Setting no Acompanhamento Terapêutico

Resumo: este trabalho tem como objetivo discorrer brevemente sobre o setting, ou enquadre, no Acompanhamento Terapêutico (AT) fazendo um leve paralelo com o que  pensado por Freud no início da Psicanálise.  Por fim, iniciar um pensamento em como essa prática terapêutica auxilia o paciente (acompanhado) a ressimbolizar locais e situações experienciadas.

 Palavras chave: acompanhamento terapêutico, setting, enquadre.

Setting no Acompanhamento Terapêutico

1. Breve retorno à teoria

Setting Freudiano

O setting, ou enquadre, psicanalítico foi criado por Freud a partir de uma ideia básica: procurar facilitar, da melhor maneira possível e com o mínimo de perturbação, o desenvolvimento de um processo: o desabrochar da “neurose de transferência” (Freud, 1914). Neste contexto, o setting psicanalítico poderia ser entendido como a estratégia clínica fundamental, delineada por Freud, para o enfrentamento das neuroses. Mais precisamente, esta estratégia consistiria em tornar fixos um conjunto de aspectos que, a princípio, seriam puramente variáveis – tais como: a freqüência das sessões a cada semana; a “atenção uniformemente flutuante”; a “regra psicanalítica fundamental”; a “reserva analítica”; a utilização do divã; dentre outros – , de modo a introduzir e manter na relação paciente-analista um determinado “contorno”, uma singular ordenação.

Assim, o setting pode ser conceituado como a soma dos procedimentos que buscam organizar normatizar e possibilitar o processo psicanalítico. Resultando em um grupo de orientações, atitudes e combinações, tanto as contidas no contrato analítico, bem como as que vão se (re)definindo ao longo da análise como: o número de sessões por semana, os dias e horários das sessões, os honorários, o plano de férias, etc.

O setting analítico costuma sofrer uma carga de pressão por parte de alguns pacientes (às vezes de certos analistas) no sentido de se fazerem necessárias sucessivas modificações em relação ao que foi inicialmente estabelecido e determinado.

Segundo Zimerman (2005), na prática analítica, além dos necessários arranjos pragmáticos, o setting visa às seguintes funções:

  1. Criar uma atmosfera de confiabilidade, de regularidade e de estabilidade.
  2. Estabelecer o aporte da realidade exterior, com suas inevitáveis provações e frustrações.
  3. Ajudar o paciente/cliente a definir a predominância do “princípio da realidade” sobre o “princípio do prazer”.
  4. Principalmente para pacientes demasiadamente regressivos, a regularidade do favorece que este paciente desenvolva as capacidade de diferenciação, separação, individuação e responsabilização.
  5. Pode-se dizer que o setting, por si mesmo, funciona como um importante fator terapêutico psicanalítico, pela criação de um espaço que possibilita o analisando trazer seus aspectos infantis no vínculo transferencial, assim repisando antigas experiências emocionais que na época foram mal-resolvidas, e, ao mesmo tempo, poder usar a sua parte adulta pra ajudar o crescimento daquelas partes infantis.

Breve história do Acompanhamento Terapêutico

O Acompanhamento Terapêutico surgiu na década de 1960, da prática psiquiátrica com pacientes graves hospitalizados, como uma alternativa para a conduta terapêutica até então utilizada nas instituições. Desde sua origem, o Acompanhamento Terapêutico busca uma forma de reintroduzir o paciente recluso no meio social além da instituição. Atualmente, o Acompanhamento Terapêutico é recomendado não só a pacientes institucionalizados, mas também os que apresentem um maior comprometimento em lidar de forma autônoma com seu cotidiano e afazeres diários.

Para chegar a essa autonomia, o paciente deve caminhar pelas diferentes atividades costumeiras, como por exemplo, escrever uma lista de compras, preparar-se para uma entrevista de emprego. Em todas essas tarefas o acompanhante terapêutico poderá ser de grande ajuda, tentando aliviar o paciente as eventuais angústias que possam ser geradas por essas atividades corriqueiras.

