A Construção do Caso Clínico no Acompanhamento Terapêutico

Autor:

  • Jair Rodrigues de Aguiar Júnior – Psicólogo; Especialista em Filosofia pela UFMG;  Acompanhante Terapêutico formado pela Clínica Urgentemente e integrante da Séqüito: Equipe de Acompanhantes Terapêuticos.Telefone: (31) 3224-0926. E-mail: [email protected]

Nos últimos 50 anos ocorreram mudanças de paradigma significativas no atendimento aos doentes mentais. Os diferentes movimentos da Reforma Psiquiátrica iniciados no pós-guerra em alguns países da Europa, propondo  a transformação ou a abolição do hospital psiquiátrico, serviram de inspiração para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Mais especificamente, a partir dos anos 70, a Reforma Psiquiátrica Italiana nos trouxe, como imperativo político-ideológico, as propostas anti-institucionais e, conseqüentemente, de desconstrução do aparato manicomial, dos novos modelos de atendimento e do direito à cidadania aos portadores de sofrimento mental.1

O dispositivo clínico a que chamamos de acompanhamento terapêutico de certa forma também é, a um só tempo, herdeiro e agente deste processo. O debate sobre a desinstitucionalização implicou que se pensasse em novos modelos de atendimento a uma clientela marcada pela segregação e que perdera os vínculos afetivos, sociais e, muitas vezes, familiares; assim como, aos novos casos de surtos psicóticos, quando se apresenta o rompimento dos vínculos que mantinham com o outro, o social, a vida de uma forma geral.2

O acompanhamento terapêutico é tido como um dispositivo a mais no processo da desinstitucionalização de pacientes psicóticos, assim como no tratamento de pacientes que se encontram em ou passaram por processo de ruptura com a realidade – surtos, crises psicóticas, etc. É uma clínica feita no espaço geográfico das cidades, lugar que deixara de ser habitado, povoado pelo indivíduo. O acompanhante terapêutico (A.T.) trabalha às vezes como um mediador entre as conexões possíveis de se fazer/refazer entre o paciente e a cidade, a família e as outras modalidades de tratamento nas quais ele se insere; o A.T. coloca sua escuta a favor da singularidade do paciente para que, onde só se presenciava o mórbido, possa se desenraizar vida e, nesse sentido, sua prática vai mais além de uma simples mediação. Vejamos como isso acontece.

Topografia da Clínica

A psicanalista Sueli Rolnik nos dá uma definição curiosa sobre o acompanhamento terapêutico; segundo a autora este se caracteriza como sendo uma “clínica nômade”. O termo clínica, como sabemos, na sua origem etimológica vem do grego Klíne e quer dizer leito. Segundo Viganó:

a clínica é um ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito. É um ensino que não é teórico, mas se dá a partir do particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito. 3

A palavra nômade se refere, dentre outros termos, à errância, ao deslocamento e à vagabundagem. Temos, portanto, algumas concepções para pensarmos sobre a função e o lugar do A.T. Sua prática clínica não se dá num setting definido a priori, mas sim nas ruas. A pólis se constitui como esse imenso leito onde circulam por entre seus acidentes topográficos, o A.T. e o paciente. Historicamente marcado pela segregação, o louco vagueia a esmo pelas cidades ou é enclausurado nos hospícios, desta vez é a própria cidade que o rejeita, que se torna o espaço terapêutico. Nos apropriamos da sua “vagabundagem”, da sua errância para, errando, nos colocarmos abertos, nas nossas andanças, a formas de intervenção que nos possibilitem algum deslocamento, que façam alguma amarração e o conectem ao que da cidade possa lhe fisgar. Somente algo da ordem da surpresa, do “acontecimento”, poderá conectá-lo novamente à vida.

