Reflexões Sobre o Processo Clínico na Formação de Acompanhante Terapêutico

Reflexões Sobre o Processo Clínico na Formação de Acompanhante Terapêutico

Resumo: o Acompanhamento Terapêutico (AT) no envelhecimento é um trabalho de escuta, que visa à construção de um projeto que traga novas possibilidades ao idoso.

A presença de alguém de fora do seu cotidiano, disponível para escutar e estar junto, acompanhar, proporciona ao idoso a possibilidade de compreender seus desejos, gerando novas experiências.

Ao longo dos atendimentos, o Acompanhamento Terapêutico busca reconstruir junto com o idoso seu lugar de sujeito desejante. O bem estar e a auto-satisfação podem ser gerados pela simples presença do AT.

Mas também podem servir de ponte para que o idoso ou a pessoa possa encontrar este bem estar em atividades de convivência, socialização, reconstrução dos laços familiares, amizades e outras relações perdidas por conta do isolamento social.

Neste trabalho, proponho refletir sobre as mudanças que podem ocorrer no percurso clínico ao longo do processo de formação do acompanhante a partir do encontro terapêutico. Para ilustrar o percurso utilizarei alguns exemplos de casos, em paralelo à minha primeira experiência na área, com o acompanhamento de uma senhora com Alzheimer em 2010.

Palavra-chave: Idoso, atendimento terapêutico, processo clínico.

 

 

Reflexões Sobre o Processo Clínico na Formação de Acompanhante Terapêutico

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é um instrumento de intervenção voltado para pacientes com grave desorganização psíquica.

Este trabalho vem ampliando sua área de atuação, abrindo espaço para intervenções em outros campos como no envelhecimento (BARRETO, 2000).

Esta perspectiva do AT parte da busca de encontrar alternativas para os indivíduos que de alguma maneira se encontram diante de um sofrimento e limitações físicas ou psíquicas.

A prática do Acompanhamento Terapêutico pode ser realizada como parte de uma equipe multidisciplinar ou como uma atuação independente. A proposta do acompanhamento é pensada conforme a necessidade a demanda de cada idoso, bem como o tempo de atendimento e a frequência dos encontros.

Desta maneira, o AT se coloca de modo singular e flexível para cada caso em particular. Este olhar individualizado garante maior compreensão do indivíduo e da situação e possibilita pensar nos possíveis projetos a serem realizados.

Uma das funções do Acompanhamento Terapêutico é ir ao encontro do paciente onde ele estiver, seja na casa, na instituição ou até algum espaço da cidade, como clubes ou parques, compartilhando o cotidiano de seus pacientes (GOLDFARB; LOPES, 2013).

Segundo as psicólogas Délia Goldfarb e Ruth Lopes, a falta de perspectiva para o futuro, planos ou projetos, pode gerar no idoso a possível desistência de atividades e/ou extinção de momentos prazerosos de sua vida e isso pode gerar um isolamento social, desfazendo laços afetivos.

 

Reflexões Sobre o Processo Clínico na Formação de Acompanhante Terapêutico: O Trabalho Com Idosos

O trabalho com idoso é, construir e proporcionar a possibilidade de compreensão dos próprios desejos, gerando novas experiências prazerosas buscando sair da posição de isolamento que se encontram.

A presença de alguém de fora do seu cotidiano, disponível para escutar e estar junto, acompanhar, por si só, já pode gerar bem estar.

Mas também pode servir de ponte para que o idoso ou a pessoa acompanhada possa encontrar este bem estar em atividades de convivência, socialização, reconstrução de laços familiares, amizades e outras relações perdidas buscando promover, então, uma melhor qualidade de vida.

A fim de ilustrar o que acabo de descrever sobre o encontro terapêutico, trago aqui a deusa Héstia da mitologia grega. Durante a leitura do texto “O Calor e a Luz de Héstia: sua presença nos grupos vivenciais”, da psicóloga, Laura de Freitas, percebi que esta deusa representa muito bem este momento que é construído nos atendimentos.

Héstia é uma deusa recatada, silenciosa, afetiva que fica em casa, ao redor do fogo, proporcionando um ambiente acolhedor, confortável e tranquilo.

O momento gerado por Héstia provoca mudança de foco. Este ambiente acolhedor, silencioso, torna-se propício para que novas imagens possam emergir na consciência, dando luz ao novo. Héstia possibilita o devaneio e a produção de ideias.

Quando alguém está envolvido em alguma atividade, se entrega absolutamente no que faz e assim não se preocupa com o tempo que está correndo. Então, podemos dizer que enquanto estamos sendo regidos por Héstia nosso tempo é Kairós (FREITAS, 2005): temos a sensação de que perdemos a noção do tempo que passou, e enquanto realizamos algum trabalho, vivenciamos um estado de reflexão interna, quase como uma meditação.

Como disse Laura de Freitas:

Ao redor da lareira, pode-se devanear sem se perder. Seguir o movimento das fagulhas ou da crepitação do fogo, concentrando-se ali, num estado contemplativo, aquietado. Imagens, ideias e sensações acabam surgindo. Elas põem-se a dançar junto com as chamas, à vontade e com leveza, e nos convidam a olhar para elas, vendo-as ou não, até que uma surge em nitidez e se apresente com mais insistência (FREITAS, 2005, p. 133).

