O Louco e a Rua: A Clínica em Movimento Mais Além das Fronteiras Institucionais

AS NAUS INVISÍVEIS DE NOSSO TEMPO

A nau de loucos é figura recorrente na literatura e na pintura renascentistas. Em sua História da Loucura, Michel Foucault (1978) revela o ponto de contato dessa imagem pictórica com a realidade então vigente, dando início a um traçado histórico que, embora conhecido, vale recapitular. “Stultifera Navis”, o primeiro capítulo da obra, narra como, ao longo do século XV, os barqueiros que aportavam a uma cidade freqüentemente eram encarregados de conduzir os loucos que perambulavam por suas ruas para portos distantes.

Esses, então, seguiam em viagem fluvial, quase sempre breve, até o primeiro porto seguinte, onde eram desembarcados pelos mesmos barqueiros que haviam prometido conduzi-los para longe. Logo estavam novamente na cidade de onde partiram. Ou eram levados, nessas embarcações, em viagens de peregrinação, em busca de cura (ibid.; p.9-10).

Nesse ir e vir sobre as águas marcavam-se os tempos de sua existência. Uma existência flutuante, à deriva, permeável, uma vez que o espaço em que eram segregados, longe de constituir-se como confinamento, era, justamente, um lugar de passagem, trânsito entre portos, cidades, margens. E a água, se, na prática, constituía-se numa estratégia de isolamento, representava também, simbolicamente, um elemento de purificação.

Essa flutuação, como condição social da loucura, diz da representação que o Renascimento traça da sua experiência, sob duas vertentes: na vertente trágica, pictórica, da qual a obra de Bosch é exemplo, trata-se, diz Foucault (ibid.; p.20-8), da expressão de forças da natureza, do inumano revelando a verdade e os mistérios do mundo; na vertente crítica, literária, com Erasmo, Pascal, Cervantes e outros, a loucura desenha-se como limiar da razão, como uma de suas formas, seu necessário avesso, prenhe, afinal, de secreta verdade.

O início da modernidade vai alterar radicalmente o status quo da loucura. É assim que o cogito cartesiano -“Penso, logo existo” – vem demarcar precisamente o que é da ordem da razão como campo onde o sujeito detém seus direitos à verdade, relegando a loucura à zona estrangeira da desrazão.

Definida como impossibilidade do pensamento, sem aproximação sequer com a experiência dos sonhos ou dos erros do sentido que constituem, segundo Descartes, o campo do ilusório, a loucura é banida do exercício da Razão e, assim, destituída de qualquer valor de verdade (ibid.; p.46-8). É um outro exílio, porém, o do mundo do trabalho, que vai marcar o procedimento, no século XVII, para com a loucura.

A sua dessacralização corresponde à perda do sentido místico da miséria, já não mais tomada como manifestação da vontade divina (ibid.; p.62). A nova ordem econômica a que o desenvolvimento industrial vem dar partida impõe a condenação da ociosidade e utiliza-se do internamento de toda espécie de miseráveis – loucos, pobres, desempregados, vagabundos – nos grandes asilos que outrora destinaram-se aos leprosos. No ambiente asilar, a imposição de trabalhos forçados têm um duplo objetivo, moral e econômico.

Nesse regime de força a que é submetido o conjunto dos internos, a figura do louco passa a se destacar pela absoluta impossibilidade de adesão às regras do trabalho e à vida de grupo (ibid.; p.78).

Os ideais iluministas do século XVIII vão condenar a grande internação como símbolo da opressão imposta pelo antigo regime. Promulga-se o retorno ao convívio social da maior parte da sua população: miseráveis, desempregados, ociosos de todos os gêneros, retornam à vida da cidade.

Apenas os loucos, sob alegação de periculosidade, permanecem confinados. Tornam-se herdeiros da exclusão que incide sobre os corpos (A Casa, 1991; p.19). Uma vez que a alienação mental apresenta-se como campo de convergência de experiências relacionadas à forma de organização da sexualidade – desatinados, devassos, pervertidos -, a conduta terapêutica proposta equivale à do controle moral e leva ao aprimoramento, no século seguinte, das terapêuticas que, à semelhança do que ocorria com os portadores de doenças venéreas, exercem-se “em favor do corpo mas às custas da carne” (Foucault, op.cit.; p.86).

