Acompanhamento terapêutico e psicoterapia corporal: O olhar sobre o corpo de quem sofre

Autora:

  • Ana Celeste de Araújo Pitiá – Doutora e Mestra em Enfermagem – área Saúde Mental, pela EERP – USP. Terapeuta Corporal Neo-Reichiana formada pelo Instituto Lumen de Ribeirão Preto; Treinee em Análise Bioenergética pela Sociedade de Análise Bioenergética Lumen de Ribeirão Preto – SP; Formação de Acompanhamento Terapêutico. Clínica Ãnimus – Espaço Terapêutico. Rua Itacolomi, 466 – Alto da Boa Vista – Ribeirão Preto-SP. Fones: (16) 3911-1986 / 630-5598 (res.) / 9992-2676 (cel.). E-mail: [email protected]
  • Anais da 1ª Convenção Brasil Latino América, 4º Congresso Brasileiro e 9º Encontro Paranaense de Psicoterapias Corporais. Foz do Iguaçu: Centro Reichiano, Junho/2004.

 

INTRODUÇÃO

A clínica do Acompanhamento Terapêutico (AT) se refere a uma prática em construção e que remete a utilização de diversos referenciais teóricos, bem como inúmeras possibilidades de experiência clínicas de aplicação. A escolha da abordagem terapêutica é um exercício de não-neutralidade e portanto, quem trata deve jogar-se, expor-se, entrar em contato com a loucura e o louco. O enfermo mental grita forte o desvio de uma norma vigente e a exclusão agrava e cristaliza sintomas. O objetivo terapêutico da clínica AT, então, deverá estar voltado para a desmistificação da figura de poder do médico, como o único a tratar e significar aquilo que o sujeito expressa com o seu sintoma.
O acompanhante terapêutico (at) tem em sua missão traços originários de uma psiquiatria dinâmica com sua concepção oposta à clássica, a qual confina e afasta o louco da família e da comunidade. O at seria o agente de saúde que busca restituir a possibilidade de diálogo com o irracional, sabendo que o enclausuramento da psicose inviabiliza o reconhecimento do significado do sofrimento.
O objetivo terapêutico que procuro atingir, mediante a abordagem da psicoterapia corporal, refere-se a tratar de significar aquilo que o sujeito expressa com seu adoecer, com o seu corpo, para que interaja de forma mais saudável em termos biopsicossociais. Os diagnósticos devem ser situacionais, ou seja, permitam avaliar a interação do paciente em diferentes contextos: seu grupo familiar e de amigos, seu local de trabalho, etc. A partir disso pode ser caracterizado o nível de retração social a que sua sintomatologia o conduz.

 

