Algumas reflexões e considerações sobre a prática do acompanhamento terapêutico

RESUMO

Este artigo apresenta dados científicos sobre a história e o início da prática do Acompanhamento Terapêutico. Tem o objetivo de esclarecer os leitores sobre o que é Acompanhamento Terapêutico, quem pode atuar como um acompanhante terapêutico, suas funções, áreas de atuações e aspectos éticos. Além disso, como os pacientes podem se beneficiarem através dessa prática e ser um importante complemento no tratamento de diversas patologias. E a relação entre Acompanhamento Terapêutico e promoção à saúde.

Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, acompanhante terapêutico, tratamento.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como foco principal levantar algumas considerações importantes referentes à prática do Acompanhamento Terapêutico. Para isso, serão resgatados conceitos teóricos sobre a história e surgimento do Acompanhamento Terapêutico, como aspectos da Reforma Psiquiátrica, formas de tratamento, principalmente à pacientes internados.

E também, aspectos peculiares sobre o significado e importância do Acompanhamento Terapêutico, com a forma de tratamento a pacientes psiquiátricos e demais patologias, quem pode desempenhar essa prática, as devidas funções cabíveis ao acompanhante terapêutico, lugares de atuação e postura ética-profissional.

Além disso, como é realizada essa prática, quais as suas vantagens proporcionadas aos pacientes e quais patologias podem ter como indicação de tratamento o Acompanhamento Terapêutico. Sendo assim, abordarei alguns conceitos teóricos que fundamentam tal prática e nos fazem refletir sobre aspectos importantes que englobam e fortificam ainda mais prática do Acompanhamento Terapêutico.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O Acompanhamento Terapêutico iniciou a partir das experiências antipsiquiátricas, onde os profissionais queriam buscar novas formas de intervenção. Surgiram, então, a idéia dos terapeutas saírem do seu ambiente de “conforto” (hospitais psiquiátricos e/ou clínicas) para vivenciar outra prática de trabalho, ou seja, sair com os pacientes para lugares que eram de ordem comum ao seu cotidiano.

O intuito era tornar este cotidiano um lugar terapêutico, o que não deixa de ser, em certa medida, o objetivo atual desta prática clínica. Continuamos buscando o cotidiano, continuamos indo à rua com o nosso paciente, utilizando-a também como um espaço descentrado das estruturas psiquiátricas de tratamento.

 

O Acompanhamento Terapêutico vem ao encontro dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica porque ajuda a viabilizar o resgate da cidadania de pessoas com grave sofrimento psíquico. Ao promover a circulação dos pacientes pelo espaço cotidiano, nos quais sua presença costumava ser praticamente vetada, o acompanhante coloca frente a frente o sujeito adoecido e os demais atores sociais com os quais ele passa a interagir caso não esteja mais segregado em asilos, manicômios ou até mesmo dentro do próprio lar”. (Carvalho, 2004: 41).

Os pacientes que viviam em antigos manicômios, não podiam usufruir do mesmo espaço físico que os ditos “normais”, estavam excluídos socialmente. Vivendo somente no manicômio sem ter contato com o real e com um cotidiano comum de direito à todos, mas que naquele momento não era oferecido aqueles que possuíam uma “loucura”. Mas, com o passar do tempo, novas teorias surgem e inicia-se o processo antimanicomial.

Ou seja, “quebram-se os muros dos manicômios”, querem investir e criar novas formas de tratamentos psiquiátricos, reintegrá-los à sociedade, misturando-se loucos e normais todos num mesmo contexto social, sem exclusão.

A Luta Antimanicomial, movimento este que produziu alterações significativas nos estatutos de conduta médicas, psicológicas e jurídicas no Rio Grande do Sul e no Brasil. Entendemos que o Acompanhamento Terapêutico constitui-se como dispositivo complementar e que contribui para a efetivação destas (da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial) e, neste sentido, tem estreita ligação para com estas. (Pelliccioli; Guareschi; Bernardes, 2004).