O gesto emblemático de Phillipe Pinel, ordenando romper os grilhões que aprisionam o louco (sem, no entanto, libertá-lo do internamento), encontra-se na origem do nascimento de uma psiquiatria que propõe-se a uma certa humanização do tratamento da loucura. A medicina apresenta-se, então, com respeito à loucura, numa dupla função, cujo exercício acontece de forma conciliada: por um lado, ela apenas ajuda a por em movimento o decreto social do internamento, por outro, tenta definir as estruturas mais apuradas da responsabilidade e da capacidade dos indivíduos (ibid.; p.132).

No século XIX, a loucura vê-se subsumida à doença mental, como objeto da ciência positiva. Se a palavra do louco, na Idade Antiga, pôde ser tomada como mensagem divina, metabolizada pela experiência ritual do oráculo (A Casa, op.cit.; p.18), numa articulação entre loucura e verdade que persiste até o Renascimento, a designação do louco como doente mental vem suprimir o valor de sua palavra, impondo-lhe o silêncio dos pacientes (Cunha apud A Casa, op.cit.; p.20). A psicopatologia do século XIX toma suas medidas com referência a um homem normal, considerado como dado anterior a toda experiência da doença, o qual, no entanto, não passa de uma ficção. Diz Foucault (op.cit.; p.132):

“O louco não é reconhecido como tal pelo fato de a doença tê-lo afastado para as margens do normal, mas sim porque nossa cultura situou-o no ponto de encontro entre o decreto social do internamento e o conhecimento jurídico que discerne a capacidade dos sujeitos de direito”.

Uma ciência positiva das doenças mentais apenas tornou-se possível uma vez solidamente estabelecida essa síntese entre decreto social e conhecimento jurídico. Os grandes tratados psicopatológicos do século passado têm sua origem na observação clínica, sistemática e cuidadosa, dos pacientes internos dos asilos psiquiátricos, ou seja, homens e mulheres alvos desse decreto. E o psiquiatra é, então, aquele que trata o paciente e, ao mesmo tempo, protege a sociedade do mesmo, fazendo coexistir punição e tratamento.

A partir do século XVII, portanto, é o contexto asilar, social e juridicamente determinado, que dá nascimento e circunscreve o espaço da clínica, da pesquisa e da produção teórica no campo da psiquiatria e da psicopatologia. No último século, a psicanálise, embora tendo origem na ciência médica positivista do século XIX, ao instituir a escuta em substituição ao olhar como método clínico, transforma radicalmente a relação ética estabelecida com a loucura, resgatando a tradição do Renascimento, que a interpreta como modo de o sujeito dizer a verdade de seu desejo. Contudo, o internamento, compulsório e vitalício, segue sendo a prática corrente no tratamento da doença mental. Na década de cinqüenta, a aceleração industrial, somada ao surgimento dos primeiros psicofármacos, impulsiona uma transformação no locus de vida daquelas pessoas arroladas sob a classificação de doentes mentais. A vertente socio-política dessa transformação encontra expressão, nos anos sessenta, na antipsiquiatria inglesa e, um pouco mais tarde, no movimento antimanicomial italiano. Tal transformação vai processar-se de modo diverso e em momentos distintos, de acordo com a conjuntura política e social de cada país. Mas ela anuncia, de forma inapelável, o fim da instituição secular do manicômio.

No Brasil, foi no final dos anos oitenta, e como resultado da crescente organização e mobilização dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde mental, que se instituiu uma série de medidas em favor daquilo que se convencionou chamar de reforma psiquiátrica (Vasconcelos, 1996). Se isso ainda não é suficiente para subtrair o manicômio do panorama nacional, tem resultado no aumento crescente da oferta de serviços e práticas inovadoras de cuidado e assistência no campo da saúde mental, especialmente em municípios cujos governos locais mostram-se mais comprometidos com a proposta da reforma. Segue sendo um desafio, porém, a efetiva consolidação de uma rede de atenção à saúde mental, capaz de oferecer sustento, referências, possibilidades de tratamento e perspectivas de vida aos ditos doentes mentais, levando em conta o sujeito psíquico aí implicado, sem se deixar reduzir ao tratamento médico-hospitalar mas também sem apenas dissolver-se em práticas político-sociais.