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A CLÍNICA AT

Historicamente, no século XX o que entra em discussão são as condições desumanas de custódia e tratamento a que eram submetidos os internos de asilos psiquiátricos, apontando então para a ineficácia terapêutica. Daí, o movimento antipsiquiátrico na década de 1950/1960, inclui a discussão sobre a loucura seus aspectos psíquicos, sociais e políticos, buscando romper a sinonímia cuidado-exclusão (COOPER, 1973).
Seguem-se as comunidades terapêuticas, na Inglaterra, Alemanha e EUA, a psiquiatria de setor e a análise institucional na França, que buscam novas formas de relação com a loucura, criando espaços de acolhimento concebidos como refúgio onde a verdade e o poder de contestação contidos no discurso do louco poderia ser reconhecido. Na Itália, Franco Basaglia fará a crítica da lógica da exclusão apontando com radicalidade que o enlouquecimento é um produto social e a abertura dos hospitais psiquiátricos aponta para a desconstrução de valores da cultura (BASAGLIA,1985).
Essas idéias chegam então no Brasil, por volta da década de 60, em que tomam corpo com a formação das comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, partindo então para o início da prática em Acompanhamento Terapêutico como recurso terapêutico nessas comunidades (IBRAIHIM, 1991). Certos elementos são trazidos para a discussão da prática AT: o tratamento se apresenta como acolhimento, sendo marcante para um acompanhante terapêutico operar na produção de uma (re) colocação do sujeito em funcionamento com a realidade urbana, de encontrar espaços onde a cidade incorpora o que ele tem; a influência das ruas da cidade, oferecendo um guia que destaca espaços e as formas experimentadas com sucesso.
No acompanhamento, procura-se conectar o sujeito e sua organização psíquica à dinâmica social. A influência das ações, em vista das atividades que conectam o sujeito ao circuito social, vão sendo feitas em saídas, passeios pela cidade, preferencialmente fora dos lugares conhecidos e petrificados do paciente que diminuem suas chances em concretizar articulações como sujeito atuante – o sujeito irá exercitar sua potencialidade vital. O que se constrói no percurso do Acompanhamento Terapêutico parte então de elementos importantes relativos a: articulação no social e prevalência da ação-atividade nesse social, todos constitutivos próprios dessa prática (CAMARGO, 1991).
O trajeto do Acompanhamento Terapêutico no Rio de Janeiro é traçado a partir da figura dos auxiliares psiquiátricos vindo do Rio Grande do Sul até os acompanhantes terapêuticos atuais, através de um mapeamento histórico dessa prática desde o CETAMP (Centro de Estudio y Tratamiento de Abordaje Mútiple em Psiquiatría, na Argentina), à Clínica de Vila Pinheiros, surgimento desses auxiliares no Rio de Janeiro. Os “auxiliares psiquiátricos” eram leigos ou estudantes de psicologia, ou medicina, que acompanhavam pacientes dentro da clínica (Vila Pinheiros/RJ e Pinel/RS) e em saídas externas. Eles também eram solicitados por psiquiatras, que visavam evitar a internação de alguns. Mesmo após o fechamento da Clínica Vila Pinheiros, em 1976, os auxiliares continuaram a ser chamados pelos psiquiatras. A partir do processo de formação desses auxiliares, o AT se realiza em um novo contexto: os acompanhantes estão cada vez mais informados do saber psicanalítico e orientados nas vidas profissionais, para a prática psicanalítica em consultório (REIS NETO, 1995).
A história descrita aponta para o fato de que o acompanhante faz seu trabalho, quando está sempre presente em qualquer dos contextos, quando oferece uma escuta diferenciada ao paciente e estabelece um vínculo afetivo, propiciando a utilização de ‘instrumentos’ seguindo uma articulação com as diferentes ideologias de trabalho.
Não existe uma abordagem única que dê conta da complexidade que é essa “clínica na rua”. Na implicação das subjetividades entre paciente-terapeuta são criados inúmeros campos terapêuticos, que se conformam em lugares de encontros e elaborações do próprio processo terapêutico. O que existe são reflexões cheias de muitas cores e diferentes matizes para se falar de uma mesma prática, na tentativa em se teorizar algo que se dá no empírico da situação terapêutica, configurada no processo de se estar acompanhante/acompanhado lado a lado nas ruas, em que acontece o que vem sendo chamado de ‘a clínica do espaço’.
Essa clínica é considerada como inquieta, que se deixa tocar pelos conteúdos teóricos de Freud, Lacan, Reich, Lowen, Deleuze, Winnicott, Guatarri e todos os outros que possam auxiliar a iluminar na produção de um desassossego, próprio às situações de criação.