Segundo Ayub (1996), o primeiro trabalho de Acompanhamento Terapêutico, dataria de 1937, quando Sechehaye, psicanalista suíça, teria treinado uma enfermeira para cuidar de uma paciente esquizofrênica. Nesse momento, evidentemente, o Acompanhamento Terapêutico representava simplesmente uma possibilidade de intervenção clínica e não uma prática instituída dentro do campo da saúde mental. Barretto (1997) e Martin et al. (1993), por sua vez, afirmam que Acompanhamento Terapêutico como o conhecemos hoje, teria surgido na Argentina, no final da década de 1960.

Com uma pesquisa mais aprofundada neste aspecto histórico, Reis Neto (1995) confirma esta origem mostrando que o Acompanhamento Terapêutico, inicialmente chamado de Amigo Qualificado, era um dos protagonistas de uma equipe especializada que integrava o CETAMP (Centro de Estudos e Tratamento de Abordagem Múltipla em Psiquiatria), dirigida pelo doutor Eduardo Kalina.

O trabalho do CETAMP era feito sem vinculação necessária a qualquer estabelecimento psiquiátrico, embora ele se associasse algumas vezes às comunidades terapêuticas. O aparato conceitual deste trabalho é a teoria psicanalítica, embora haja na experiência do CETAMP uma ruptura com a ortodoxia técnica vigente na Argentina de orientação kleiniana (Reis Neto, 1995). O interesse maior na experiência do CETAMP era que nela o Acompanhamento Terapêutico figurava entre os outros profissionais, sem qualquer relação de subordinação.

Neste sentido, era uma experiência que antecipava o que hoje chamamos de “prática feita por muitos”. Em 1971, duas psicólogas da equipe do CETAMP publicam o livro: Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos, numa primeira tentativa de elaboração teórica sobre a prática do Acompanhamento Terapêutico.

O livro publicado no Brasil em 1985, parece ter preenchido um vácuo teórico sobre essa prática e, dando certa visibilidade ao trabalho do Acompanhamento Terapêutico, passa a ser referência obrigatória para aqueles que trabalhavam na função de acompanhar o psicótico das mais variadas maneiras. Assim, uma nomeação e uma caracterização mais restrita do papel do Acompanhamento Terapêutico surgem como resultado do trabalho desenvolvido e formalizado no CETAMP. Desde então o Acompanhamento Terapêutico se firmou como uma modalidade no tratamento da saúde mental, também no Brasil.

Um dos aspectos dominantes desta prática, destacados por Mauer e Resnizky (1985), era a noção de abordagem múltipla, vinculada, de certo modo, à idéia de trabalhoem equipe. Oacompanhante terapêutico nunca trabalha sozinho, ele terá ao menos um outro profissional comprometido com o tratamento do paciente acompanhado. A Clínica Pinel de Porto Alegre, comunidade terapêutica inspirada no modelo de comunidades terapêuticas americanas, foi a primeira a utilizar essa “nova” figura, na época sob o nome de Atendente Psiquiátrico, cuja função era auxiliar os pacientes psicóticos internos.

O Atendente Psiquiátrico entrava em ação sempre que o caráter terapêutico da comunidade falhasse, ajudando o sujeito a participar da comunidade. Podemos pensar que esta era uma forma de reinserção, mas cuja ênfase clínica era a comunidade.

A comunidade era pensada como fonte de relações saudáveis. Não se sabe ao certo se a criação da figura do Atendente Psiquiátrico na Clínica Pinel se deu por influência das comunidades terapêuticas de Buenos Aires ou se esta clínica foi pioneira neste aspecto, pois há uma contemporaneidade em relação à introdução deste agente na Argentina e no Brasil, particularmente no Rio Grande do Sul.

O trabalho da Clínica Pinel, segundo a pesquisa de Reis Neto, foi pioneiro no Brasil e muito influenciou a criação em 1969, no Rio de Janeiro, da Clínica Villa Pinheiros, centro de tratamento inspirado na psiquiatria dinâmica com sustentação teórica psicanalítica.

