Autora:
- Deborah Sereno – psicologa (PUC-SP), mestre em Psicologia Clinica (IPUSP), psicanalista, docente de Faculdade de Psicologia da PUC-SP, coordenadora do Giramundo: Oficinas e Redes em Saúde Mental da Clinica Psicologica Ana Maria Popovic da PUC e do Balaio: Nucleo de Referencia em Psicose e Inclusão da Clinica Psicologica do Instituto Sedes Sapientiae. Fones: (11) 3812-4474/ 9656-3470. Consultório: Rua Rodesia, 139 cj 12 Vila Madalena CEP: 054535-020. São Paulo. SP. Brasil. E-mail: [email protected]
O acompanhamento terapêutico na escola que aqui será considerado faz parte das ações do Projeto de Escolarização de crianças com transtornos graves desenvolvido pela parceria do Núcleo de Referencia de Psicose do Instituto Sedes Sapientiae e do Núcleo “As psicoses e suas instituições” da faculdade de Psicologia da PUC-SP desde 1997[1].
Pretendo aqui afirmar o lugar do AT na escola como uma intervenção clinica apoiada teoricamente na psicanálise e na clinica institucional, intervenção radical na articulação tratamento e educação de crianças com transtornos graves (psicóticas e autistas), pois opera uma inversão nos termos desta articulação: educação na clinica para clinica no território educacional.
INCLUSÃO ESCOLAR
Inclusão não é uma palavra boa, mas ainda serve enquanto não encontramos uma melhor, ou, até ela ser extinta, não precisarmos mais falar em inclusão. A Declaração de Salamanca em 1994, aprovada pela Conferencia Mundial da Unesco, torna-se referencia para a discussão sobre princípios, políticas e práticas em educação especial com o objetivo de promover a inclusão de crianças e jovens com necessidades especiais em escolas regulares.
Uma das questões que se coloca: inclusão pra que, onde e no que, nesse modo de produção capitalista neo-liberal sustentada pelo consumismo??? Claro que não. Sendo nosso objetivo a construção de redes de proteção, atenção, solidariedade como condição de possibilidade para uma sociedade mais justa, temos que pensar numa transformação das relações sociais, políticas, econômicas etc dos homens.
O conceito de inclusão pressupõe a transformação das escolas para receber e ter sucesso em suas ações educativas com as crianças diferentes e com todas as crianças e nesse sentido ainda nos serve.
Para o AT fazer um mergulho nesse território atravessado pela loucura exige uma tomada de decisão ética que determina um desvio de olhar de que dai, de onde só se vê falta, carências, precariedades, das escolas, dos bairros, das comunidades, da fragilidade de sujeito das crianças que se acompanha – quando há-, do real das pulsões, daí mesmo vai encontrar potencias, possibilidades, diferentes modos de subjetivação, encontros, linguagens.
O AT só pode fazer este mergulho se sabe que tem uma rede de sustentação – equipe de tratamento, com a qual constrói o projeto terapêutico e uma equipe de Ats como grupo de referencia, espaço de discussão de casos, supervisão, troca de experiências, rede de acolhimento para o AT.
Podemos pensar cada um desses espaços (equipe de tratamento, equipe de ATs), como rede de redes, como dispositivos de articulação, de ativação e de potencialização do encontro das redes de tratamento e de educação.
O TERRITÓRIO ESCOLAR
Hipólito Moura (2003, p.146) propõe uma compreensão de território como um espaço que se constitui juntamente com seus atores e o quase-objeto, aquilo que justifica estar aí, (objeto a causa do desejo), os três termos da tríade proposta por Authier para definir o coletivo.
Espaço físico e também campo de relações. Assim, território se refere a este espaço entendido como “um conjunto composto de um campo de relações, um suporte material e eventuais regras de relações” (p. 148).
