v 21, 2009.
  • CABALLO, V.; IRURTIA, M.; ARIAS, V. Treino de habilidades sociais em situação natural. In: LONDERO, I. (org) Acompanhamento Terapêutico: teoria e técnica comportamental e cognitivo-comportamental. São Paulo: Santos, 2010.
  • CARVALHO, S. Acompanhamento Terapêutico: Que clínica é essa? São Paulo: Annablume, 2004.
  • ESTELLITA-LINS, C.; OLIVEIRA, V. COUTINHO, M. Clínica ampliada em saúde mental: cuidar e suposição de saber no acompanhamento terapêutico. Rio de Janeiro: Ciência saúde coletiva – v 14, 2009.
  • PITIÁ, A.; FUREGAT, A. O Acompanhamento Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental. Botucatu: Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 2009.
  • PELLICCIOLI, E. Considerações sobre a prática do acompanhamento terapêutico. In: PELLICCIOLI, E.; CABRAL, K.; BELLOC, M.; MITTMANN, N. Cadernos de AT: uma clínica itinerante. Porto Alegre: Grupo de Acompanhamento Terapêutico Circulação, 1998.
  • SAVOIA, M.; SAMPAIO, T. Técnicas cognitivo-comportamentais: considerações sobre o repertório do AT. In: LONDERO, I. (org) Acompanhamento Terapêutico: teoria e técnica comportamental e cognitivo-comportamental. São Paulo: Santos, 2010.
  • SILVA, A. S. T. emergência do acompanhamento terapêutico: o processo de constituição de uma clínica. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado – UFRGS, 2005.
  • SILVA, P. A clínica de portas abertas: experiências e fundamentação do acompanhamento terapêutico e da prática clínica em ambiente extraconsultório. São Paulo: Revista Brasileira de Psiquiatria, 2008.

Artigo publicado no “Site AT” em 26/05/2011.

Supervisão em AT.

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