O Acompanhamento Terapêutico e Sua Relevância na Reforma Psiquiátrica

Resumo

O acompanhamento terapêutico (AT) é uma modalidade de tratamento clínico que tem como principal setting a rua, ou seja, visa realizar um trabalho de inserção do paciente aos meios sociais. A reforma psiquiátrica se refere a mudança de políticas públicas ligadas a saúde mental, buscando maior integração dos pacientes com a sociedade. O presente artigo busca entrar em contato com as definições e características do acompanhamento terapêutico e da Reforma psiquiátrica, para depois verificar o quanto a prática do AT pode auxiliar e se inserir no contexto da Reforma psiquiátrica.

Palavras Chave: Acompanhamento terapêutico; Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental.

Abstract

Therapeutic accompaniment is a way of clinical treatment that has as main setting the street, it intends to insert the pacient in the social environment. Psychiatric reform refers to the changing of public politics attached to mental health looking for a bigger interaction between the pacients and the society. The following article intends to get in touch with the definitions and characteristics of the therapeutic accompaniment and the psychiatric reform, and then check how much the practice of therapeutic accompaniment can be both inserted and usefull to the psychiatric reform context.

Key Words: Therapeutic accompaniment; Psychiatric Reform; mental health.

O Acompanhamento Terapêutico e Sua Relevância na Reforma Psiquiátrica

O presente artigo é o resultado de uma pesquisa bibliográfica realizada com o objetivo de revisar o que os autores que pesquisam sobre a área da reforma psiquiátrica e o trabalho de acompanhante terapêutico têm pensando nos últimos tempos. Acredito que a Reforma psiquiátrica necessita de uma rede de profissionais que possam auxiliar na sua estruturação e eficácia e a partir desse pensamento e do contato com o trabalho de acompanhante terapêutico senti a necessidade de saber mais sobre como essas duas áreas podem interagir. O acompanhante terapêutico, em sua clínica de rua, parece-me um interessante candidato a auxiliar de forma efetiva no trabalho objetivado pela presente reforma. O artigo abordará em seu contexto políticas e trabalhos que buscam uma melhora de qualidade no tratamento e na vida dos ditos “loucos”. Tanto a Reforma psiquiátrica quanto o trabalho do AT tem em sua base a procura por romper com a exclusão que é vivenciada por pacientes com transtornos mentais.

Acompanhamento Terapêutico

O acompanhamento terapêutico mostra-se como uma clínica “preocupada em romper com o isolamento dos sujeitos psicóticos, deficientes e outros que demandam de tratamento” (Carrozzo, 1997). Lins, Oliveira e Coutinho (2009) referem que o acompanhante terapêutico pode atuar em urgências e situações críticas em psiquiatria, com pacientes crônicos, esquizofrênicos e também em pacientes que apresentam transtorno bipolar do humor e risco de suicídio. O AT apresenta-se como importante também no trabalho com demências, psiquiatria infantil, autismo e deficiências mentais.

De acordo com Porto e Sereno (1991) é função do acompanhante terapêutico trabalhar na recolocação do sujeito em contato com a realidade urbana e de encontrar espaços onde a cidade incorpore o que o paciente tem. Deve-se buscar espaços em que se possibilite uma maior expressão e conexão do sujeito com a realidade social. Também se visa conectar o sujeito e sua organização psíquica á dinâmica social. Ribeiro (2009) aponta para a idéia de que o acompanhante deseja que algo seja experimentado, apostando em uma maior autonomia do paciente e que a circulação pelo mundo pode influenciar em uma movimentação psíquica.

Segundo Porto e Sereno (1991) o acompanhamento terapêutico se trata de um “guia de ocupação” (p. 27), ou seja, facilita o deslocamento do sujeito pelo espaço urbano. Segundo Mauer e Resnizky (1987) o acompanhante terapêutico tem como função reforçar as defesas de adaptação adequadas e ajudar a desenvolver mecanismos de defesa. Isso se desenvolverá ao logo da convivência com o paciente, mostrando formas diferentes de lidar com as situações.

De acordo com as autoras o acompanhante terapêutico também tem como função: ser continente, oferecer-se como modelo de identificação, perceber e reforçar a capacidade criativa do paciente, atuar como agente ressocializador e também servir como catalisador das relações familiares. Barreto (1999, in Palombini, 2004) refere que uma das funções do AT é o “estar junto, dando amparo e apoio” (p. 72). Segundo Cenamo et al. (1991) o acompanhante terapêutico serve também de ego auxiliar para o paciente, ou seja, visa-se um fortalecimento do ego do acompanhado e também busca-se ajudar no desenvolvimento de uma maior percepção e adequação a realidade.