É bem verdade que as ruas são quentes, velozes e coloridas, mas também que oferecem quase simultaneamente beleza e imundície, multidão e isolamento, troca e indiferença, calor e solidão, afeto e violência. É nesse espaço belo e degradante, na paisagem da cidade, que saímos errantes com nossos pacientes, apostando, talvez, no surgimento de algum sinal, algum ruído, que nos coloque uma possibilidade de intervenção. Alguma descoberta que faça articular suas falas, seus gestos, seus corpos, no laço social. Nossos percursos, por vezes, são marcados pela monotonia, mesmice e repetição; de nossa parte é melhor não esperarmos muito e ficarmos atentos, deixando o caminho aberto às surpresas. Segundo Rolnik, o lugar do A.T. consiste nessa “espécie de nomadismo permanente (…) entre as dobras da clínica que se produzem ao sabor do acaso”. 4

Nos casos por nós trabalhados,

usamos no acompanhamento terapêutico a errância pela cidade e os projetos que podem surgir daí, como instrumentos para a criação de narrativas pessoais. Essas histórias, montadas sobre deslizamentos (de sentido e espaço) da dupla acompanhante-acompanhado, procuram tecer novas possibilidades às cristalizações e aos embrutecimentos da história desses pacientes. 5

Pois, a tarefa do A.T.

consiste em tentar tecer junto com o louco que ele acompanha redes para as quais seus investimentos façam sentido, de tal modo que o que era subjetividade petrificada possa vir a revitalizar-se, o que era desejo despotencializado, reativar-se. A experimentação consiste em fisgar no contexto problemático que se delineia ao longo das errâncias do acompanhamento elementos que possam eventualmente funcionar como componentes dessas redes; identificar focos suscetíveis de fazer a existência do louco bifurcar em novas direções, de modo que territórios de vida possam vir a ganhar consistência. 6

Aos acontecimentos que se delineiam, às palavras ou atos do paciente procuramos buscar algum estilhaço de vida, alguma conexão com novos territórios.

Deslizamentos Teóricos na Clínica do Acompanhamento Terapêutico

Não é incomum que, bem no início de nossa experiência como A.T.s, já comecemos a colocar nossa prática em questão. Algumas perguntas nos surgem com uma certa insistência: terá esta prática algum efeito clínico para estes pacientes? Estas intervenções produzirão alguma mudança subjetiva? Trará, aos acompanhados, algum benefício sair dos hospitais psiquiátricos, dos quartos de suas casas… para as ruas? Ou será apenas um passeio fora do cárcere institucional no qual vivem, para retornarem feito animais domésticos aos lugares de onde saíram? A cidade que já baniu, ao longo dos tempos, através de práticas de exclusão, a loucura para fora dos seus muros, assim como, para dentro dos muros dos manicômios, poderá estabelecer, na contemporaneidade, uma relação de convivência para com esta? Tais questões, ao surgirem, não devem ser menosprezadas, mas temos de ficar atentos para não nos paralisarmos, caindo no imobilismo frente à impotência por não termos respostas prontas. Isso requer firmeza para não cedermos à ansiedade por definições – fechando assim o campo da experiência e da investigação – e permitirmos que a prática nos possibilite construir nossa teoria.

O acompanhamento terapêutico não possui um saber teórico-clínico próprio, constitui-se como uma prática clínica que se apropria de outros campos do saber fazendo conexão, dentre outras, com certas referências da saúde mental e da psiquiatria e se orientando, no nosso caso, através da psicanálise. Nos vemos com certa frequência, frente às dificuldades encontradas, articulando tais saberes no contexto em que atuamos. Tomamos de “empréstimo” a teoria produzida noutros campos do saber que nos vem auxiliar quanto a nossos impasses. Vejamos alguns destaques:

1. Sobre a transferência: a proximidade entre acompanhante/paciente (inclusive física) nos coloca muito suscetíveis a quadros persecutórios, erotomaníacos, etc;

2. Sobre o espaço clínico: pelo fato de o espaço no acompanhamento não se limitar a umsetting definido – atuamos fora dos consultórios – temos de procurar uma forma de o irmos circunscrevendo, com o paciente, na geografia da cidade, na medida em que esta se nos apresenta;

3. Sobre o tempo no acompanhamento: o tempo tende a se prolongar muito além do atendimento no consultório, nos levando, por vezes, a forte desgastes. Sendo assim, o risco de o acompanhamento terapêutico se identificar, se perder, se envolver com o paciente se intensifica.