 

O MOVIMENTO DA AUTO-REGULAÇÃO SOCIAL

A noção de movimento que emerge da própria intervenção terapêutica no AT, se inscreve pela própria prática das “saídas pela cidade”. Movimento esse que procura desinstalar o indivíduo de sua situação de dificuldade para poder recriar algo de novo na sua condição. Contudo, esse movimento não aparece de forma aleatória. Embora possam ser vivenciadas cenas sem prévio planejamento, há a importância de um ‘guia’, de uma proposta terapêutica, que procura articular o paciente em seu espaço social. A reinvenção se faz presente a partir da própria condição do ‘louco’.
No presente trabalho, a prática clínica do AT elege como guia o resgate da auto-regulação no social do sujeito em dificuldade, fundamentado teoricamente na psicoterapia corporal neo-reichiana. Nessa perspectiva, cada um de nós tem características pessoais adquiridas ao longo de sua história de vida, na qual as atitudes “naturais” são “espontaneamente sociais” na medida que contribuem na busca da qualidade de vida, ou seja, a busca do re-encontro com o seu processo vital.
O importante é aquilo que possa ser alcançado pelo sujeito, em vista do que é definido como construtivo e positivo para si. Isso conseqüentemente repercute nos quem com ele se relacionam. O resgate da auto-regulação no social, então, pode ser associado à idéia de reinvenção, um meio de se re-fazer, re-construir e re-elaborar o cotidiano do sujeito em crise, com tudo o que lhe pertença como características e limitações pessoais.
O termo auto-regulação é originário da biologia e é empregado como denominação do equilíbrio homeostático corporal, ou seja, a homeostase que é designada por “…reações fisiológicas coordenadas que mantêm a maioria dos equilíbrios dinâmicos do corpo… [são] complexas e peculiares aos organismos vivos…” (DANDOUN, 1991, p. 34).
Na sua construção teórica do conceito de auto-regulação, Reich (1981) assim se refere, de maneira crítica, à realidade social:
Faz parte das atitudes naturais o ser espontaneamente social; e o ideal não é exatamente obrigar o sujeito a ser social pela supressão de impulsos criminosos. É óbvio para todos que é melhor e mais são não ter um impulso de violação, logo de início, do que ter de inibi-lo moralmente “… minha afirmação de que a auto-regulagem é possível, está ao alcance da mão, e é universalmente exequível (REICH, 1981, p. 162)

Quando tomamos o termo “regulação”, nós o entendemos como um conjunto coordenado por mecanismos internos, utilizando espontaneamente energias específicas de todo organismo, conforme afirma Dandoun (1991), em seu estudo sobre as idéias de Reich, justificando a origem da concepção biológica. Ou seja, a auto-regulação funciona em vários níveis

…tanto no equilíbrio de massa ou macroscópicos, como altura e o peso do corpo, as proporções dos diferentes tecidos, a ‘estabilidade’ do meio interno etc, como nos parâmetros mais finos e frágeis, quase infinitesimais, como a gama inumerável dos metabolismos (cálcio, potássio, magnésio etc) ou as indispensáveis intervenções hormonais, vitamínicas, enzimáticas etc. (DANDOUN, 1991, p. 34)

O trabalho em AT se dá no micro-espaço da relação acompanhante/acompanhado; juntos, estarão explorando territórios “macroscópicos” como os da rua, ou o meio originário do cliente, em sua dinâmica e “metabolismo” circunscritos em sua realidade de vida.
Vejo o trabalho de Acompanhamento Terapêutico uma prática que em si já se constitui investida no corpo do sujeito, portanto corporal, impressa na marca dos movimentos do corpo já no próprio ato de acompanhar. Acompanhar o corpo do sujeito com dificuldades inscritas e repercutidas no social, e que possa estar interferindo na sua relação com outras pessoas, porquanto esteja comprometida sua regulação individual.
Dandoun (1991) refere que o princípio de auto-regulação é uma presença concreta, original e eficaz e, na sua construção teórica, Reich,

… descobre no indivíduo uma capacidade maior para autonomia, para realização de equilíbrios dinâmicos, flexíveis, uma melhor regulação – auto-regulação – de sua existência: no trabalho, no amor, nas relações com os outros; tudo acontece como se o afrouxamento da ‘couraça caracterial’ liberasse uma espécie de competência espontânea, uma aptidão para autodeterminar-se, aniquilada, atrofiada ou neutralizada pela influência das instituições sociais e dos modelos culturais (Reich, 1981, p. 35).