A experiência da Villa Pinheiros representou um marco na prática do Acompanhamento Terapêutico no Brasil, na medida em que o Auxiliar Psiquiátrico da Villa deixou de trabalhar exclusivamente no interior da instituição psiquiátrica e conseguiu levar o acompanhamento para fora do hospital. Na Villa, a importância da relação do sujeito na comunidade terapêutica vai dando lugar à importância da relação deste com o fora da clínica, havendo assim uma ampliação do campo social (Reis Neto, 1995). Entretanto, é de se destacar que neste momento o Auxiliar Psiquiátrico encontrava-se ainda vinculado à instituição hospitalar e o trabalho envolvia pacientes que se encontravam internados.

O Auxiliar Psiquiátrico tinha as mais variadas funções: medicar, conter, entreter, acompanhar o paciente em atividades fora do hospital, como visitas à família, passeios, licenças e ajudá-lo na reorganização de suas atividades durante o período da internação. Do ponto de vista teórico, pouco se pensou sobre a problematização do uso dos auxiliares e o que isso representava; tratava-se apenas de um recurso que mostrava uma certa eficácia empírica.

Simultaneamente, ao trabalho realizado dentro da comunidade terapêutica, alguns psiquiatras começaram a indicar o Auxiliar Psiquiátrico a seus pacientes, durante os momentos de crise, com o intuito de se evitar internações. O Auxiliar Psiquiátrico permanecia assim, 12 ou 24 horas junto ao paciente, fazendo revezamento com companheiros de equipe em turnos que variavam de quatro a seis horas, alternados com enfermagem noturna.

Como instrumento clínico, o Auxiliar Psiquiátrico participava no estabelecimento do diagnóstico e de estratégias de tratamento, colaborando de maneira decisiva nos projetos terapêuticos. Foi reconhecido como um pesquisador de campo que testava a capacidade do sujeito de relacionar-se com o outro do social, avaliando aquelas áreas que se encontravam mais comprometidas e mais adaptadas, registrando reações adversas, sendo capaz de perceber motivações e projetos.

Como podemos perceber, há algo nessa prática que sempre diferenciou o lugar do auxiliar do da enfermagem. O Auxiliar precisava deixar de lado um nome que o fazia permanecer numa posição de subordinação e adotar um outro que lhe conferisse uma maior autonomia.

Entretanto, com o passar do tempo, a designação de Amigo Qualificado, proposta pelo grupo do CETAMP, que apontava para um trabalho amistoso e assistencial, passou a não se adequar àquilo que realmente representava o trabalho, principalmente por não delimitar a relação assimétrica que havia entre o terapeuta e o paciente. O título Amigo Qualificado foi abandonado, desta vez dando lugar à denominação acompanhante terapêutico.

É interessante notar que, concomitante a estas mudanças de denominações, há uma espécie de delimitação do perfil do acompanhante terapêutico. Se antes não se exigia do Auxiliar Psiquiátrico nenhum tipo de conhecimento específico, atualmente todos os profissionais que realizam o Acompanhamento Terapêutico são do campo da saúde, a maioria, vindos da psiquiatria ou da psicologia e, mas também profissionais da terapia ocupacional, enfermagem, entre outros.

Como ressalta Ribeiro (2002):

“Tal mudança de nome vem não só dar um testemunho de modificação na clínica da psicose     como também cobrar do acompanhante o seu novo endereço, ou seja, o lugar onde ele se situa     nessa clínica e de onde ele fala” (p. 79).

O tempo que se despende ao lado do paciente tem uma estipulação específica e não pode ficar na dependência da vontade pessoal dos participantes dessa relação. Além disso, o acompanhante terapêutico é remunerado, porque realiza um trabalho como um profissional, executa uma tarefa assistencial e faz parte de uma equipe psicoterapêutica.

A mudança de nome foi um fator muito importante, que permitiu um melhor enquadramento do papel com relação a seus alcances e seus limites (MAUER; RESNIZKY, 1987; ANTONUCCI, 1994).

Posteriormente, à iniciativa realizada no Rio de Janeiro, constata-se a abertura de comunidades terapêuticas com a presença da figura do Auxiliar Psiquiátrico tambémem São Paulo, com a criação, em 1979, do Hospital Dia A Casa.