A nova ordem econômica desenha outros mapas na realidade urbana contemporânea. A exclusão que vige quase prescinde de muros. O louco, o miserável, o ladrão, dividem a calçada com os bons cidadãos. Enquanto os primeiros vagueiam pela cidade, esses últimos percorrem trajetos calculados, apressam o passo, dirigem-se a encontros com hora e dia marcados.

Cada louco é, hoje, sua própria nau errante, deslizando invisível, à deriva, pelas ruas, sem porto de chegada. Um ambulatório, hospital-dia ou internação fazem, às vezes, de ponto de paragem, mas sem amarragem com a própria vida, que escoa contínua pelos instantes ou, imóvel, congela a nascente do tempo. Com que bóias, então, sustentar a sua livre navegação pelas vias da cidade? De que amarras é preciso desfazerem-se os profissionais para, com mãos livres, tecerem os fios que possam ancorá-lo, ainda que brevemente, à terra urbana? Respostas a essas questões não se formulam nem nos manuais de atendimento clínico nem nas diretrizes políticas de saúde mental. Elas inventam-se continuamente na prática cotidiana das equipes envolvidas no trabalho em saúde mental, diante do desafio que lhes lança cada um daqueles que busca, ou deixa de buscar, atendimento. Para que essas práticas microscópicas se entrelacem em rede, é necessário fomentá-las, expandi-las, e, sobretudo, desterritorializá-las, deslocá-las do âmbito restrito dos serviços de saúde mental, lançando-as no espaço aberto do urbano – o que não significa, como já ocorreu no passado, uma psiquiatrização do social, mas o assujeitamento, ao social, da psiquiatria e suas congêneres (Palombini, 1998; p.46). Trata-se de tarefa inadiável, se queremos que o louco ocupe lugar na cidade, não enquanto doente mental, mas em sua peculiar condição de sujeito.

ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS: LOUCOS NA RUA?
Se, cada vez mais, o tratamento da psicose deixa de circunscrever-se ao âmbito restrito do hospital, ganhando terreno no espaço urbano, torna-se necessária uma mudança na postura dos profissionais envolvidos, através do que Vasconcelos (1996) chamou de diversificação e extensão dos espaços de atuação de cada profissional e criação de regiões novas de saber, no cruzamento de diversas disciplinas. A prática do acompanhante terapêutico surge, nesse contexto, como uma dessas novas regiões a explorar: a possibilidade de acompanhar o psicótico ou neurótico grave na sua circulação pela cidade coloca-se como alternativa para a construção de um espaço transicional, no sentido que Winnicott concede ao termo, entre a referência institucional para esse sujeito e seu acesso à via e aos lugares públicos, criando maiores oportunidades para seu enlace ao tecido social.

Desde 1998, em parceria com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, vimos desenvolvendo um projeto de pesquisa e extensão com respeito à função de acompanhante terapêutico, visando uma avaliação das condições necessárias para o exercício de tal função e os efeitos do acompanhamento, tanto no que diz respeito ao processo de inserção do psicótico nos espaços públicos como à sua participação no espaço institucional de tratamento. Inicialmente participaram desse trabalho um grupo de seis alunos-pesquisadores que, na forma de projeto-piloto, desenvolveram atividade de acompanhante terapêutico junto aos serviços especializados de saúde mental da rede municipal de Porto Alegre. A Secretaria Municipal de Saúde, através da sua Assessoria de Planejamento em Saúde Mental, vem apoiando este projeto na perspectiva da criação do cargo de acompanhante terapêutico e da capacitação de recursos humanos da rede pública para o exercício sistemático da função no contexto da sua rede de serviços de saúde. Já nos primeiros seis meses de vigência do projeto, duas evidências se apresentavam: a primeira, relativa à grande receptividade que a proposta de acompanhamento terapêutico encontrou junto às equipes dos serviços contatados, indicativa do potencial de demanda de trabalho nesse campo; a segunda, de que o acompanhante terapêutico, por transitar nesse espaço intermediário entre a instituição e a rua, permitia uma aproximação extremamente rica, do ponto de vista clínico, com sujeitos que até então haviam-se mostrado inacessíveis ou pouco permeáveis às formas tradicionais de tratamento.