Ao falar do território do “Clube dos Saberes” que está propondo, o autor afirma que este é um território local, dentro de um espaço maior, o espaço dos saberes. “Espaço local, ele abrigará um jogo especial, ou seja, o jogo dos saberes e tudo aquilo que daí advém: o compartilhamento dos saberes, mas também o desejo, as constelações afetivas, o reconhecimento, as demandas… as redes de transferência”.(ibid, p.151)
Insisto nesta idéia de território porque ela nos é útil na teorização do acompanhamento terapêutico, seja no que se refere ao campo social, das relações e tudo que daí se apresenta (presentifica) incluindo a dimensão pática. Além disso, este conceito também coloca em evidencia a materialidade do suporte, o espaço físico, tão caro a nós Ats, que sempre afirmamos nossa maior potencia no fato de estarmos in lócus, no local, na casa, na rua, no cinema, na cena do paciente… É importante ressaltar o seguinte, uma quadra pode ser quadra de futebol, se as pessoas estiverem ali para que isso aconteça e se tiver uma bola ou algo que a substitua, qualquer coisa. Isto constitui um território. A mesma quadra a noite pode se transformar num forró, todo iluminado, para outra coisa, outra atmosfera, outro clima, isto é outro território.
Estaremos então focalizando o At no território escolar. Território este que está inserido em espaço mais amplo, a Educação. Antes, um parêntesis.
Em seu livro “Educação para o futuro”, Kupfer (2001) percorre diversas experiências de tratamento institucional para crianças com transtornos graves e mostra que nas origens, educação e tratamento nasceram juntos para esse objetivo, a partir da “psiquiatria educacional”, inaugurada pelo psiquiatra Itard e o jovem Vitor (em 1801, século XIX), uma criança encontrada em um bosque da França. Com isso, serão criadas instituições asilares para tratar das crianças diferentes (que darão origem às escolas especiais) e também as oficinas de trabalho, ateliês, passeios, trabalhando com a suposição de que ali se encontravam seres humanos. Essas práticas, “de mãos dadas com a psicanálise nascente no século XX, vieram resultar nas propostas de tratamento psicanalítico para crianças psicóticas surgidas no inicio da década de 1930” (p.43). Vale notar que nestas articulações entre psicanálise e educação, a educação migra para dentro do tratamento (as oficinas, etc), redimensionando o lugar da psicanálise aí e apontando para a urgência de uma clínica ampliada.
De outro lado, Moura (2003) ressalta a relação de vizinhança entre a pedagogia e a psicologia institucional na década de 40 na França, a influencia de uma sobre a outra e a proximidade entre os princípios de uma terapia ativa (influenciada pela psicanálise e pelas técnicas grupais), que visa a responsabilização do doente e o cuidado com a equipe de trabalho e a perspectiva educacional proposta por Freinet.
No campo da educação vale destacar uma linha de pesquisa em torno de uma utopia: a cidade educativa (Costa, 2004, p95). O relatório Aprender a ser de Edgar Faure, publicado pela UNESCO em meados dos anos 70, contém 21 teses para a educação do séc XXI que apontam para este ideal, trazendo a noção de que a “distância entre o lar e a escola não fosse apenas um espaço de ir e vir, mas fosse também um espaço educativo capaz de exercer uma influência positiva na vida dos educandos”.
Para Costa (2004, p. 21) este ideal se volta à Paidéia, a educação na Grécia antiga, na qual “o pedagogo era o escravo, que conduzia a criança pela mão e a levava para as diversas atividades que a polis oferecia: ao templo, ao liceu, ao ginásio, ao teatro, e assim o ser humano ia se formando”(ibid,p 95). Assim, a educação grega se dava em diversos espaços da vida social e desenvolvia as dimensões do logos, do eros, do pathos e do mythos – ou seja, a dimensão da razão, a dimensão do desejo, a dimensão do sentimento e a dimensão da fé e da relação com o transcendente.
Nesse sentido, é possível capitalizar pedagogicamente tudo o que a cidade oferece – cinemas, museus bibliotecas, praças, monumentos etc.-, no processo de formação das novas gerações, diz Costa. Para ele, a escola de tempo integral é uma idéia obsoleta, já não faz sentido. No entanto, educação o dia inteiro, sem escola o dia inteiro, faz todo o sentido. É o educando passar por muitos espaços, por muitas situações em que vai se formando. “É preciso que a escola deixe a sua auto-suficiência, deixe a sua completude e assuma sua incompletude”. (AC p.96)
Além disso, o autor aponta para a necessidade de transversalizar o conhecimento na escola, “em oposição ao conhecimento longitudinal, cada disciplina isolada”. Também adotada em Roma, a Paidéia, rompeu-se na Idade Média, com o Iluminismo e a chegada da burguesia ao poder. A escola torna-se unidimensional (ibid, p.95) dando privilégio a razão (logos) em detrimento das outras dimensões de humano. “O Iluminismo era um movimento da razão e como sempre, uma razão a serviço dos poderes estabelecidos (político, econômico e militar.) Nesse sentido, quando surgiu a idéia da escola pública, laica, universal, gratuita e obrigatória, essa era uma escola iluminista. É como se o aluno fosse um cérebro. A expressão `aluno` significa `sem luz`.” (ibid, p.20-21)
É tentador para o AT pensar a educação dessa maneira, na circulação pela cidade, potencializando seus espaços, pois é isso que ele mais faz em sua clinica com pacientes psicóticos, principalmente adultos, na qual entendemos que estamos tratando a loucura ao estabelecer pontos de contato e articulação, a partir do engajamento do sujeito “louco”, com a cidade (Sereno e Porto,1991). Então, pra que ir para escola?