São Paulo vai se destacar no cenário nacional principalmente nos anos 1990 com a publicação dos trabalhos da equipe de acompanhantes no livro: A rua como espaço clínico. Esse livro testemunha uma certa vontade de independência histórica do grupo de São Paulo.

Podemos verificar isso no texto de Porto e Sereno (1991) em que os autores reconhecem a existência de um trabalho semelhante na Argentina, mas afirmam que as formulações desenvolvidas pelo grupo de: A asa baseia-se unicamente naquilo que foi acumulado na experiência prática em dez anos de trabalho, desde que o Acompanhamento Terapêutico foi introduzido no Hospital-Dia. Segundo Greco (2000), as primeiras experiências com acompanhantes terapêuticosem Belo Horizontesurgiram simultaneamente à implantação de comunidades terapêuticas (Centro Psicoterapêutico, Centro Terapêutico Comunitário Santa Margarida), em meados dos anos 1970.

Essas experiências foram conduzidas por psiquiatras/psicanalistas na sua atividade clínica, mas sem qualquer forma de institucionalização. O interesse dos profissionais e estudantes pela atividade do Acompanhamento Terapêutico foi desvalorizado no meio da psicologia de orientação lacaniana, pela afirmação de que “o acompanhante não ocupava o lugar do analista, prestando-se apenas às identificações imaginárias”, como se essa modalidade terapêutica contribuísse ainda mais para a alienação do sujeito.

Só a partir de 1997, com o trabalho da equipe da Clínica Urgentemente, o Acompanhamento Terapêutico recupera seu prestígio dentro do tratamento das psicoses e incita os profissionais a formularem hipóteses teóricas sobre este dispositivo clínico que tem se afirmado como elemento importante na possibilidade de estabilização dos pacientes.

A Urgentemente foi fundada por um grupo de profissionais que trabalhava na rede pública de saúde mental, dentro da perspectiva da Luta Antimanicomial e da reforma psiquiátrica. A proposta inicial era criar uma moradia protegida e um hospital-dia. Mas, a questão do deslocamento dos pacientes, ou seja, da circulação dos pacientes pelo espaço que liga a rede de atendimento (ambulatório, consultório) à moradia, colocou de forma contundente a necessidade de um profissional que pudesse acompanhar esses pacientes.

No início são aceitos profissionais formados em Psicologia ou Terapia Ocupacional que se submetem à supervisão dos profissionais da clínica e a uma supervisão geral de Nelson Carrozo, da clínica A Casa de São Paulo.

Sentindo necessidade de preparar melhor os profissionais para esta atividade, cuja particularidade é a de ser dificilmente delimitada, talvez tanto quanto a própria psicose, a Urgentemente cria, a partir de 1998, um curso de formação de dois anos para estes profissionais. O curso conjugava prática supervisionada e discussão clínica com disciplinas de psicopatologia, psicofarmacologia, psicanálise e sistêmica, enfocando a psicose.

Estes profissionais serão recomendados de acordo com o projeto terapêutico proposto pela equipe clínica. Mesmo funcionando como profissionais liberais, os acompanhantes terapêuticos trabalham na perspectiva da rede, ou seja, o seu projeto terapêutico deve estar inserido no projeto terapêutico da equipe.

Existem critérios clínicos para a recomendação da inclusão do Acompanhamento Terapêutico no tratamento da psicose. Os serviços da Urgentemente são demandados pelos psiquiatras não apenas no momento de saída do hospital, mas no momento de crise, tentando evitar a internação. Desse modo ela pode ser descrita como uma clínica particular que trabalha dentro da perspectiva da rede e do movimento de desospitalização.

Em Belo Horizonte, temos ainda nos hospitais psiquiátricos da rede pública uma clientela que não possui uma necessidade de tratamento em regime de internação, porém não apresenta possibilidades de reinserção familiar ou social.