O livro A rua como espaço clínico (A Casa; p.30-1) define o acompanhamento terapêutico como uma prática de saídas (ou não, cabe acrescentar) pela cidade, acompanhando o sujeito na sua circulação social (às vezes restrita ao âmbito familiar), num esforço de criar marcas, de tecer fios que permitam enlaçá-lo, com sua estrutura psíquica peculiar, ao tecido social. Segundo Camargo (ibid.; p.52), o acompanhante terapêutico passa a integrar a vida cotidiana do cliente, por um número estabelecido de horas, de forma a criar um vínculo com ele, acompanhando-o em diferentes situações e contextos, funcionando como ponte entre o seu mundo interno e o mundo externo, ajudando-o a compor a sua história pessoal. É um intérprete ativo, que atua no mundo real, concreto e cotidiano do cliente. É também um investigador social que, operando no contexto de vida do cliente, pode conhecer e reconhecer recursos de que esse cliente dispõe, talentos, habilidades e estratégias de sobrevivência até então insuspeitadas, seja no âmbito da instituição de tratamento, seja no de sua família

Freqüentemente, na supervisão dos acompanhamentos realizados, concernentes ao projeto de pesquisa citado acima, os relatos dos integrantes do grupo evocavam, mais do que séries discursivas, encadeamento de ações, descrição de gestos e expressões, cenas, enredos. Com efeito, o acompanhamento terapêutico pode ser descrito como uma clínica em ato, onde o setting é a cidade: a rua, a praça, a casa, o bar. Uma clínica onde a palavra, mas também o corpo, os gestos, as atitudes contam. Na tarefa de relatar o trabalho, eram as cenas, produzidas no contexto do acompanhamento, o que se impunha. O grupo via-se continuamente banhado em imagens, de tal forma que um dos recursos de que se fez uso para a comunicação dos resultados desse projeto foi a produção de um vídeo onde cada um dos acompanhamentos realizados era representado por uma imagem e um som associados. Imagens e sons foram propostos numa certa referência à organização espacial e temporal, respectivamente, de cada um dos casos que foram objeto desse trabalho. Segue, abaixo, uma breve descrição dos casos em estudo, tomando como base os relatos semanais que faziam os acompanhantes terapêuticos e a subseqüente série de imagens e sons gerada em vídeo:

