Mais do Que Amigo:Profissionais saem dos consultórios e acompanham doentes mentais em passeios e viagens

Autor:

  • Camilo Vannuchi

Perturbados por crises psíquicas insuportáveis e sentindo-se constantemente perseguidos por todos a sua volta, muitos doentes mentais permanecem meses trancados no quarto. Tachados frequentemente de loucos, vítimas de delicados distúrbios psicológicos, alguns não conseguem sair de casa desacompanhados e vivem amargurados por um extremo sentimento de dependência e solidão. Sozinhos, dificilmente vencem as amarras dessa espécie de exílio domiciliar. Mas podem encontrar o apoio necessário nos acompanhantes terapêuticos, profissionais treinados para conquistar a confiança do paciente e ajudá-lo a resgatar seu lugar na sociedade, exercendo uma modalidade pouco ortodoxa de terapia ambulante.
A psicóloga Débora Marinho é uma especialista que muitas vezes troca o consultório pela rua. Quem a vê em companhia de L. A. C. L. jura que são apenas bons amigos. Visitam parques públicos, tomam café na padaria e conversam sobre as próximas eleições. A psicóloga conheceu o paciente há pouco tempo, mas percebe sua sensibilidade. Ele tocava piano quando era jovem. Toda quarta-feira, é o apresentador do programa de rádio que A Casa transmite no circuito interno”, conta. Instituto A Casa é o nome de um conceituado hospital-dia de São Paulo, onde pacientes como L. A. C. L. exercem dinâmicas terapêuticas e atividades de integração em regime semi-aberto. Ao contrário dos manicômios, os hospitais-dia tratam sem internar.
Ao caminhar com Débora pelas ruas do parque da Aclimação, próximo ao instituto, o contador aposentado L. A. C. L. não demonstra nenhum distúrbio psíquico. Quem o cumprimenta não imagina que ele viveu quase oito anos em um hospital psiquiátrico de Itapira, no interior de São Paulo. Nos últimos três anos, o ex-contador arrumou até uma namorada entre as pacientes do hospital-dia e mudou-se com ela para um apartamento recém-alugado. Hoje, concilia análise pessoal em consultório com o acompanhamento. Por trás das grossas lentes dos seus óculos, o olhar penetrante de L. A. C. L. denuncia a perspicácia de um maestro. “Fiz aulas de piano durante seis anos. Sempre gostei dos clássicos, como Bach e Chopin, mas nunca joguei futebol. Tenho medo de quebrar a perna”, explica.
Interferência – Em abril de 2001, será realizado na PUC de São Paulo o primeiro encontro nacional de acompanhantes terapêuticos. Segundo o psiquiatra Nelson Carrozzo, diretor do Instituto A Casa, são cerca de 500 profissionais. “Quando introduzimos esse atendimento, em 1981, o acompanhante recebia o nome de ‘amigo qualificado’. Rejeitávamos a violência das internações em manicômios e tratávamos o doente sem excluí-lo de seu ambiente familiar”, conta. Considerado revolucionário no começo daquela década, o tratamento admitia até intervenções no círculo de convivência do paciente. “O psicótico representa a parte doente da família. Por isso, ela o mantém afastado do mundo exterior. O terapeuta deve interferir para resgatar um ambiente familiar harmônico, sem medo de dizer o que está errado”, completa o diretor.

Rodrigo Blum acompanha oito pacientes. “Há doentes de todo tipo. Eles não são apenas loucos como se pensa. Muitos são inteligentíssimos e bastante criativos. Habitam um universo paralelo, mas coerente, complexo e, muitas vezes, cativante”, avalia. Blum tem muitas histórias para contar. Em julho, ele acompanhou um estudante de Arquitetura em uma viagem a Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. “Tive de parar inúmeras vezes porque ele reclamava da velocidade. Durante cinco dias, não consegui convencê-lo a fazer um passeio de barco, tamanho o pavor que o mar lhe causava”, lembra.

Realidade e ficção misturam-se no dia-a-dia do profissional. Transitar pelos delírios dos pacientes é muito comum, como explica o psicólogo Primo Renan de Araújo. “Alguns não deixam você tocar em nenhum objeto da casa. Tive um paciente que trancava a porta para que eu não fosse embora”, diz. Araújo é acompanhante do Núcleo, outro hospital-dia de São Paulo. São ao todo oito psicólogos e dois terapeutas ocupacionais. “Cada um atende no máximo a três pacientes. Às vezes, incentivamos que um homem seja acompanhado por uma mulher e vice-versa. Mas alguns não conseguem se relacionar com pessoas do sexo oposto”, explica Araújo.

 

Fonte:

Revista Isto É, edição: 1617:

http://www.terra.com.br/istoe/1617/comportamento/1617mais_queamigo.htm

 

Artigo publicado no “Site AT” em 21/06/2002.

Supervisão em AT.

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