É nesse contexto do serviço público de saúde mental, enfrentando o desafio da desospitalização, que o Acompanhamento Terapêutico surge como um elemento fundamental na passagem do hospital para a casa (moradia protegida), na busca de uma interação do paciente psicótico com seu contexto social. A Prefeitura de Belo Horizonte implantou o Programa de Desospitalização Psiquiátrica (PDP), a partir da criação de moradias protegidas que contam com o trabalho de estagiários para o serviço de acompanhamento terapêutico.

O Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário aparece também como lugar de demanda dos serviços do Acompanhamento Terapêutico que fazem a mediação entre a instituição jurídica e a instituição de tratamento psiquiátrico.

O Hospital Raul Soares também vem utilizando esse dispositivo para pacientes internados. Estes dados parecem apontar para o reconhecimento, por parte dos órgãos públicos municipais, da eficácia destes serviços na perspectiva da reinserção social do psicótico.

São muitas as áreas de atuação que o acompanhante terapêutico pode circular, é uma prática de contribuição ampliada, que diversos profissionais da saúde atuam.  Com o objetivo de realizar uma atividade clínica que possibilita romper com o isolamento social em que se encontram pessoas com transtornos psicóticos, deficiências físicas e mentais ou mesmo que vivenciem outras situações nas quais estejam comprometidas as atividades cotidianas.

“O acompanhante deve tender a reforçar as defesas de adaptação adequadas e ajudar a desenvolver novos mecanismos de defesa. Isto será feito ao longo da convivência com o paciente, mostrando-lhe, por exemplo, que frente a uma situação determinada há possibilidades de reagir de modos diferentes”. (Mauer; Resnizky, 1987: 56).

Segundo Mauer e Resnizky possíveis funções do Acompanhamento Terapêutico com o     paciente são favorecer um “modelo de identificação” para o paciente por meio da função de “ego auxiliar”, conter, perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente, informar sobre o mundo objetivo do paciente, representar o terapeuta, atuar como agente ressocializador e servir como catalisador das relações familiares.

Com certeza, existem muitas outras funções que podem ser trabalhadas por um acompanhante terapêutico, o que vai influenciar é a demanda que o caso exige, ou seja, conforme a singularidade do paciente, sua patologia e contexto familiar e social inserido.

Acompanhamento Terapêutico: prática de saídas pela cidade, com a intenção de montar um ‘guia’ que possa articular o paciente na circulação social, através de ações, sustentado por uma relação de vizinhança do acompanhante com o louco e a loucura, dentro de um contexto histórico. (EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA A CASA, 1991, p.30).

O trabalho de Acompanhante Terapêutico permite que o profissional, em sua função de acompanhante terapêutico, acolha o material psíquico do paciente de um lugar singular, onde a relação terapêutica se dá sem a privacidade das paredes institucionais, possibilitando o projeto de “invenção” de saúde e reprodução social do paciente. O acompanhante terapêutico acompanha o paciente pelas ruas da cidade, munido de um guia, de uma proposta terapêutica no ato e no movimento do corpo que interage no âmbito social.

A noção de movimento que emerge da própria intervenção terapêutica do Acompanhamento Terapêutico se inscreve pela própria prática das saídas pela cidade. Movimento este que procura desinstalar o indivíduo de sua situação de dificuldade para poder recriar algo de novo na sua condição existencial. Contudo, esse movimento não aparece de forma aleatória. Embora possam ser vivenciadas cenas sem prévio planejamento, é importante um ‘guia’, de uma proposta terapêutica, que procura articular o paciente em seu espaço social. A reinvenção se faz presente a partir da própria condição do louco.

Poderíamos dizer que a principal característica que diferencia a clínica do Acompanhamento Terapêutico de outras modalidades que também têm como público alvo pessoas que estejam em sofrimento psíquico, seja esta tornar a rua como espaço clínico, como setting. Partindo de um paradigma médico-psiquiátrico, esta clínica veio tomando formas diversas de cada referencial teórico que sustenta a prática de cada profissional.

