Autora:
- Cilene Pereira (Revista “Isto É”).
Entrevista da Revista Isto É com o psiquiatra Nelson Carrozzo
Entrevistadora: Cilene Pereira
No sábado 23, uma festa comemorou uma vitória histórica. A CASA – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Saúde Mental e Psicossocial, festejou 20 anos de atividade em São Paulo com bolo e alegria. Quem conhece um pouco da história da psiquiatria brasileira sabe que realmente há muito o que se comemorar. A CASA foi uma das primeiras instituições a adotar no Brasil o esquema de hospital-dia para pacien-tes com transtornos mentais. Iniciativas como essa foram um marco na prática psiquiátrica nacional. Elas começaram a deixar para trás uma era cruel em que a única alternativa para a maio-ria dos doentes era ser esquecido em algum manicômio. Na instituição A CASA não há internação. O paciente chega de manhã, toma o café da manhã, participa de grupos de terapia, oficinas de trabalho, teatro. Sai no final da tarde, de volta para uma sociedade que, espera-se, aos poucos o receba de volta. ISTOÉ conversou com o psiquiatra Nelson Carrozzo, um dos fundadores da instituição, juntamente com Beatriz Aguirre, Sônia Ferrari e Regina Von Atzingen.
ISTOÉ – Qual o objetivo de A CASA?
Nelson Carrozzo – Atender pessoas com sofrimento mental em estado grave, que precisam de acolhimento em diferentes níveis: físico, medicamentoso, psicoterápico, familiar e até social. Achamos que internação psiquiátrica é algo para ser indicado em situações muito restritas.
ISTOÉ – Quais os tipos de doenças que vocês atendem?
Carrozzo – Psicoses, das quais a que mais nos preocupa é a esquizofrenia. Muitas vezes ela aparece na adolescência e, se não tratada, pode levar a sérias limitações posteriores. Atendemos também depressões e neuroses graves, em que a pessoa não consegue trabalhar ou até sair de casa, como as fobias e a síndrome do pânico.
ISTOÉ – Quando é necessária a assistência em hospital-dia?
Carrozzo – A pessoa que apresenta um nível de sofrimento mental grande muitas vezes não consegue trabalhar, namorar. Na psicose, em geral, a crise aparece com uma sensação de angústia e dor tão grande que a pessoa não sabe quem ela é ou começa a enxergar o mundo como sendo muito ameaçador. Outra situação é quando a pessoa começa a ficar isolada. É uma indicação para as famílias de que algo precisa ser feito.
ISTOÉ – Qual a vantagem do hospital-dia?
Carrozzo – A primeira é que esse tratamento, ainda que intensivo, não retira o paciente do convívio social e familiar. Porém, é preciso se criar uma teia de acolhimentos terapêuticos concomitantes: grupos de psicoterapia, de família, de terapia ocupacional, acompanhantes terapêuticos. Essa teia torna possível tratar crises graves fora do manicômio. O interessante é que a mesma teia que “segura” o paciente se oferece como uma representação de um exercício de vivência social.
ISTOÉ – Há famílias que não querem que o paciente volte para casa?
Carrozzo – Se as famílias tiveram de suportar coisas terríveis por causa do doente que foi colocado num hospital psiquiátrico e passou lá alguns anos, haverá dificuldade de recebê-lo de volta.
ISTOÉ – O modelo de A CASA dá bons resultados?
Carrozzo – Estamos contentes. Muitas vezes o paciente não conseguia nem chegar ao hospital-dia. Criamos o acompanhamento terapêutico. São psicólogos, terapeutas ocupacionais e médicos que fazem o acompanhamento do paciente nos momentos de dificuldade em que ele não está na instituição ou que o ajudam a estabelecer conexões com a cidade. E criamos também a “República”.
ISTOÉ – O que é isso?
Carrozzo – É uma moradia assistida. Nosso objetivo é proporcionar outra vivência a uma pessoa que já está em condições de ter uma autonomia mínima, mas que ainda precisa de acompanhamento para chegar num grau maior de independência.
ISTOÉ – Os manicômios são um sistema falido?
Carrozzo – São uma instituição não só falida, como retrógrada e desumana. São lugares onde os doentes recebem assistência psiquiátrica uma vez por semana. Não há psicólogos e a família não recebe assistência.
ISTOÉ – Por que aqui os manicômios ainda são frequentes?
Carrozzo – Os donos dos manicô-mios têm grande capacidade de se organizar e oferecer uma falsa solução para as famílias.
ISTOÉ – Qual a responsabilidade do governo?
Carrozzo – O governo está com uma grande batata quente que é a definição da política da Saúde Mental. A Lei Paulo Delgado está para ser aprovada com algumas mudanças. Ela não passou do jeito que foi feita, instituindo o fim dos manicômios, mas sim determinando que se diminuísse o número dessas instituições e se criassem novos hospitais psiquiátricos somente onde estivessem em falta. Além disso, a lei prevê que haja investimentos nas outras formas de tratamento, como o hospital-dia, as moradias abrigadas. A outra batata quente é a regulamentação do seguro-saúde. A assistência aos transtornos mentais, que não era coberta pelos planos, está sendo regulamentada para ser coberta. No entanto, o lobby das seguradoras é tão forte que cada vez mais se reduzem os tratamentos que elas deveriam pagar. A partir de janeiro de 2000, os seguros já deveriam cobrir todos os transtornos mentais. No entanto, parece que haverá mais um ano de prazo antes que todos os seguros sejam obrigados a pagar esses tratamentos.
Fonte:
Isto É – Nº 1569 – 27 de outubro de 1999.
http://www.terra.com.br/istoe/medicina/1999/10/22/003.htm
Artigo publicado no “Site AT” em 20/05/2002.
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