  1. J., 37 anos, vive encerrado, com sua mãe, em casa, quase sempre em sua cama, no quarto, olhar preso ao que mostra a tevê. Na sua casa não há relógios. O tempo se marca pelos ritmos biológicos, a batida do coração, o arfar da respiração, e pelo “plim plim” da tela da tevê. O acompanhamento foi solicitado com a intenção de trazer J. ao mundo, fora da concha materna, e reatar o vínculo com o serviço em que se atendia e ao qual deixou porque não queria ter médico e terapeuta ocupacional mas amigos. Laura, a acompanhante, por muitas manhãs assistiu Angélica na tevê com J. antes que ele pudesse olhá-la nos olhos, encetar uma conversa. Nunca saíram à rua. Apenas puderam chegar à sacada, observar o movimento e sonhar com o dia em que seria possível descer à calçada. Laura ouviu confissões de J., sempre sob a vigilância pesada e aflita de sua mãe. J. pouco a pouco deixou que Laura fizesse parte de seu cenário. Vindo de outro estado, intitulou seus encontros com Laura de “manhãs gaúchas”, como um programa de tv a que ele assistisse.
  2. E. estava prestes a ganhar nenê quando Paula iniciou o acompanhamento. Para ajudá-la a atravessar a maternidade sem crise, para que pudesse se construir como mãe. Ao folhear com Paula um livro sobre gravidez numa biblioteca pública, E. encantou-se com a foto de um feto aos nove meses de gestação, pronto para nascer: está inteirinho! falou. Riu quando Paula lhe disse que o seu bebê também estava inteirinho dentro da sua barriga. Na casa de E., Paula precisou mostrar à sua mãe que E. era uma, una, inteira, fora dela. Paula fez função de terceiro numa relação a três gerações: ao gestar um bebê, E. refazia seu lugar de filha, pela intervenção de Paula junto à sua mãe.
  3. O acompanhamento de L. foi proposto a Ernesto como uma última tentativa de resgatá-lo de um processo de esquizofrenização cada vez mais grave. Na casa de L., o pó se acumula sobre móveis amontoados. Sua família parece preferir vê-lo inerte como os objetos da casa. L., às vezes, tenta escapar do desejo de morte que o habita, e que lhe é continuamente inoculado. Valendo-se da presença de Ernesto, sai às ruas para transgredir as proibições familiares: cachorro-quente, sorvete, video-game, revista pornográfica, são objetos de um desejo furtivo, que não vigora. Logo a vontade esmorece e L. recolhe-se à sua cama, encolhe-se debaixo dos lençóis, evitando a presença viva de Ernesto. Mas, naquela morada de morte, Ernesto escuta o delírio de L., os queixumes de sua avó. Dirige a palavra à sua mãe e escuta sua desesperança. Com gestos, com palavras, com gana, Ernesto agita o pó que cobre aquela casa, aqueles corpos, ainda que seja para, impotente, ver em seguida o pó novamente depositar-se quieto sobre as mesmas superfícies.
  4. C. vive nas bordas. Às vezes literalmente, correndo riscos. Mariana, a acompanhante, funcionava como freio, espelho, continência, proteção. Era alvo, também, da sua agressão e impulsividade, que era a forma como C. interagia com as pessoas à sua volta, impedindo o estabelecimento de qualquer relação mais duradoura. Mariana segurou a barra de C., que passou a ter nela alguém em quem confiar, alguém a quem confiar-se, sabendo-a capaz de sustentar os limites que não se estabeleciam em sua casa. Mas Mariana sabe que isso é pouco ainda, se, no tratamento de C., a família não estiver constantemente posta em questão.
  5. Apesar da deficiência mental, Cs. circula com desenvoltura pelas ruas do centro da cidade, o que surpreendeu Eliane, sua acompanhante, chamada, justamente, para ajudá-lo a percorrer outros espaços que não os de tratamento. Logo emergem suas questões: nas andanças em meio à agitação de bancas de camelôs e pequenas lojas, Cs. simula uma potência da qual não dispõe. Conversa com vendedores desconhecidos como se tratasse de velhos amigos, gasta qualquer trocado comprando, não importa o quê, importa poder pagar e receber. Atos que não se interrompem, numa repetição indefinida que necessita do limite do outro para cessar. Eliane precisou ser esse limite, às vezes físico, para Cs., e também para sua mãe, sem limite na sua infinita disponibilidade para atender todas as solicitações do filho.
  6. Entre os seis acompanhamentos realizados, L. é um nome sem rosto, sem história, sem marcas. Diz de um vínculo que não chegou a se constituir, no grupo de pesquisa e entre acompanhante e acompanhada. Serve para se ter presente as dificuldades, os meandros desse trabalho, que exige, do acompanhante, lançar-se inteiro nele, entregar sua subjetividade e seu corpo à cena do outro, mas sabendo sair da cena no momento certo, refletindo sobre seu lugar na mesma. É preciso uma certa condição psíquica para poder cumprir com isso.

Os seis casos em estudo tiveram, portanto, cada um, sua representação através de uma imagem e um som: J., a cama próxima à tv ligada, num quarto fechado, som de coração batendo e arfar da respiração; E., o feto em gestação, coração e respiração finalizando no choro que marca o nascimento; L., um corpo revirando-se na cama, sobre os lençóis, acomodando-se na posição fetal, som metálico, desagradável, quase ruído; C., a beirada de um edifício, o movimento de lançar-se no vazio, um som que soa hipnótico; Cs., o comércio em movimento, sem ponto de parada, som de máquinas registradoras; L., um corpo sem rosto que passa, desfocado, sem nitidez, sem música.