E ainda continua: “Reich vem formular nestes termos o objetivo terapêutico: retirar a energia das inibições morais e substituí-las pela auto-regulação libidinal.” (DANDOUN, 1991, p. 35)
Nesse sentido, vejo que o trabalho em AT pode ter aqui uma possibilidade de atuação na direção desse objetivo terapêutico. Considero que, nessa prática clínica, o campo original de atuação profissional se dá, predominantemente, no contato direto com o indivíduo no social, lugar em que ele é considerado “louco” e, portanto, se encontra tolhido de seus direitos de cidadão. Sendo assim, é um indivíduo confinado, excluído ou reprimido em sua auto-expressão por “inibições morais”. “A auto-expressão é a manifestação da existência individual.” (LOWEN, 1984, p. 91)
Dessa maneira, o objetivo terapêutico em favor do resgate social poderá ser conduzido na guia de uma intervenção que favoreça a busca pelo movimento pessoal, que foi inibido e tolhido de sua circulação no social. Nas saídas dos espaços consagrados à assistência psiquiátrica e nas perambulações pelas ruas acompanhante/acompanhado estarão explicitamente apresentando a individualidade de uma relação, na qual se explicita o sujeito em sua diferença e sua dificuldade.
O importante é que nesse processo de estar junto, seja materializada a busca pelo processo vital, ou seja, o resgate da auto-regulação libidinal, que possibilita a autonomia individual na interação social com os outros indivíduos, de maneira natural e histórica (REICH, 1981).
O contexto histórico no AT será o próprio espaço do cliente e as circunstâncias em que foi instalada sua dificuldade. Sua família constitui parte integrante desse processo, bem como sua forma de se relacionar com ela. Tudo isso associado ao contexto mais amplo da situação histórica circundante, que envolve seu bairro, sua cidade, estado e país.
A prática do AT, na medida em que transcorre exteriormente ao consultório/instituição, pode ser realizado em casa, na rua, cinema, shopping, escola, trabalho, ou outro local que a comunidade possa oferecer. O fundamento é estar em constante conexão com o âmbito social, com os aspectos culturais e simbólicos nos quais o sujeito está inserido ou convive cotidianamente, procurando resgatá-lo em sua inteireza humana, desenvolvendo aspectos sadios potenciais existentes no indivíduo, apesar de sua crise. O caminho teórico aponta para uma discussão sobre um movimento inverso ao da exclusão, ou seja, o da inclusão. Essa é a maneira proposta para se pensar na pessoa em dificuldade. Considero nesse caminho os inúmeros percalços pelos quais sejam necessários os vários enfrentamentos no processo de saúde/doença do sujeito. Daí o at, dentro da relação terapêutica com o cliente, poder contribuir na promoção de movimentos ‘inclusivos’ dentro da realidade circunstancial do indivíduo em dificuldade.
O Acompanhamento Terapêutico pode ser considerado como uma prática anti-segregação, em que se tenta minimizar os efeitos da estigmatização das pessoas em dificuldade pela própria forma de intervenção. Nesse contexto, essa prática busca propiciar uma maior autonomia para que os clientes possam conviver e se desenvolverem como sujeitos criativos no seu próprio meio social e urbano, apesar dos limites e dificuldades individuais – o resgate de sua auto-regulação no social.
A necessidade de estruturas externas ao manicômio, para que se possa acompanhar o doente em sua nova relação com o social, converge com o processo da Reforma da Psiquiatria Democrática, com suas bases históricas assentadas na Itália. Com a desmontagem dos manicômios, foram eliminados os meios de contenção física. Os portões foram abertos, modificando-se também as relações de poder entre os trabalhadores (e entre estes e os clientes).
É importante relembrar esses aspectos, na medida em que, procurando o restabelecimento da relação do paciente com seu corpo e com a palavra, produzem-se novas relações e interlocuções possíveis. As mudanças instauradas procuraram restituir os direitos civis, reativando uma base de crédito para que o paciente possa aceder ao intercâmbio social (ROTELLI, 1990).
Na literatura e na prática em Acompanhamento Terapêutico, algumas diretrizes apontam para o suporte à clientela, que, em estados especiais ou em situações agudas, necessita lidar com suas dificuldades no meio social. São elas: prevenir a cronificação e institucionalização, e buscar o resgate da cidadania e a não-alienação social; permitir a inserção do sujeito na coletividade, preservando suas diferenças individuais e potencialidades; propiciar momentos e espaços nos quais a pessoa possa realizar-se como sujeito ativo em seu meio social. O terapêutico seria “fazer-se cargo”, segundo Rotelli (1990), de uma pessoa num espaço novo de vida, sem, no entanto, submeter o paciente a objetivos preestabelecidos.
O processo da psiquiatria democrática italiana nos oferece de imediato uma representação bastante aproximada do lugar do at, pois acompanhando o cliente cotidianamente na trajetória de atendimentos, colabora na reinvenção do modo como o sujeito se relaciona no seu contexto social e familiar, os vários papéis utilizados, ou mesmo na criação de novos papéis que possam ampliar seu repertório para enfrentar as adversidades da vida. Os recursos próprios do meio urbano compõem o quadro da recriação de um projeto de saúde específico para cada caso. A ênfase é posta na pessoa e no resgate de sua cidadania.