Ribeiro (2009) refere que o trabalho do acompanhante terapêutico consiste em estar junto do paciente, realizando atividades nunca antes vivenciadas, superar limitações, desenvolver potencialidades e autonomia, servir de modelo e estar presente. A autora refere que os AT’s aproveitam qualquer lugar como espaço de tratamento.

Acredito que para que isso ocorra é fundamental que, inicialmente, o AT conheça também as rotinas, tanto em família quanto em sociedade do acompanhado. Isso se torna importante para que se obtenha um entendimento do que o sujeito está passando, vivenciando (Palombini, 2004). Fala-se muito do trabalho de rua que é realizado pelo acompanhante terapêutico, mas considero importante lembrar que muitas vezes a intervenção do AT se dá na casa do paciente. Segundo Lins et al. (2009) o trabalho residencial vem se tornando uma privilegiada área de reflexão em saúde coletiva. Palombini (2009, in Palombini, 2002) refere que em algumas situações se torna fundamental primeiro ocupar o quarto, a casa e os lugares psíquicos antes de explorar a geografia da cidade.

O acompanhante terapêutico realiza uma espécie de vizinhança com o paciente, ou seja, as vezes se coloca ao seu lado lhe dando tranqüilidade para a ação, as vezes se coloca a frente, para dar o pontapé inicial ou impedir o paciente de atos ameaçadores ou perigosos. Em outros momentos o AT dá um passo atrás para que o paciente experimente o seu jeito de estar no mundo (Porto e Sereno, 1991). È importante que o acompanhante terapêutico se mostre disponível para o paciente, sendo continente com aquilo que emergir durante o trabalho realizado (Palombini, 2004).

A Reforma Psiquiátrica

De acordo com Bezerra e Dimenstein (2009) os hospícios, na antiguidade, possuíam o objetivo de realizar um tratamento moral e um isolamento do mundo exterior dos pacientes com transtornos mentais. Tal tratamento se caracterizava por ser de “cunho moral, corretivo e reeducador” (p. 2). A partir da Segunda Guerra Mundial começaram a surgir críticas ao modelo dos Hospitais Psiquiátricos devido ao seu caráter ineficaz e segregador e se começou então a pensar em uma reforma (Bezerra e Dimenstein, 2009).

A reforma psiquiátrica teve início no Brasil no final da década de 70 e primeiramente tinha como objetivo a humanização do atendimento ao doente mental que residia nos hospitais psiquiátricos (Suiyama, Rolim e Colvero, 2007). Começaram a surgir denúncias referentes a maus tratos e abandono presentes nos manicômios (Vidal, Bandeira e Gontijo, 2008), o que contribuiu para se pensar em uma reforma.

Em 1987, durante a realização da Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, começou a ser problematizada a idéia de um modelo centrado no hospital psiquiátrico, que passou a ser percebido como ineficaz e oneroso, no qual existia forte violação dos direitos humanos (Suiyama et al., 2007). Nick e Oliveira (1998) referem que a partir dessa conferência ficou proibida a construção de novos hospitais psiquiátricos tradicionais e se objetivou a redução progressiva dos leitos que existem nos hospitais já existentes.

Surge a priorização do sistema extra-hospitalar e multiprofissional. A partir disso se passou a pensar em um esboço para um novo modelo assistencial, diferente do hospitalocêntrico e levando em conta questões referentes a cidadania de quem experiência o transtorno mental (Suiyama, et al., 2007). Para Vidal et al. (2008) a reforma psiquiátrica pode ser definida como uma “diminuição das admissões hospitalares pela provisão de serviços comunitários, a desospitalização, após preparação de pacientes internados por longos períodos e a criação e manutenção de uma rede de serviços na comunidade” (p. 72) para atender aos pacientes.

Silva (2005) refere que a reforma diz respeito a uma mudança nas políticas públicas ligadas a saúde mental. Para o autor surge um sentido de priorizar o atendimento comunitário do paciente psiquiátrico no lugar de internações em manicômios. Os manicômios, segundo Neto (2009), servem para barrar o que é considerado subversivo para a sociedade e ajudaram a segregar o que a pólis trata com indiferença. Segundo o autor, a Reforma psiquiátrica visa o contrário, ou seja, a inclusão do que é excluído.

Bezerra e Dimenstein (2009) referem que com as mudanças realizadas pela reforma foram criados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviços residenciais terapêuticos. Ocorreu uma redução dos leitos psiquiátricos e do tempo de internação, instalação de unidades psiquiátricas em Hospitais Gerais e também centros de convivência. Para as autoras se passou a buscar uma maior integração do paciente com sua família e com a sociedade.