Na montagem do vídeo, porém, essas seis cenas, cuja significação encerrava-se, cada uma, em si mesma, vieram a constituir um roteiro, um enredo que, embora não programado, diz de algo que é peculiar ao trabalho de acompanhante terapêutico, constituindo um certo percurso, bastante freqüente, nesse trabalho. Ocorre que o primeiro cenário do acompanhamento terapêutico é, muitas vezes, a casa, o quarto, a cama de alguém fechado em concha sobre si mesmo, embora, ao mesmo tempo, atravessado pelo discurso social de seu tempo, tomado pelos seus emblemas (a televisão é um exemplo; o comércio ambulante, talvez, outro). Essa concha reproduz o aconchego mortífero do ventre materno ao qual esse alguém parece manter-se umbilicalmente, imaginariamente, ligado, e a quem, portanto, é preciso propiciar um nascimento, ou seja, cortar o cordão, o que é experimentado com dor, com medo: a vontade é de retornar ao útero, à cama, ao quarto, pois a rua é vivida como risco, precipício ou vertigem, sem paragem, limite, descanso. Se o acompanhante não se der o tempo de penetrar nessa concha, experimentar seu estranho aconchego, desassossegar-se com seu vazio letal, ou se não for capaz de seguir seu acompanhado em vertigem pela rua até poder topar, em meio à parafernália urbana, com algo ao que ancorá-lo, ainda que por um momento apenas, se o acompanhante não for capaz de lançar-se nessa aventura, o trabalho não acontece, esse alguém passa, simplesmente, e nenhuma marca se deixa ficar, nem para um nem para outro, nem para acompanhante nem para acompanhado; nenhuma amarragem é feita com a vida da cidade, paisagem que se vislumbra ao final do vídeo, espaço aberto de um trabalho possível. Sobre o traçado da cidade, cada acompanhamento desenha um traçado próprio, descobre recantos inesperados, lugares mínimos, insignificantes, que se revelam ricos em possibilidades, e outros, alvos das melhores expectativas, que simplesmente se apagam.

Não é certo, porém, que o nexo que estabelecemos entre as imagens descritas acima, ou a relação de cada uma delas e seu som com os casos acompanhados, seja algo cuja visibilidade se estenda para além do grupo que trabalhou nesse projeto. O que permitiria ver, no vídeo produzido, mais do que uma série de imagens desconexas, quase como um sonho, que diz alguma coisa apenas para quem o sonhou?

Esse questionamento permite-nos introduzir uma questão com relação ao trabalho de acompanhante terapêutico, e que dá título a esta seção: acompanhantes terapêuticos: loucos na rua? Sair com loucos na rua, é loucura? É certo que é necessária alguma ousadia, abertura para o desconhecido, despreendimento, para realizar esse trabalho, sem falar no que já foi referido acima, da capacidade de emprestar sua subjetividade para compor uma paisagem que não é a sua própria mas a de um outro, sabendo sair dela no momento apropriado. O que gostaríamos de tomar como problema, porém, não é esse aspecto da particular posição psíquica necessária à realização do trabalho, mas sim a possibilidade de comunicá-lo, fazê-lo interagir com o conjunto de procedimentos terapêuticos que perfazem o cuidado à saúde mental daquele determinado sujeito.

No transcurso de nosso projeto, constatamos que uma tensão importante tende a se estabelecer entre um pólo e outro do trabalho, entre a instituição de tratamento e o acompanhante terapêutico, ainda que esse venha a compor a equipe de atendimento e ainda que se possa pensá-lo como agente da construção de um espaço transicional entre a referência institucional para o acompanhado e seu acesso à via e aos espaços públicos. Ocorre que, enquanto a instituição de tratamento sofre a pressão de uma demanda crescente de atendimento (e aqui estamo-nos referindo aos serviços públicos, que foram foco de nosso projeto), e, portanto, de uma política de extensão do seu trabalho, a atividade do acompanhante terapêutico, inversamente, incide com a máxima intensidade sobre um único sujeito. E, dado o campo aberto em que se situa o acompanhante terapêutico para a realização do acompanhamento, ele acaba por traçar o contorno daquilo que a instituição de atendimento dá conta: aquilo que a instituição não consegue olhar, não consegue se fazer encarregar, e que diz respeito ao contexto de vida (ou de morte) daquele sujeito a quem cabe acompanhar, vai emergir no trabalho do acompanhante, aparecendo, nesse trabalho, em relevo.