 

O resgate da auto-regulação no social do sujeito que necessita de acompanhamento terapêutico

A expressão da angústia proveniente do corpo do paciente – sua linguagem não-verbal – relacionada ao conteúdo de sua linguagem verbal captada pela escuta durante o AT, em seu processo terapêutico, confluem para a noção de uma unidade funcional mente-corpo, dentro da proposta terapêutica de acompanhar. Dentro dessa proposta terapêutica é, de fato, rica a noção de unidade corpo-mente, ou seja, a todo o tempo, a linguagem não-verbal e o conteúdo de sua linguagem verbal estão em relação dinâmica na prática do AT.
O próprio ato de acompanhar terapeuticamente (o AT) já é, em si, corporal, considerando o sentido da movimentação de dois corpos (acompanhante/acompanhado) que vão interagindo no social, envolvidos na relação terapêutica. A compreensão dessa interação deve levar em conta, continuamente, aspectos simbólicos e corporais, visto que estes são indissociáveis. O corpo, além de tudo, é um veículo de comunicação social e diz respeito à nossa relação com o mundo. A noção de corpo tem sido construída pela medicina (bases anátomo-fisiologicas), neurologia (esquema corporal) e psicologia (consciência e imagem corporal). O corpo é um rio de acontecimentos e imagens, ou seja, dotado dos registros das experiências vividas (KELEMAN, 1992). Considero, então, o corpo como morada existencial do sujeito, definido em sua história e subjetividade, dotado de inscrições simbólicas construídas ao longo de sua trajetória de vida.
Os estudos clínicos de Wilhelm Reich trouxeram o conhecimento analítico sobre o corpo, afirmando que o “corpo é o Inconsciente” (GAIARSA, 1986, p. 12). E esse inconsciente é visível, como afirmava Reich (1972). Sendo inconsciente, o corpo sente e faz sem que se perceba, de imediato, a sensação ou ação. No aspecto visível, podemos olhar a expressão da linguagem não-verbal, traduzida pela gesticulação e movimentos do corpo. Será necessário, para isso, que o acompanhante terapêutico, neste enfoque, exercite a capacidade de conhecer a conexão de sensação e ação seus corpos e de seus pacientes acompanhados.
Foi a partir de Reich que o corpo começou a retornar ao caminho de Hipócrates, sendo reintegrado à alma. Na psicanálise, em Freud, a atenção analítica centrava-se nas palavras, não se considerava o aspecto crucial da expressão física corporal, tampouco sua relação com a respiração. A atitude corporal, já assim inscrita na Psicanálise, se constitui a fonte das pesquisas de Reich, fomentando seus estudos a partir de sua prática clínica (GAIARSA, 1986).
A prática clínica criada por Reich, designada de vegetoterapia carátero-analítica, apresenta profundos enlaces com a psicanálise de Freud. A prática corporal interfere nas defesas caracteriais, abrindo espaço por entre as resistências para que o reprimido possa emergir e fluir em associação. Dessa maneira, o binômio Freud-Reich indica uma continuidade, como defende WAGNER (1996), em sua pesquisa de mestrado. Seu estudo busca trazer uma maior nitidez na polêmica questão Reich versus psicanálise.
Wilhelm Reich, estudando e observando minuciosamente a movimentação e funcionamento unicelular, constatou a relação com o organismo individual, como um todo. Partindo desse modelo relativamente simples, expandiu também sua visão para a sociedade como um todo, passou a compreender os grupos sociais como organismos “unicelulares” que se relacionam em movimentos de dentro para fora (indivíduo/sujeito influenciando seu meio) e de fora para dentro (os aspectos culturais influenciando os indivíduos). Essa idéia tem suas bases na concepção marxista de sociedade, que influenciaram fortemente os estudos de Reich (REICH, 1972).
Além disso, na continuidade dos estudos psicanalíticos, o próprio Reich afirmava que o seu trabalho clínico, pautado no aprofundamento sobre a economia sexual, era uma continuação da psicanálise freudiana, expandida com base na ciência natural, nos domínios da biofísica e da sexologia social: “…a verdade é que a economia do sexo representa a continuação da psicanálise freudiana e dá-lhe uma base científico-natural na esfera da biofísica e da sexologia social.” (REICH, 1972, p. 22)