Atualmente, a Reforma Psiquiátrica tem como meta resgatar a cidadania e a singularidade do sujeito. A desinstitucionalização psiquiátrica e a criação de serviços alternativos buscam possibilitar a reabilitação psicossocial das pessoas com transtorno mental (Suiyama et al., 2007). O Ministério da Saúde percebe a Reforma psiquiátrica como um conjunto de transformações referentes ao louco e a loucura e em torno das políticas públicas para lidar com a questão. Trata-se de um “processo político e social” (p. 63) complexo e que envolve diversas áreas. (in Dimenstein, 2009).

O Acompanhamento terapêutico associado a Reforma Psiquiátrica.

O cuidado do doente mental, a partir da reforma psiquiátrica, segundo Silva (2005), passa a ser feito através de redes sociais de suporte, ou seja, acaba sendo delegado aos profissionais, familiares e vizinhos dos mesmos. O autor problematiza tal idéia, ao levantar questionamentos, ao meu ver, bastante relevantes.

São colocados, por Silva, diversos empecilhos que podem surgir no desenvolvimento da prática da reforma psiquiátrica, como a dificuldade de controlar possíveis surtos do paciente e também da própria autonomia e inserção social desses indivíduos, que muitas vezes é bastante debilitada. Tais desafios de produzir autonomia e cidadania são vistos por Silva como dilemas presentes ao se oferecer atendimento na comunidade para uma população que tem como referencial de tratamento para a doença mental a internação e a utilização de medicação como alivio do sofrimento.

Ao pensar na Reforma psiquiátrica, Neto (2005) aponta para a necessidade da criação de condições para um não-assujeitamento dos pacientes nela envolvidos. Silva (2005) refere que se não for bem pensado, o processo de mudança pode acabar se tornando uma forma de abandono, não fornecendo ao paciente recursos técnicos suficientes na comunidade.

Silva (2005) aponta para a necessidade de se realizar o desenvolvimento de recursos terapêuticos que vão além da mediação e da escuta para que o atendimento em comunidade do doente mental possa se tornar mais efetivo. Lins et al. (2009) refere que surgiram hospitais-dia, CAPS e NAPS para suprir demandas oriundas da reforma, ou seja, modelos substitutivos para lidar com o “tratamento da loucura” (p. 3).

Com isso, surge a necessidade de cuidados extra-hospitalares para os pacientes. Cresce a demanda de uma prática do profissional de saúde mental que possibilite a criação de novos modos de experiência social, com o desenvolvimento de um espaço-temporal próprio para a condição psíquica da psicose. (Palombini, 2004).

Rolnick (1997) também enfatiza tal idéia, quando refere que com a abertura das portas dos manicômios, emerge a necessidade de se formarem equipes multiprofissionais, hospitais dia e ambulatórios. Torna-se então de grande relevância a construção de mediações entre esses territórios, a família e também a cidade.

A partir disso, pode se pensar na importância do trabalho do acompanhante terapêutico, como auxiliar na atuação dessas necessidades. “O AT circulará nas adjacências dos vários territórios da clínica de saúde mental, ocupando os espaços vazios que existem entre eles.” (Rolnick, 1997, p. 84).

A modalidade clínica do AT pode atuar no sentido de auxiliar no surgimento de acesso para os pacientes aos lugares públicos, levando em conta a comunidade em que estes se encontram inseridos (Palombini, 2004). Bezerra e Dimenstein (2009) apontam para a idéia de que o AT se configura como uma prática que circula tanto nas adjacências dos serviços de saúde quanto nos espaços sociais que o sujeito circular, não se tornando restrito a instituição.

Nesse contexto da Reforma psiquiátrica, acredito que o trabalho do acompanhante terapêutico ganha espaço e surge como grande fonte auxiliar para uma melhor efetivação dos objetivos propostos pela reforma. Segundo Palombini (2004), a possibilidade do AT acompanhar o sujeito na sua circulação pela cidade surge como a oportunidade de se realizar a transição entre a referência institucional e seu acesso aos lugares públicos (p. 24).

Ribeiro (2009) refere a partir da perspectiva da reforma psiquiátrica o tratamento de psicóticos passou a tirar proveito dos diversos “espaços, relações e situações para que o sujeito possa experimentar-se e incrementar suas maneiras de estar no mundo” (p. 8).