Devido a tais questões, para o manejo da clínica, procuramos articular o acompanhamento terapêutico ao uso de outros dispositivos, assim como de conceitos teóricos que nos orientem o trabalho. Torna-se importante também nos interrogarmos sobre o lugar em que o paciente está nos colocando e sobre a posição que ocupamos com relação a este na transferência. Sabermos o lugar em que o paciente nos coloca é uma estratégia fundamental na manobra da transferência e na posição com que nos colocamos diante deste. A teoria psicanalítica nos adverte quanto a isto, pois,

manobrar a transferência (…) é dirigí-la com o objetivo estratégico de barrar o gozo do Outro que invade o sujeito na psicose. Quem faz essa manobra é o analista pelo seu ato e, como tal, ele não se deixa manobrar pelo paciente que o colocará, por decorrência lógica de estrutura, em posição de objeto de uma erotomania mortífera. Para tanto é necessário que o analista apreenda sempre em que lugar o analisando o situa. Por intermédio de seu ato, o analista se contrapõe à manobra do analisando com uma outra manobra, para que este se instaure como sujeito e não como objeto de gozo do Outro. 

Apesar de a citação acima mencionada referir-se a uma situação entre analista e analisando, podemos também concerní-la à prática do acompanhamento terapêutico. O paciente psicótico assim o é em qualquer situação clínica e, portanto, na medida em que nossas intervenções têm uma incidência sobre o gozo do Outro no sentido de barrá-lo, também pode-se produzir aí um efeito de deslocamento do sujeito do círculo persecutório e mortífero no qual se encontra. Nos dois fragmentos de casos citados anteriormente, podemos constatar os efeitos de certas intervenções, quando, por exemplo, o paciente que só ia ao bar passa a fazer um outro percurso, indo ao campo de futebol, ou a paciente que diminui as passagens ao ato em que quebrava os objetos da casa, passando a falar das vozes que a incomodam. Nota-se nestes casos, como em outros, um efeito, inclusive no circuito pulsional, já que os pacientes começam a ter uma relação menos ameaçadora com as pessoas e o mundo e começam a fazer verdadeiras descobertas.

Um autor que nos oferece um instrumental teórico-prático singular no tratamento de pacientes psicóticos, o psicanalista belga Alfredo Zenoni, referindo-se à segunda clínica de Lacan, faz formulações  cruciais sobre o manejo e o tratamento da psicose; segundo ele:

é a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nós nos colocamos como aprender a praticar. 8

Zenoni nos recomenda colocarmo-nos numa posição de aprendizagem com relação à clínica, posição esta que a própria psicose nos possibilita, uma vez que o tratamento éinerente à própria psicose. Podemos nos apoiar nas invenções do sujeito, já que estas sãosoluções positivas que este dá ao tratamento do gozo que o invade. Podemos, desta forma, direcionar o tratamento do sujeito nos apoiando nas suas próprias invenções. Nesta mesma linha de pensamento, Viganó também nos faz pensar numa orientação clínica na qual o psicótico seja o verdadeiro operador do seu tratamento, desde que sustentemos um vazio de saber e que, ao invés de colocarmos a pergunta sobre “o que podemos fazer por ele?” a possamos reformular pela seguinte questão: o que ele vai fazer para sair deste lugar? 9

Zenoni nos fala também a respeito do trabalho feito por muitos ou vários que implica umadesierarquização do saber prévio, ou seja, um esvaziamento do saber por parte dos vários profissionais da instituição que leva a uma dispersão do suposto saber. Temos utilizado, na nossa prática, o termo rede de tratamento 10 para nos referirmos a uma abordagem desses pacientes em consonância com outros profissionais – psiquiatra, terapeuta ocupacional, etc. – e, dependendo do caso, lançando mão de outros dispositivos – hospital-dia, moradia protegida, etc. Nesta medida, o paciente nunca é atendido apenas pelo acompanhante, mas, na maior parte das vezes, por uma equipe que se constitui numa rede de tratamento. O A.T. é apenas uma das peças desta rede, sendo que, em alguns casos, indica-se até mais de um A.T. para o acompanhamento. Essa estratégia clínica tem, dentre outras vantagens, a de nos possibilitar que se dilua a transferência, evitando, assim, cairmos na perseguição ou na erotomania. Daí a importância de se articular o trabalho do A.T. com a prática de outros profissionais.