Têm-se, então, por um lado, essa tensão entre os dois pólos, o da máxima extensão, abrangendo o maior número de pessoas, portanto com uma intensidade menor, e o da intensidade máxima sobre um único indivíduo; por outro, esse bordeamento, esse contorno demarcando as competências da instituição em cada caso e acusando aquilo de que ela não pode ou não quer se encarregar. Sob a ótica das políticas públicas de saúde (mas também na perspectiva do menor custo que costuma gerir as instituições privadas), esse trabalho no singular, intenso, meticuloso, feito com vagar, é um contrasenso, uma loucura que se opõe ao arrazoado da lógica contábil instituída; além disso, ao expor a zona às vezes extensa do que a instituição deixa de cobrir no trabalho com determinado sujeito, e que apenas se descortina com a entrada em cena do acompanhante terapêutico, esse pode tornar-se uma peça incômoda na. engrenagem da assistência à saúde, tanto mais incômoda quanto mais enfronhado no acompanhamento estiver o acompanhante, e mais disposto a fazer valer aquilo que ele escuta, aquilo que ele percebe nesse trabalho, mais disposto a se fazer escutar pela instituição de tratamento.

Se a instituição, as equipes, não tiverem o mínimo de flexibilidade, de pensamento crítico com respeito ao próprio trabalho, o acompanhante terapêutico vai ser, sim, o louco que chega da rua, chega de fora, ameaçando a organização interna do serviço. Mas, se a equipe tiver a porosidade suficiente para deixar que o fora adentre, para permitir outras janelas em seu trabalho, para além do enquadramento clínico ou administrativo que lhe concerne, outras janelas com vista para a rua, nesse caso, o acompanhante terapêutico pode vir a cumprir um papel extremamente salutar à vida institucional daquele serviço, que vai poder buscar rearranjar-se a partir do retorno que o acompanhante terapêutico lhe dá do seu trabalho, a partir do tensionamento entre os dois pólos, o da extensão e o da intensão, que o caracterizam.

Por fim, a possibilidade do acompanhante terapêutico cumprir sua função, nos termos que se colocam aqui, parece-nos bastante condicionada a uma certa posição de fora, não institucionalizada, em que ele se encontra. O fato de que, em nosso projeto, o trabalho de acompanhante terapêutico foi realizado por estudantes universitários sem nenhum vínculo formal com o serviço em que vieram a atuar propiciou a autonomia e distanciamento crítico necessários para tomar os casos em atendimento da forma menos contaminada possível. Ao mesmo tempo, porém, é desejável que os governos municipais pensem em incluir a função de acompanhante terapêutico na organização dos seus serviços de saúde, o que efetivamente vem ocorrendo em algumas cidades no país e particularmente em nosso estado. Como manter, então, essa exterioridade como uma condição interessante, e talvez imprescindível, para a realização do trabalho? Pensamos que uma minimização dos efeitos negativos da institucionalização poderia ser alcançada evitando-se incluir os acompanhantes terapêuticos nas equipes específicas de cada serviço, organizando-os em um núcleo ou central que atenda às solicitações dos diferentes serviços da rede sem manter vínculo direto, exclusivo, com nenhum deles. Dessa forma, além da maior isenção para realização do trabalho, garantir-se-ia também a pertença ao grupo, possibilitando a troca de experiências, o debate em torno dos acompanhamentos realizados, a continência grupal tão necessária ao exercício de uma função em que a subjetividade encontra-se de tal forma lançada.

Referências Bibliograficas

  • A CASA, Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia (org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991, 247p.
  • CAMARGO, Elisa M. de C. “O acompanhante terapêutico e a clínica” em: A CASA, Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia (org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991, p.51-60.
  • FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978, 551p. Originalmente publicado em 1972.
  • PALOMBINI, Analice. “Psicopatologia na vida cotidiana” in: PELLICCIOLI et alli (orgs.). Cadernos de AT: uma clínica itinerante. Porto Alegre: Grupo de
  • Acompanhamento Terapêutico Circulação, 1998, p.45-51.
  • VASCONCELOS, Eduardo Mourão. “Desinstitucionalização e interdisciplinariedade em saúde mental”. In: Cadernos do IPUB, n.7, 1997. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria/ UFRJ.

Autora: Analice de Lima Palombini – Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da URFGS. E-mail: [email protected]. Publicado na Revista Educação, Subjetividade e Poder. Porto Alegre. Número 6, v. 6. p. 25-31. Agosto de 1999. Esse texto reúne o argumento de abertura e a participação em mesa-redonda no evento O louco e a rua: clínica em movimento, mas além das fronteiras institucionais, promovido pelo PPG em Psicologia Social e Institucional em 27 e 28 de janeiro de 1999.

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