Héstia, como vista nesta citação, propicia o devanear de forma focada, permite focalizar em uma parte dentro de um todo.

Ela traz também o calor: com o fogo, cria um ambiente que envolve e gera confiança, e segundo a Laura de Freitas “permitindo uma abertura para o novo (se este resolver se apresentar)” (2005, p. 133). Mas se o novo não emergir neste encontro, este é um momento para reviver o antigo, reconstruindo a própria história.

Sem a presença de Héstia, as imagens não se apresentam à consciência. Os momentos que Héstia proporciona – aqui entendidos como o encontro terapêutico – garante segundo Laura (2005, p. 144) “subjetividade e individualidade”.

Pensando sobre o Acompanhamento Terapêutico e trazendo a deusa Héstia para ilustrar o encontro terapêutico, tive a oportunidade de reler agora meu trabalho escrito para minha formação de Acompanhamento Terapêutico em 2010.

Entrar em contato com esta produção é poder ter a chance de repensar a minha primeira experiência de encontro terapêutico, que, acredito agora, foi descrita de um modo diferente do que vejo e vivencio hoje, mas ambas dizem respeito ao mesmo momento, ao mesmo tipo de encontro, quem sabe até, à mesma deusa.

Parte do processo de formação envolvia atender um paciente, assim Joana foi meu primeiro caso como acompanhante terapêutica: Uma senhora de 91 anos com o diagnóstico de Alzheimer há seis anos.

Após o falecimento do marido, que também tinha o mesmo diagnóstico, passou a morar com a filha, deixando seus costumes, lazer, amigos e independência, para se adequar à nova vida. Com a mudança passou a ficar em casa, vendo TV, sendo, basicamente, sua única atividade fora de casa, sair às vezes com o cachorro, mas sempre acompanhada da emprega ou da filha.

Assim, ao longo dos nossos encontros, íamos fazendo atividades que gostava como, bordado, pintura, jogo de cartas. Em nossos momentos juntas, havia pouca conversa, pois além do fato de ser muito tímida, ela também tinha certa dificuldade na fala e na escuta. Algumas vezes ficamos em silêncio, vivenciando as atividades e os momentos construídos.

Enquanto jogávamos ou desenhávamos, percebia que ela me procurava com o olhar. Como se precisasse da minha cumplicidade para manter-se ativa. Minha presença, mesmo que em silêncio, provocava alguma mudança e isso causava um sentimento de amparo, que era percebido por mim quando ela procurava o meu olhar durante nossos encontros.

No meu trabalho de formação, descrevi o que foi o encontro terapêutico, vivenciado e entendido através desta minha primeira experiência de atendimento. Denominei o encontro terapêutico como algo experimentado em cada encontro, algo único e particular de cada encontro.

Hoje, consigo perceber que na época experimentei o encontro terapêutico como sendo algo mais estruturado, com começo, meio e fim a cada semana. Talvez como uma proteção às dificuldades vividas neste encontro com Joana, que já apresentava uma desorganização devido ao Alzheimer.

Hoje, compreendo o quanto o encontro terapêutico, é algo fundamental para sustentar o processo de atendimento e o quanto isto está relacionado com o modo de ser de Héstia. Algo que é, de alguma forma, constituído e sustentado pelo acompanhado e pelo acompanhante.

É através deste espaço garantido e construído por ambos, que o Acompanhamento Terapêutico pode se estabelecer e se fortalecer. O estar junto é fundamental para garantir um espaço, reconstruir vontades, desejos e muitas vezes lutar pela independência perdida pelo isolamento.

Foi muito importante ter diferentes experiências clínicas para construir e garantir para mim mesma, o quanto a construção do encontro faz sentido no acompanhamento. Laura de Freitas (2005) aproxima o vivenciar Héstia com o verbo “estar” (em contraposição a “ser”), pois a deusa é capaz de promover repouso, surgimentos de imagens ao redor da fogueira, transcendendo o espaço físico. Talvez o mais importante de toda esta reflexão seja que Héstia é, segundo as palavras da própria Laura, “Mais do que fazer ou ser algo, trata-se de simplesmente estar e deixar que as coisas aconteçam” (2005, p. 134).

Esta oportunidade de reler e reviver o meu primeiro acompanhamento me proporcionou uma reflexão sobre a compreensão da minha prática em si. Cada vez mais, compreendo que a presença do outro modifica e cria momentos de transformação, mesmo que pequenos.

 

 

Referências

  1. BARRETO, Kleber. D. Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com dom Quixote e Sancho Pança. 2ª ed. São Paulo: Unimarco, 2000. 210p.
  2. FREITAS, Laura.V. O Calor e a Luz de Héstia: sua presença nos grupos vivenciais. Cadernos de Educação UNIC, Edição Especial, 2005, pp.131-145.
  3. GOLDFARB, Delia. C; LOPES, Ruth. G. Interfaces necessárias entre a psicogerontologia e o acompanhamento terapêutico. In: Travessias do tempo: acompanhamento terapêutico e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.
  4. MAUER, Susana; RESNIZKY, Silvia. Territórios do Acompanhamento Terapêutico. Argentina, Buenos Aires: Letra Viva, 2009. 208p.

 

Autora: Beatriz de Freitas Bönecker – Psicóloga e AT. São Paulo/SP.

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