A prática do Acompanhante Terapêutico, na medida em que se transcorre exteriormente ao consultório/instituição, pode ser realizada em casa, na rua, no cinema, no shopping, na escola, no trabalho ou em outro local que a comunidade possa oferecer. O fundamental é estar em constante conexão com o âmbito social, com os aspectos culturais e simbólicos nos quais o sujeito está inserido ou convive cotidianamente, procurando aspectos sadios e recursos potenciais existentes no indivíduo, apesar de sua crise.

O caminho teórico aponta para uma discussão sobre um movimento inverso ao da exclusão, ou seja, o da inclusão. O olhar está voltado para a pessoa com dificuldade, considerando nesse caminho aos diversos percalços e seus necessários enfrentamentos durante o processo de saúde/doença do sujeito. Daí o acompanhante terapêutico, dentro da relação terapêutica com o paciente, pode contribuir na promoção de movimentos inclusivos dentro da realidade circunstancial do indivíduo em dificuldade com a construção cotidiana do projeto terapêutico.

Foucault (1993) referindo-se à loucura como o “mundo da exclusão” comenta sobre meados do século XVII, época em que os “desviados” eram banidos do convívio social, caracterizando esses excluídos como indivíduos que não estavam apropriadamente preparados para a nova ordem social que começava a se instaurar – o início da industrialização.

Nesse aspecto, existe uma relação com o Acompanhamento Terapêutico, pois, pode ser considerado como uma prática anti-segregação, em que se tenta minimizar os efeitos da estigmatização das pessoas em dificuldade pela própria forma de intervenção. Nesse contexto, essa prática busca propiciar uma maior autonomia para que os pacientes possam conviver e se desenvolver como sujeitos criativos no seu próprio meio social e urbano, apesar dos limites e dificuldades individuais – o resgate de sua auto-regulação no social.

Portanto, consideramos fundamental que nossas discussões estejam a serviço da melhora de nossos pacientes. Por isto, as palavras de Kalina (1988) nos são úteis:

 

“O acompanhante terapêutico deve ser capaz de dissociar-se para poder, por um lado, manter por sua vez um distanciamento crítico que lhe permita observar e avaliar a interação. Para isso, é imprescindível que possa descentrar-se a si mesmo como um instrumento da tarefa, como alguém capaz de albergar, acompanhar e pensar com o paciente.” (p. 65).

Uma outra característica importante para nossa prática é a “continência”. Conforme trabalho produzido pelo grupo em 1996, ao “falar em continência, pensamos sempre na analogia com o mar, que rebenta bruscamente sobre a areia que recebe o impacto e devolve a água ao mar de maneira à reintegrá-lo. Semelhante a isso o acompanhante terapêutico ‘contém’ os impulso e ansiedades do paciente no intuito de ser continente às emoções que este está despertando”.

Neste sentido, o acompanhante deve ser essencialmente continente, pois a criação a que nos referimos acima pode implicar em momentos de intensa frustração, a qual é suficiente “para não ser simples conseguir resgatar com o paciente a confiança em usar o que tem… e também construir o que não se sabe e nem tem”.  (PORTO; SERENO, 1991, p.25)”.

Para que um acompanhante terapêutico consiga de fato desenvolver um trabalho terapêutico, resgatando importantes aspectos citados anteriormente, como a inclusão social e diversas atividades da vida cotidiana é necessário uma supervisão regular.

Segundo Zamignani e Wielenska (1999), é considerada condição fundamental para o exercício do trabalho do Acompanhamento Terapêutico; na maioria dos casos, o próprio profissional responsável pelo caso é quem supervisiona o acompanhante terapêutico, e, ainda, proporciona coerência ao tratamento. Porque trabalham conjuntamente, parece ser importante para o processo terapêutico que o terapeuta atente não só para os rumos da terapia, mas também para o alinhamento das práticas do Acompanhamento Terapêutico, avaliando-o continuamente e efetuando feedback constante de suas atividades, com intuito único de beneficiar o cliente que buscou ajuda.

 

CONCLUSÃO

Em síntese, o trabalho de revisão bibliográfica revelou que ainda são poucos os artigos científicos publicados sobre a temática do Acompanhamento Terapêutico. Faz-se necessário novos estudos e uma construção mais sistemática a fim de ampliar o conhecimento dentro desse campo de possibilidades, para uma melhor fundamentação teórica dessa estratégica clínica.