Segundo a autora o acompanhante terapêutico se torna o profissional ideal para trabalhar nesse contexto, pois é especialista na clínica de rua. Bezerra e Dimenstein (2009) referem que o acompanhamento terapêutico está em concordância com as diretrizes da reforma psiquiátrica, ou seja, no objetivo de promover a reinserção social do paciente com transtorno mental.

Conclusão

Pode-se perceber com o presente artigo que o acompanhamento terapêutico surge como um importante aliado da Reforma psiquiátrica.

Penso que os temas abordados no artigo mostram-se bastante relevantes para o campo da psicologia e da área da saúde no geral, pois abrem um campo de trabalho não muito explorado e, a meu ver, fundamental para um desenvolvimento em termos da Reforma Psiquiátrica e eficácia da mesma.

Percebe-se também no trabalho a ênfase dada pelos autores em relação à necessidade de uma prática multiprofissional que contribua para fornecer um maior apoio ao paciente que possui um transtorno mental.

O AT entra nesse contexto tornando-se uma ferramenta de apoio e suporte ao paciente que está vivenciando uma desinstitucionalização e tendo que se adaptar novamente ao convívio social.

Referências

Bezerra, C. G.; Dimenstein, M. (2009). Acompanhamento Terapêutico na proposta de alta-assistida implementada em hospital psiquiátrico: relato de uma experiência. Rio de Janeiro: Psicologia Clínica, 21, 1.

Carrozzo, N. (1997). Apresentação. In: A CASA: Equipe de acompanhamento terapêutico do hospital-dia (org.). São Paulo: EDUC.

Cenamo, A. C. V; Silva, A. L. B. P.; Barreto, K. D. (1991). O setting e as funções no acompanhamento terapêutico. In: A CASA: Equipe de acompanhamento terapêutico do hospital-dia (org.). A rua como espaço Clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta.

Dimenstein, M.; Severo, A. K.; Brito, M.; Pimenta, A. L.; Medeiros, V.; Bezerra, E. (2009). O apoio matricial em unidades de Saúde da Família: experimentado inovações em saúde mental. São Paulo: 18, 1.

Lins, C. E.; Oliveira, V. M.; Coutinho, M. F. (2009). Clínica ampliada em saúde mental: cuidar e suposição de saber no acompanhamento terapêutico. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde Coletiva, 14, 1.

Mauer, S. K; Resnizky, S. (1987). Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos. São Paulo: Papirus.

Neto, O. F. (2009). Uma ética para os novos desdobramentos da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Ágora: Estudos em teoria psicanalítica. 12, 1.

Nick, E.; Oliveira, S. B. (1998). Tendências políticas de saúde mental no Brasil. Rio de Janeiro: Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 47, 11.

Palombini, A. L.; et al. (2004). Acompanhamento terapêutico na rede pública: a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

Palombini, A. L. (2009). Utópicas cidades de nossas andanças: flânerie e amizade no acompanhamento terapêutico. Rio de Janeiro: Fractal: Revista de psicologia, 21, 2.

Porto, M.; Sereno, D. (1991). Sobre acompanhamento terapêutico. In: A CASA: Equipe de acompanhamento terapêutico do hospital-dia (org.). A rua como espaço Clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta.

Ribeiro, A. M. (2009). A idéia de referência: o acompanhamento terapêutico como paradigma de trabalho em um serviço de saúde mental. Natal: Estudos de psicologia, 14, 1.

Rolnick, S. (1997). Clínica nômade. In A CASA: Equipe de Acompanhantes terapêuticos. Crise e cidade: acompanhamento terapêutico (org.). São Paulo: EDUC.

Silva, M. B. B. (2005). Atenção psicossocial e gestão de populações: Sobre os discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da saúde mental. Rio de Janeiro: PHYSIS: Revista de saúde coletiva. 15, 1, 127-150.

Suiyama, R. C. B.; Rolim, M. A.; Colvero, L. A. (2007). Serviços residenciais terapêuticos em saúde mental: uma proposta que busca resgatar a subjetividade dos sujeitos? São Paulo: Saúde e Sociedade. 16, 3.

Vidal, C. E. L.; Bandeira, M.; Gontijo, E. D. (2008). Reforma psiquiátrica e serviços residenciais terapêuticos. Rio de Janeiro: Jornal Brasileiro de psiquiatria. 57, 1.

Autora: Mariana Saldanha da Fonseca – Aluna da Graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW.  Av. Bagé, 90/301. – Petrópolis – Porto Alegre – RS – CEP 90460-080. E-mail: [email protected]

Supervisão em AT.

Tags:

Comente aqui.