Quem gosta de ficar trancado?

Autor: Revista Época.


Entrevista da Revista Época com o psicanalista Flávio Carvalho Ferraz

Psicanalista diz por que a rua trata os loucos melhor que os hospitais psiquiátricos

Época: Por que os asilos e manicômios não servem ao tratamento efetivo dos loucos?

Flávio Carvalho Ferraz: A instituição asilar, ainda que movida pela melhor das intenções, não parece ter captado a importância fundamental da liberdade de vagar livremente para os loucos. O movimento antimanicomial, surgido com o advento da antipsiquiatria, fundamenta-se na constatação de que a instituição fechada não trata verdadeiramente o louco, mas o exclui do convívio social.

Época: Qual é o papel da rua para o louco?

Ferraz: Em primeiro lugar, a rua é capaz de tratar o louco melhor que as instituições feitas para isso. O louco clama por liberdade e, por isso, a rua é seu hábitat natural. A liberdade de circular é o equivalente à liberdade de pensar e fantasiar. Mesmo sabendo que a rua obriga o psicótico a passar por uma série de sofrimentos, ela ainda é o agente privilegiado para lhe dar suporte.

Época: Entre a rua e os asilos tradicionais há alguma alternativa de tratamento para a loucura?

Ferraz: Sim. Trata-se do “acompanhamento terapêutico”. É uma técnica auxiliar no tratamento da psicose em que o profissional sai pelas ruas com o louco, permitindo a ele participar de tudo o que a cidade oferece. Essa técnica não apenas devolve ao louco o direito de usufruir o espaço público como cidadão, mas é efetivamente terapêutica, já que o trata.

Época: O senhor falou da importância da rua para o louco. E para a sociedade, o louco oferece alguma coisa ou não passa de um estorvo?

Ferraz: Ele pode ser visto como um estorvo quando não temos instrumentos para compreendê-lo e com ele conviver. Mas é evidente que a loucura exerce forte atração sobre todos nós. É uma espécie de espelho que nos mostra aquilo que temos mas nem sempre sabemos que nos pertence. Os instintos, as fantasias e as idéias inconscientes no psicótico se tornam visíveis. Por isso o louco fascina. Todo mundo gosta de olhá-lo com curiosidade.

Época: Qual é a diferença entre o louco de rua e o louco trancado em casa ou num asilo qualquer?

Ferraz: A diferença fundamental é que o louco excluído da sociedade vê negado seu próprio direito à cidadania. Além do mais, nada indica que o isolamento ou a prisão o recupere. Já a liberdade de andar pela cidade e a participação na vida da comunidade, por si mesmo, têm efeitos terapêuticos. E, ainda que não os tivessem, ao menos diminuiriam o sofrimento. Será que alguém gosta de ficar trancado?

Época: O isolamento e o tratamento à base de remédios podem significar a cura da loucura?

Ferraz: Cura é uma expressão muito forte. Existem alguns indivíduos que passam por surtos esporádicos, mas fora desses períodos podem levar uma vida absolutamente normal, sem problemas. Em certos casos mais severos, porém, o que importa é providenciar uma situação na qual exista o melhor bem-estar possível tanto do paciente quanto de sua família. É fundamental encontrar algum tipo de conforto.

 

 

Fonte:

http://epoca.globo.com/edic/19980914/ciencia1d.htm

Artigo publicado no “Site AT” em 22/07/2002.

Supervisão em AT.

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