Para Kupfer (2001, p.42), “O discurso social moderno cria uma criança cuja consistência está no fato dela ser submetida a uma educação nova, que implica vigilância, disciplina, segregação. Que implica o surgimento da escola. Nossa criança é por definição escolar”. Concordamos com a autora quando afirma que a criança moderna é “indissoluvelmente ligada ao escolar, que lhe atribui o lugar social, a inserção social, é o que a constitui, lhe dá identidade” (ibid, p.36).
Argumentos concretos da necessidade da escola dizem respeito à falência do nosso sistema educacional no Brasil, da urgência da educação para todos, da carência básica das populações mais pobres que vivem na periferia de São Paulo, ou em outras áreas do país, onde a escola é fundamentalmente o único espaço de circulação social e de saber e de resistência à sedução do narcotráfico. Dimenstein (Folha de São Paulo de 16/10/05) aponta a ação preventiva à violência quando as escolas se convertem em espaços articuladores de redes de saúde, cultura, educação, lazer e qualificação profissional.
A escola constitui um espaço social, um território. Podemos pensar e potencializar este espaço como um “canteiro de experiências e transformações, como um espaço transicional, uma rede simbólica”(Moura, p.153), no qual o sujeito se inscreve dando lugar ao estilo de cada um. É da igualdade na lei simbólica (do Outro, da cultura) que pode surgir a diferença, o estilo. É também pela igualdade dos direitos que advém o direito de ser diferente, singular.
Kupfer (2005, p.35) analisa que o ato de educar está implícito na visão psicanalítica de sujeito, pois pode ser concebido “como o ato no qual o Outro primordial se intromete na carne do infans, transformando-a em linguagem”. Através da educação o adulto marca seu filho com marcas de desejo. Assim, o ato educativo pode ser ampliado para todo ato de um adulto dirigido a uma criança no sentido de filiá-lo a uma tradição existencial, permitindo que este se reconheça no outro. Dessa maneira, “educar torna-se prática social discursiva responsável pela imersão da criança na linguagem, tornando-a capaz de produzir discurso, ou seja, de dirigir-se ao outro fazendo com isso laço social”. (2001, p.35).
A inclusão escolar representa uma democratização do espaço escolar e a oferta de um lugar social para as crianças com grave sofrimento psíquico. Elas precisam da escola, não só pelo aspecto da socialização ou da preservação das ilhas de inteligência, mas fundamentalmente por que a escola “é um lugar subjetivante para crianças que, por algum motivo, encontraram um obstáculo em seu processo de subjetivação” diz Freitas (2005, p.122). Kupfer (2001, p 40) acrescenta que são crianças cuja constituição subjetiva não se realizou (ou se realizou de outra forma), não houve entrada no simbólico, ou seja, para as quais, por motivos variados, a educação falhou – daí uma idéia de pós-educação (referindo-se aos tratamentos). Entre essas crianças podemos englobar as que exibem problemas globais do desenvolvimento, seja pela fantasmática parental, seja pelos limites do corpo, seja por injunções sociais, e que são associais pelas dificuldades que exibem com o laço social.
Para além de um exercício de cidadania, ir a escola, para a criança psicótica tem um valor terapêutico. A escola pode contribuir para a retomada ou reordenação da estruturação perdida do sujeito, diz Kupfer (2001, p.90) ou para construção de uma (que nunca tenha havido), acrescentaria eu.
Alguns autores problematizam a inclusão de crianças com transtornos graves na escola regular.