Um outro aspecto que deve ser ressaltado é a não existência de um código de ética que regularize tanto a formação profissional como as atividades praticadas no Acompanhamento Terapêutico. Na Argentina, já existe o código de ética sobre o Acompanhamento Terapêutico e é de extrema importância que fosse concretizado também no Brasil, assim como demais países.

Pois, isso influencia para que tal prática ainda seja pouco investida tanto nas pesquisas científicas como também na clareza e definição de que profissional é realmente capacitado e possui qualidades suficientes para lidar com a demanda dos pacientes e situações que exijam risco tanto para o paciente, cidadão que estiver na rua e próprio acompanhante terapêutico.

 

Referências Bibliográficas

  • AYUB, P. Do amigo qualificado ao acompanhante terapêutico. Infanto Revista Neuropsiquiatria da Infância e da Adolescência, v. 4, n. 2, p. 37-40, ago.1996
  • BARRETTO, Kleber Duarte. Acompanhamento Terapêutico: uma clínica do cotidiano. Insight: Psicoterapia, São Paulo, Lemos Editorial, ano VII, n. 73, p. 22-24, maio/1997.
  • _______________________. Ética e técnica no Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: Unimarco, 2000.
  • CARVALHO, Sandra Silveria (2004). Acompanhamento Terapêutico: Que clínica é essa? São Paulo: Annablume. 148p.
  • FOUCAULT, M. (1982). Micorfísica do poder  3. ed. Rio de Janeiro: Graal.
  • GRECO, Musso. Acompanhante Terapêutico: o guia das cidades invisíveis. Belo Horizonte, 2000 (mimeo).
  • IBRAHIM, César (1991). Do Louco à Loucura: O percurso do auxiliar psiquiátrico no Rio de Janeiro. In: A CASA, Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia (org.). A Rua Como Espaço Clínico: Acompanhamento Terapêutico. São Paulo: Escuta. p. 43-49.
  • INEM, Luiz Cezar de Oliveira apud BUSTAMANTE, Mirian Pantoja de (2003). O Acompanhamento Terapêutico no Cotidiano da Vida: Ou Memória da Loucura: E Agora José?
  • KALINA, Eduardo. Tratamento de Adolescentes Psicóticos. RJ: Francisco Alves, 1988.
  • MARTIN, Elisabete Villa lobos (1993). et. al. Acompanhamento Terapêutico: uma modalidade de intervenção psicoterápica. Insight Psicoterapia, ano III, n. 34, p.14-17.
  • MAUER, Susana Kuras de; RESNIZKY, Silvia (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos: Manual Introdutório a Uma Estratégia Clínica. Tradução: Waldemar Paulo Rosa. São Paulo: Papirus. 164p.
  • PELLICCIOLI, Eduardo Cavalheiro; GUARESCHI, Neuza; BERNARDES, Anita Guazzelli. (2004). O trabalhador da saúde mental na rede pública: O acompanhamento terapêutico na rede pública.
  • PORTO, Maurício e SERENO, Deborah (1991). A rua como espaço clínico. Sobre acompanhamento terapêutico In: Equipe de acompanhantes terapêuticos do Hospital-dia A Casa (org.). São Paulo: Escuta, p. 23-31.
  • REIS NETO, Raymundo de Oliveira (1995). Acompanhamento Terapêutico: emergência e trajetória histórica de uma prática em Saúde Mental. Dissertação: Mestrado em Psicologia Clínica. da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 324p.
  • RIBEIRO, Thais da Cruz Carneiro. Acompanhar é uma barra: considerações teóricas e clínicas sobre o Acompanhamento Terapêutico: Psicologia, ciência e profissão, ano XXII, n. 2, p. 78-87, 2002.

Autora

Raquel Masetto – Graduanda do 7º semestre do curso de Psicologia  pela Universidade Luterana do Brasil – Gravataí. Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. E-mail: [email protected]

Supervisão em AT.

Tags:

Comente aqui.