No entanto, o que pretendemos chamar de construção do caso clínico no acompanhamento terapêutico envolve, para além ou aquém da articulação da rede, uma aposta do acompanhante terapêutico no acontecimento, no inusitado, para, a partir daí, dentro de uma certa lógica, uma certa coerência com cada caso que se acompanha, saber como e de que lugar intervir, pois

Construir o caso clínico(…) é colocar o paciente em trabalho, registrar os seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam, para que o analista esteja pronto a escutar a sua palavra, quando esta vier. E isso pode levar muito tempo. Se houve um trabalho de construção, se foi possível notar, por exemplo, que ele fez o mesmo gesto por meses e meses; um dia ele dá um sorriso e não mais aquele gesto – é preciso notar que houve uma mudança. Aí então ele está dizendo que está construindo.11

Enfim, propomos pensar a construção do caso clínico como o que se dá a todo momento nas idas e vindas, voltas e reviravoltas do acompanhamento terapêutico. Acompanhar, discutir o caso nas supervisões, escrevê-lo, debatê-lo com vocês, é também construí-lo.

Mesmo considerando o louco como estando “fora do discurso” e a sua singular diferença, apostamos na possibilidade de sua inclusão na tecitura de uma rede mais ampla. Se ser louco é ser marginal, é viver à margem, também é possível que estas margens sejam alargadas e que a diferença se inclua, do seu jeito, no social, na cultura. Às vezes nos surpreendemos.

Bibliografia

BERGER, Eliane. Apresentação. In: EQUIPE de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto “A Casa” (org.). Crise e cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo: EDUC, 1997. p.07-10.

DESVIAT, Manuel. A reforma psiquiátrica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

EQUIPE de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto “A Casa” (org.). Crise e cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo: EDUC, 1997.

GARCIA, Célio. Rede de redes. Jornal do psicólogo. Belo Horizonte: Fato Comunicação, ano 18, n. 69, 2001.

QUINET, Antonio. Clínica da psicose. Rio de Janeiro: Fator, 1990.

ROLNIK, Sueli. Clínica nômade. In: EQUIPE de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto “A Casa” (org.). Crise e cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo: EDUC, 1997. p.83-97.

VIGANÓ, Carlo. A construção do caso clínico em saúde mental. Seminário de Saúde Mental da AMMG. Belo Horizonte, 1997. (mimeo)

ZENONI, Alfredo. Psicanálise e Instituição; a segunda clínica de Lacan. Abrecampos; revista de saúde mental do IRS. Belo Horizonte, IRS – FHEMIG, ano , n.0, 2000.

ZENONI, Alfredo. Qual instituição para o sujeito psicótico? In: Psicanálise e Instituição; a segunda clínica de Lacan. Abrecampos; revista de saúde mental do IRS. Belo

Horizonte, IRS – FHEMIG, ano , n.0, 2000. p.12-31.

Notas

1 Há um livro que aborda, com uma contextualização histórica valiosa, os principais aspectos ideológicos, políticos, sociais e econômicos dos “movimentos da reforma psiquiátrica”; sobre esse assunto, consultar: DESVIAT, A reforma psiquiátrica.

2 Não temos como objetivo, neste texto, entrar nos pormenores de uma discussão, tão ampla, a respeito dos modelos de atendimento adotados em cada país ou em cada região de determinados países como, por exemplo, o Brasil. Centralizamo-nos apenas na proposta do acompanhamento terapêutico.

3 VIGANÓ. A construção do caso clínico em saúde mental, p.02.

4 ROLNIK. Clínica nômade, p. 92-93.

5 BERGER. Apresentação, In: Crise e Cidade, Acompanhamento Terapêutico, p. 09.

6 ROLNIK. Clínica nômade, p. 91.

7 QUINET. Clínica da psicose, p. 88.

8 ZENONI. Qual instituição para o sujeito psicótico?, p.19.

9 Cf. VIGANÓ. A construção do caso clínico em saúde mental, p. 05.

10 Sobre o conceito de rede, assim como sua articulação à reformulação da prática de atendimento e cuidados no campo psi, ver: GARCIA. Rede de Redes.

11 VIGANÓ. A construção do caso clínico em saúde mental, p. 07

Fonte:

http://sequitoat.vilabol.uol.com.br/index.html

Artigo publicado no “Site AT” em 16/09/2002.

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