Kupfer aponta uma dificuldade no fato de o pacto simbólico do qual o sujeito emerge estar comprometido nas crianças psicóticas, deixando comprometida sua relação com a Lei, estrutura de igualdade, a linguagem. Isto impediria da criança psicótica afirmar sua diferença, seu estilo, seu sujeito, uma vez que ela não está suficientemente regulada pela Lei. Assim, apesar da escola ser um direito, a autora afirma que as crianças psicóticas só se beneficiariam da escola se e apenas se, esta funcionar como um “operador de instalação de igualdade, da Lei – que para elas ainda não existe, como forma de fazer surgir um sujeito com uma possibilidade mínima de falar sobre si mesmo, sobre seu sofrimento ou sua psicose, com seu estilo. Para isso, terá de ser tratado como os outros na medida do possível, tendo em vista que não se trata de fazê-lo seguir regras, mas ajudá-lo a incorporar uma lei que é antes de tudo, simbólica”. (2005, p.24).
Além disso, aponta para uma dificuldade a mais nos casos de crianças autistas para quem “os outros poderão ser localizados de forma ameaçadora” trazendo grande dificuldade para elas em aceitar o barulho e a invasividade dos outros ao seu redor, sendo que o custo pode ser maior que o benefício. Enquanto a sua percepção do Outro não puder ser modificada, a presença dos outros nada valerá.” (ibid, p.24).
Podemos explicitar aqui uma das funções mais importantes que concernem ao AT na escola: traduzir a ambiência e dar limite ao gozo do Outro. (Veremos isso adiante). Concordamos com a autora, no entanto, que a inclusão deve ser pensada caso a caso e que, talvez, não possa ser pensada para todos.
Podemos esboçar diferentes tempos no processo de escolarização das crianças com transtornos graves com o AT: o tempo da ambientação, período fértil de conhecimento e reconhecimento do território, estabelecimento da transferência com AT e a partir daí com os outros, todas as linguagens possíveis e todas as formas possíveis de convivência até chegar a sala de aula. Um outro tempo seria o tempo do engajamento na aprendizagem, aqui o terreno é mais frágil. Se por um lado podemos dizer que a convivência está na base das outras competências para aprendizagem (aprender a ser, a fazer a aprender), Jerusalinsky afirma a dificuldade em ensinar crianças para quem a curiosidade não se instalou, já que esta se organiza nas investigações sexuais infantis e tem seu declínio no tempo do Édipo, que não ocorreu para estas crianças.
Jerusalinsky diz, no entanto, que “é possível promover curiosidades parciais, fragmentárias” (apud Kupfer, 2001, p.88), que lhes permitam aprender algumas coisas, embora sejam impedidas de generalizar muitos desses conhecimentos. Conclui daí a necessidade de professor especializado, o que torna o aprendizado difícil numa escola regular. É uma posição a ser considerada, mas não fecha questão, pois remete a questão da aprendizagem como um todo. Repensar a escola como canteiro de experimentações, transformações, repensar os currículos e as tecnologias pedagógicas focalizando o aluno em sua singularidade, como centro do processo de aprendizagem, transversalizando os conhecimentos… Que efeitos isto teria nos processos de aprendizagem de todos os alunos da escola e também das crianças com transtornos graves??
Alan Vanier, analista que trabalha com crianças de Bonneuil e tem vinculo empregatício com a instituição, afirma que as análises dessas crianças devem ser realizadas fora dos muros da escola, pois as crianças com transtornos graves, devido ao seu funcionamento, não seriam capazes de separar os âmbitos da análise e do trabalho pedagógico, caso sejam feitos no mesmo lugar. “Faltam-lhes recursos simbólicos para perceber que no mesmo espaço podem-se criar discursos diversos. Os problemas com a escola deixam de ser tratados no âmbito da análise, tendo em vista que confundem o analista como um membro da equipe escolar”. (apud Kupfer, 2001, p.74)
Isto não procede do ponto de vista do AT. Vemos que nossas crianças passam a discriminar muito bem o de que se trata com o AT, quando o assunto é com a professora ou com os coleguinhas. Além disso, passam a discriminar os espaços, na mesma linha conceitual da alternância entre as várias oficinas e grupos com diferentes objetivos, que formam as “grades” de atividades nas instituições de tratamento. Marcos, um menino autista de 8 anos, por exemplo, separava tão bem estes espaços que durante bom tempo deixou sua loucura, desorganização, para as oficinas terapêuticas, organizando-se na escola. Depois, tudo se misturou, a desorganização ocupou todos os espaços, em casa e na escola também. Queria ele deixar sua marca?? De qualquer jeito, e isto se torna relevante, alguns meses após esse tumulto, falou sua primeira frase na escola, dirigindo-se para o At que conversava com a professora: “Vem me pegar!” , estabelecendo um laço inédito de relação usando um repertório infantil em que está implícito a dimensão do jogo!