Muitas contribuições foram introduzidas por Reich. No conhecimento sobre o corpo humano e a emoção, sua explicação da natureza da estrutura do caráter e a demonstração de sua identidade funcional com as atitudes do corpo representaram importantes avanços no conhecimento sobre o comportamento humano. Ale disso, o conceito de potência orgástica foi introduzido como critério de saúde emocional, o que realmente é quando na sua base física é demonstrada a graciosidade saudável do corpo. O aspecto físico por si só não será base suficiente para que se possa afirmar a saúde do corpo. REICH (1972) afirmava: “Amor, trabalho e sabedoria são fontes da nossa vida. Deviam também governá-la”. Por essa visão, o indivíduo saudável é compreendido como organismo que pulsa no corpo e nos vínculos sociais, ou seja, a saúde será tanto mais presente quanto melhor for a ação espontânea natural e individual do movimento da musculatura; o corpo irá conseqüentemente refletir-se a relação do cliente com o mundo.
No trabalho em AT, sob esse enfoque, o aspecto da ressocialização do sujeito pode ser percebido pelo seu movimento de expansão/contração – movimento pulsatório, isto é, sua expressão para fora e os momentos de interioridade consigo mesmo, estabelecerão movimento de ultrapassagem das barreiras de suas dificuldades. Nesse processo de retomada da vida, será imprescindível por parte do at a escuta da angústia do cliente no seu contato com a realidade circundante e na busca do retorno de seu movimento espontâneo, ou seja, auto-expressivo – pulsatório.
Para Lowen (1982) Reich ampliou os conhecimentos a respeito dos processos do corpo humano ao descobrir o significado das reações involuntárias do corpo relacionadas às emoções (resgate da auto-expressão espontânea). Além disso, Reich frisou como a estrutura da sociedade se reflete em seus membros individualmente, o que explica os aspectos irracionais da política.
Alexander Lowen foi quem desenvolveu a análise bioenergética, a partir dos estudos que realizou com Reich. Defende a tese fundamental da bioenergética, segundo a qual “…corpo e mente são funcionalmente idênticos, isto é, o que ocorre na mente reflete o que está ocorrendo no corpo, e virse-versa” (LOWEN, 1985).
O corpo fala tanto quanto a palavra, pois a palavra não se apresenta descontextualizada do corpo, ou seja, sem gesto, sem tom de voz, sem forma corpórea. Numa cena vivenciada em AT, na situação clínica, encontramos, pois, a expressão facial, as atitudes físicas, a posição corporal, as formas gestuais, enfim, todo um arcabouço de demonstrações mescladas de palavras e ações. O at, quando está atendendo em meio ao contexto do acompanhado, entra em contato na maneira como o cliente se expressa no mundo, na sua vida, com sua história pessoal, de corpo na cena interacional. Vejo, então, o corpo como via de acesso à compreensão da vida do cliente. Corpo vivo que, dialeticamente, se confronta com sentimentos contrários ou ambivalentes de dor e prazer, conforto e desconforto, realização e frustração. Corpo que é limitado e finito, e também programado segundo padrões genéticos. Contudo, não é predeterminado, daí não ser entendido como uma “máquina”, pois é sempre passível de movimentos novos, re-invenções de atitudes, transformações criativas, estritamente emocionais e eminentemente humanas, representando simbolicamente a existência.
Lowen (1982) afirma que os processos energéticos do corpo determinam o que acontece na mente, da mesma forma que esta determina o que acontece no nível do corpo. Essa idéia confirma o sentido dialético da relação entre corpo e mente, no estabelecimento de uma unidade funcional em constante diálogo. Os processos energéticos do corpo estão relacionados ao estado de vitalidade, que em geral se apresenta comprometido em condições patológicas.
Uma contribuição dessa visão para a saúde mental consiste no olhar integrado sobre o contexto social. Influenciado por Karl Marx, Reich preocupava-se com os fenômenos sociais e de massa, o que contribuiu para enriquecer e embasar a presente visão que venho articulando sobre o trabalho em AT.
O objetivo terapêutico do tratamento em AT, que procuro realizar, é ajudar o indivíduo, a reencontrar-se com o seu corpo, tirando o mais alto proveito possível da vida que há nele. Isso inclui funções elementares de respiração, movimento, sentimento e auto-expressão, favorecendo uma maior aproximação do cliente com essas dimensões de sua personalidade. Assim, o cliente pode estar em circulação pela vida, nas relações sociais, apesar de suas dificuldades.

