Comendo o pão da psicoterapia

Autora:

  • Melany S. Copit – Psicóloga.

 

A Propósito de Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança

Kleber Duarte Barretto. Editora Unimarco (tel. 274 5711), 210 págs., R$ 16,00.

Kleber, em seu livro-mestrado, com rara felicidade nos introduz no acompanhamento terapêutico através de Cervantes e sua já quase mítica dupla, para concluir: “Acompanhar vem do latim cum = comer e panis = pão. Ou seja, comer do mesmo pão” (p.188). Da loucura, digo eu. Não é essa dupla a encarnação viva do acompanhar-se mutuamente? Sancho e Quixote em suas andanças não comeram o mesmo pão de suas loucuras complementares? Como Kleber bem sugere, é Cervantes que propõe a terapêutica – a transformação de loucura (com “ele” minúsculo) em Loucura (com “ele” maiúsculo) – a experiência verdadeiramente humana – a ilusão. Sancho, o homem estreito, e Quixote, o “viajante”; o primeiro a ciscar migalhas para os prazeres da carne, o segundo pensando-se gigante para enfrentar os moinhos de vento… Ambos ancorados em suas pequenezas, como os homenzinhos-formigas do globaritarismo (Expressão do geógrafo Milton Santos à Revista Caros Amigos; N° 17, Agosto,1998) dominante no planeta Terra, nesse fim de milênio.
No entanto, eles se acompanharam e nisso transformaram suas pequenas loucuras em humanização, através da arte de Cervantes. Transcenderam sua Pequenes e ingressaram no sonho humano – a civilização partilhada. Através de sua experiência como acompanhante terapêutico no tratamento da doença mental e comendo o pão de Donald W. Winnicott (psicanalista do grupo independente inglês), Kleber faz as suas andanças. Faz acompanhamento, diz, e terapêutico. Acompanhando-o em suas andanças, pesquisei o significado de terapia e encontrei em Fédida (Fédida, Pierre -Clínica Psicanalítica: Estudos. São Paulo, Escuta, 1998.): “No Banquete de Platão, o médico Euxímaco define a medicina como a arte de se ocupar dos fenômenos do amor: é com efeito a medicina, diz ele, a ciência dos fenômenos do amor, próprios ao corpo… O médico cuida do Eros doente. Terapéia em grego é o cuidado exercido sobre Eros doente. O médico deve restabelecer o equilíbrio do corpo para que Eros doente pelo excesso de amor seja liberado desse excesso pelo amor que lhe traz o médico. Amor de médico é amor justo: estabelece, em contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente de Eros… ” (p.28).
Fédida, complementando, analisa o termo psicopatologia em Agamenon, do poeta Ésquilo, “onde se emprega a expressão ‘patei-matos’ para designar o que é pático, o que é paixão, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência (grifo meu). Em alemão, empregam-se os verbos erleben (presenciar) e erfahren (experimentar). ‘Psicopatologia’ literalmente quer dizer: um sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de ensinamento interno. Como paixão, torna-se uma prova e, como tal, sob a condição de que seja ‘ouvida’ (aspas minhas) por alguém, traz em si mesma o poder de cura. Isso coloca, imediatamente, a posição do terapeuta. Uma paixão não pode ensinar nada; pelo contrário, conduz à morte se não for ‘ouvida’ (acompanhada, digo eu) por aquele que está (estava, digo eu) fora; por aquele que é (era, digo eu) estrangeiro, por aquele que pode cuidar (grifo meu) dela” (p.29).
Continua ele (p.30): “… o que chamamos psicoterapia não é uma especialização da ‘terapéia’. Em que pese o prefixo psi, psique ou o acento colocado sobre o aspecto técnico da ‘terapéia’ em seu conjunto, ‘terapéia’ significa algo peculiar: desde que nos ocupemos do ser humano, tudo o que se passa entre ele e nós, nos mínimos detalhes, reveste uma significação de fragilidade. Exatamente o que implica o termo ‘terapéia’; em ‘terapéia’ há uma conotação de respeito pela divindade. Eu diria, a atenção delicada dada ao homem como se fosse um instrumento musical. Em função da posição que ocupamos, cada coisa que dizemos ou fazemos tem imediatamente uma incidência sobre a ‘matéria’ (aspas minhas) vivente que o homem doente nos oferece…” (p.31).
É assim: ao acompanhar Kleber, comi do seu pão e, para transformar a paixão em experiência, deixei-me acompanhar por Fédida. Espero que Kleber, eu e outros acompanhantes/acompanhados que a nós se juntem nessas paragens possam ajudar na transformação das paixões humanas em riqueza – a Loucura do Homem. Nós terapeutas, acompanhantes terapêuticos…

 

Fonte:

http://crpsp.org.br/a_acerv/jornal_crp/121/frames/fr_livros.htm

 

Artigo publicado no “Site AT” em 20/06/2002.

Supervisão em AT.

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