O AT NA ESCOLA
O AT na escola leva a clinica para lá. Isto é radical na articulação saúde- educação , pois até então as experiências educativas migravam para o âmbito do tratamento, dando origem as oficinas, ateliês ou para escolas especiais para crianças psicóticas. É uma intervenção radical também no que se refere à democratização do espaço escolar.
Havemos de tirar vantagens de estar ai, in lócus, no território escolar. Esta é a maior potencia do acompanhamento terapêutico e é isso que temos que oportunizar.
A demanda de At na escola foi se constituindo no tratamento das crianças das oficinas terapêuticas e as diferentes estratégias de intervenção com relação à escolarização foram sendo construídas pela equipe ao longo dos anos e de acordo com a singularidade de cada caso.
Nossa primeira aventura neste território foi em grupo numa escola de ensino fundamental do estado (de São Paulo). Podemos já ai traçar uma rede: o grupo de pais, grupo de crianças (5 das 7 das oficinas), as oficinas terapêuticas, o grupo de Ats, a “perua inclusiva”, (a perua escolar e seu motorista, totalmente engajado na causa e com qualidade de contato muito particular com as crianças), a Parceria PUC-Sedes, o convenio com a Secretaria Estadual de Educação, a escola Dom Pedro e o pessoal da escola. Dessas 5 crianças, apenas uma freqüentava a escola, uma já havia freqüentado por um tempo e as outras nunca foram aceitas no território escolar.
Vemos com clareza os movimentos que daí decorrem. Do grupão (crianças e Ats) grudado/colado (todo mundo junto o tempo todo!) em sua circulação pela escola, pátio, quadra, cantina, corredor das salas de aula, no momento inicial de ambientação e criação de repertório escolar (perua, mochila, caderno…). Dessa colagem grupal inicial ao surgimento da singularidade de cada criança, deslocamentos particulares a partir de interesses e curiosidades diversas, sala de aula, letrinha, quadra, delineando aos poucos as diferentes trajetórias de cada criança neste espaço, sendo isto favorecido pelo AT de referencia, que aí então se estabelece.
Pudemos (a equipe do Projeto) durante 2 anos trabalhar nesta escola como um canteiro de experimentações. O interesse demonstrado por algumas de nossas crianças em estar na sala de aula implicou a escola como um todo. Assim, uma professora interessada na questão da inclusão disponibilizou sua classe para a primeira oficina psicopedagógica que propusemos para se trabalhar a questão das diferenças com os alunos e ampliar o repertório escolar de nossas crianças. Não poderei me deter nesta tecnologia das oficinas psicopedagógicas, apenas assinalarei que no ano seguinte, outras professoras queriam que estas fossem realizadas em suas salas de aula, pela transformação que houve no grupo-classe como um todo[2].
Esta experiência na escola D. Pedro permitiu a matrícula e a entrada de cada criança na escola de seu bairro, demandando diferentes estratégias de trabalho e apoio para a equipe escolar a fim de garantir seu compromisso no projeto, e a entrada do AT como referencia (sombra) para a criança e mediador das relações desta com a professora, as outras crianças e a escola como um todo.
Podemos pensar a posição do AT junto à criança com transtornos graves na escola: é o Outro da linguagem que traduz para ela a ambiência, o movimento geral e o mínimo movimento, a polifonia, todos os atravessamentos que constituem o território, e o silencio mais surdo (bastante próximo da atenção flutuante).
É um Outro barrado, castrado em seu desejo onipotente, diferentemente do Outro onipotente da psicose, que captura a criança psicótica como objeto. De tudo o At não dá conta, para alivio então da criança, que ganha espaço para se constituir como sujeito. De tudo o At não dá conta também para a escola, quando pensamos que esta é uma demanda freqüente por parte dela fazendo um “uso perverso” do AT, exigindo do At um controle total sobre a criança sem se responsabilizar com o processo. Somos barrados, incompletos, e podemos afirmar isso com tranqüilidade, pois isso é condição de possibilidade para construção de redes.