O indivíduo que não respira corretamente reduz a vida do seu corpo. Se não se movimenta livremente, limita a vida de seu corpo. Se não sente inteiramente, estreita a vida de seu corpo e, se sua auto-expressão é reduzida, o indivíduo terá a vida de seu corpo restringida (LOWEN, 1982, p. 38).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Possibilitar ao acompanhado uma ampliação de sua auto-expressão é acompanhá-lo em seus movimentos, dentro do universo simbólico e de relações sociais. Partindo do princípio de que o trabalho, nesse tipo de atendimento clínico, já é, em si, guiado pelo movimento, relaciono ao movimento do corpo, no trabalho AT, seja nas ruas, em casa, no local de trabalho, nas idas a locais públicos como praças, lanchonete, cinema, shopping, etc., escutando as palavras e observando gestos, objetivando o resgate social do cliente, na realização de uma clínica que transita pela cidade, que, aqui, é olhada pelo referencial da psicoterapia corporal, e tem como eixo central o conceito da auto-regulação.
Na psicoterapia corporal, a atitude terapêutica consiste em assumir-se uma postura ativa frente ao cliente. O terapeuta, na relação, diante das resistências evidenciadas, pode propor exercícios expressivos, posturas, alongamentos, ou intervenções corporais por meio de toques terapêuticos, objetivando trabalhar as tensões musculares do cliente, possibilitando o desbloqueio físico, portanto corporal e emocional (conforme a visão da unidade funcional mente-corpo já comentada anteriormente).
Esse trabalho terapêutico de desbloqueio de tensões no corpo procurará abrir caminho para o cliente viver de maneira mais saudável, visto que poderá propiciar a auto-expressão de suas emoções, a partir da ampliação das fronteiras do conhecimento de si próprio No contexto protegido da relação terapêutica, o terapeuta auxiliará no encorajamento da aceitação e da expressão dos sentimentos (LOWEN, 1985).
A partir dessa interação espera-se obter uma mudança no pensamento e nas atitudes da pessoa, visto que a sensação de unidade e integridade leva a uma reconexão natural de pensamento e ação progressivamente. As pessoas, então, poderão ficar cada vez mais radiantemente vivas, e essa expressão de vida se faz pela graciosidade corporal.
Toda essa concepção é proveniente da teoria desenvolvida por Reich. Sua originalidade estava em conceber a psiquê de um indivíduo comparando-o como organismos ,ou sistemas vivos que, por serem vivos, estão sujeitos ao princípio da auto-regulação (WAGNER, 1996).
Pode-se então, facilmente estabelecer uma relação entre esse princípio natural de auto-regulação dos sistemas vivos com os princípios metapsicológicos de desprazer-prazer e de realidade propostos por Freud. Isso porque, tanto o princípio do desprazer-prazer, quanto o princípio de realidade agem no sentido de preservação e sobrevivência do próprio organismo, diante de uma situação qualquer de desequilíbrio, portanto, de ameaça, de forma sempre econômica e mais eficaz possível. Na visão de Wilhelm Reich, a auto-regulação está presente na natureza viva e por isso deve ser possível no universo psíquico e social do homem (WAGNER, 1996)
Analogamente, no trabalho de AT, por meio do vínculo estabelecido na relação acompanhante/acompanhado, as atividades devem ser propostas a partir da consideração do movimento “natural” do acompanhamento e das especificidades de cada caso, possibilitando, dessa maneira, o resgate da porção saudável e vital do sujeito, no seu contato com o social. O acompanhante terapêutico terá como proposta de intervenção, procurar conhecer e respeitar as necessidades do acompanhado, em busca de sua auto-regulação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASAGLIA, F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985