Uma dimensão essencial da transferência que ai se estabelece: a presença ativa. Isto inclui a referencia (sombra) explicitada anteriormente e também um certo tipo de acolhimento “em que se aceita e se toma em consideração o outro, reconhecendo-o em seu estilo e em suas riquezas” (Moura, 2003,p.141); presença ativa também como interprete, tradutor de uma língua estrangeira (da criança, dos pais, da escola, da ambiência), como o secretario do alienado que Lacan nos fala em seu seminário sobre as psicoses (1955) ; presença ativa também como “espelho” no qual a criança se reconheça, operando na constituição do eu e no advento do sujeito, isto é, a criança “se dizer”, de forma a representar-se no discurso social; presença ativa para limitar o gozo invasivo do Outro através de uma palavra ou de um ato; como lugar de testemunha das produções que ai operam;. E por fim, presença para que haja encontros. “(…), o encontro não é programável (…). O encontro, propriamente dito, simplesmente acontece”. Assim, programar o aleatório significa “criar planos que comportem um possível dos encontros, que criem condições mínimas para que o reconhecimento e o desejo possam ter a sua expressão. É preciso promover mais espaços potencias que possam conter os investimentos de cada um, sempre a sua medida”. (ibid, p.142)
Estar aí na escola favorece novas possibilidades de sentido, articulação, encontro, o que pode implicar num novo posicionamento da criança que aí está se constituindo. A estereotipia dos movimentos de braço de Marcos, nos seus momentos mais autísticos e de maior isolamento, parecia o movimento de quem quer entrar na corda para pular, assim, parece, foi como interpretaram este movimento algumas meninas que pulavam corda próximo a ele. Isto fez com que elas insistissem, divertidas e rindo, que ele entrasse logo na corda. Feliz, topou ir bater corda com a AT para as meninas. Momento de presença fugidio.
Outra dimensão a ser destacada é o caráter de invisibilidade de sua ação. O AT na escola deve estar o mais invisível possível. Suas ações, sempre que possível, devem corresponder a “pequenos-nada” (um toque, um olhar, uma palavra) e ainda assim garantir a presença ativa. Invisível para que o sujeito apareça, para dar lugar as produções da criança e principalmente, para deixar de estar lá, passando “o bastão” para a professora ou grupo de crianças. A “vergonha” de Gregório, um adolescente psicótico de 19 anos, a vergonha de estar na classe de educação para jovens e adultos, junto com seu AT, pode ser um sinal de seu “adeus à loucura” (André e Basile, 1996), ou de sua responsabilização pelo seu processo de escolarização, junto com seus professores e colegas.
Referencia Bibliográficas:
ANDRÉ, Simone; BASILE, Odelis.”Adeus a loucura- hospital-dia para crianças: experiência de uma instituição desapassivadora” in: Revista Percurso, n.16, São Paulo, 1996.
COLLI, Fernando Anthero Galvão (org.). Travessias, inclusão escolar: a experiência do grupo ponte Pré- Escola terapêutica Lugar de Vida – São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação para o futuro: psicanálise e educação. 2ª edição. São Paulo: Escuta, 2001.
MOURA, Artur Hyppólito de. A psicoterapia institucional e o clube dos saberes – São Paulo: ed. Hucitec, 2003.
SEMLER, Ricardo (org.). Escola sem sala de aula. Campinas, SP: ed. Papirus, 2004.
SERENO, Deborah; PORTO, Maurício.”Sobre acompanhamento Terapêutico” in: Equipe de ATs do hospital-Dia A Casa (org.). A rua como espaço clinico. São Paulo: ed Escuta, 1991.
Notas
1 – Em 1996, o Núcleo da PUC “As psicoses e suas instituições” inicia um trabalho de “Oficinas Terapêuticas” para crianças com graves sofrimento psíquico na clinica da PUC com a coordenação de Cristina Vicentin; em 1997 convida o NRP do Sedes para uma parceria para tratar da questão da escolarização destas crianças em classes regulares.
2 – As oficinas psicopedagógicas foram se aperfeiçoando no decorrer dos anos, instrumentalizando o professor com repertório de “atividades e atitudes inclusivas” para o trabalho na sala de aula, durante os Cursos de formação em educação inclusiva oferecidos para profissionais da educação e saúde da rede publica municipal ,promovido pela parceria PUC/Sedes a partir de convenio com a secretaria municipal de educação de 2002 a primeiro semestre de 2005.
Artigo publicado no “Site AT” em 17/02/2010.
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