CAMARGO, E. M. C. O Acompanhamento Terapêutico e a Clínica. In: EQUIPE DE ACOMPANHANTES

TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA A CASA (Org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo; Escuta, 1991

COOPER, D. Psiquiatria e antipsiquiatria. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973

DADOUN, R. Cem flores para Wilhelm Reich. São Paulo: Editora Moraes,1991

GAIARSA, J. A. O que é o corpo. São Paulo: Brasiliense, 1986

IBRAHIM, C. Do louco à loucura: Percurso do Auxiliar Psiquiátrico no Rio de Janeiro: In: Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia a casa (Org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991

KELEMAN, S. Anatomia Emocional. São Paulo: Summus, 1992

LOWEN, A. e LOWEN, L. Exercícios de bioenergética. O caminho para uma saúde vibrante. São Paulo: Ágora, 1985

LOWEN, A. Prazer. Uma abordagem criativa da vida. São Paulo: Summus, 1984

REICH, W. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1981

REICH, W. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1972

REIS NETO, R. O. Acompanhante Terapêutico: trajetória histórica de uma prática em saúde mental no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado). Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1995, 324p.

ROTELLI, F. A Instituição Inventada in: NICÁCIO, F. (org.) Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990

WAGNER, C. M. Freud e Reich. Continuidade ou ruptura? São Paulo: Summus, 1996.

 

 

Artigo publicado no “Site AT” em 14/09/2004.

Supervisão em AT.

Tags:, ,

Comente aqui.