2. Setting no Acompanhamento Terapêutico

Como o Acompanhamento Terapêutico é uma prática recente, a necessidade de (rea)firmar-se enquanto teoria e prática faz-se necessária a todo momento, ainda mais por constituir um grupo de atividades não muito reconhecidas como compatíveis com a terapia. Atividades estas como: ir ao cinema, jogar vídeo games, fazer passeios e etc.

Essa possibilidade do acompanhante terapêutico vivenciar com o paciente as atividades diárias deste e seus afazeres, exemplifica de uma das diferenças mais marcantes entre o Acompanhamento Terapêutico e a terapia de consultório. A possível alteração de ambiente em que o acompanhamento é realizado demonstra a flexibilidade do setting, deixando-o móvel, adaptável, ou seja, o atendimento pode ser realizado nos ambientes frequentados diariamente pelo paciente ou mesmo onde, em caso de pacientes institucionalizados, internados temporariamente ou pessoas que não conseguem sair de casa, onde o paciente se encontra.

Embora o Acompanhamento Terapêutico tenha suas peculiaridades, vale ressaltar que as premissas delineadas por Freud (1914), no que diz respeito à clínica feita em consultório, ainda são válidas.

A teoria e a prática do Acompanhamento Terapêutico visam uma maior autonomia, buscando a ressocialização do sujeito, isso se dá, pois, a origem do pensamento clínico no Acompanhamento Terapêutico está nas imitações encontradas nas oportunidades terapêuticas que as instituições e os tratamentos psiquiátricos/psicológicos podem conferir ao sujeito.

Alcançar autonomia e assim tornar-se independente é um processo lendo e árduo, consistindo em etapas diárias de aprendizado e integração interna do universo psíquico do indivíduo para que haja o enfrentamento, mais adequado possível, de eventuais frustrações e dificuldades vivenciadas.

Está nessa pluralidade, nesta construção e busca de uma autonomia a necessidade de mobilidade do setting no Acompanhamento Terapêutico. O acompanhado, geralmente, está enormemente psiquicamente comprometido, não conseguindo realizar suas atividades mais básicas (trabalhar, estudar, tomar banho, organizar-se, etc) e desta forma o acompanhante terapêutico pensará, juntamente com o paciente, maneiras de realizar os afazeres necessários. Mesmo com essa mobilidade do setting, os pontos levantados anteriormente neste trabalho acerca do mesmo, ainda são válidas e necessárias, contudo, é primordial adaptar alguns pontos.

O enquadre no Acompanhamento Terapêutico deve conferir segurança e proteção à dupla (acompanhado e acompanhante terapêutico) da mesma maneira que um terapeuta/psicanalista o faz no consultório. Para buscar tanto a proteção como a segurança – tanto física como psíquica da dupla – e tornar o atendimento terapêutico, não se pode negligenciar a importância do contrato terapêutico.

O contrato terapêutico atuará como um primeiro orientador da dupla, ajustando, assim, a regularidade das sessões, o valor a ser pago e frequência do pagamento (semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente), etc.

Além desses aspectos de ordem prática, o setting do Acompanhamento Terapêutico, mesmo móvel e variável, deve manter a confiança e o vínculo construído ao longo dos atendimentos, para isso, o terapeuta deve manter-se extremamente atento para sustentar, ou tentar sustentar, em cada novo espaço, as particularidades terapêuticas dos atendimentos.

Neste ponto, é importante realçar a importância da análise, do próprio acompanhante, bem como, a supervisão, atividades que devem ser periódicas e continuarem por período considerável, para que o acompanhante consiga manter a distância necessária do paciente atendido. Afinal, é o acompanhante terapêutico a “peça” mais constante no setting do Acompanhamento Terapêutico.

Uma das vantagens do enquadre móvel é poder ajudar o paciente a “ressignificar” o ambiente. Por exemplo: uma criança que não consegue ficar na escola e acaba agindo de forma inapropriada, como bater em seus colegas, auto-agressão, chorar exageradamente, etc. O acompanhante terapêutico estará com ela na escola no momento em que estes comportamentos surgirem podendo, assim, observar, mais cuidadosamente, os gatilhos dos comportamentos inadequados, dessa forma, e ajudar, em um primeiro momento, a conter esses comportamentos, mas também buscará compreender e acolher o sentimento, o afeto desencadeador, por assim dizer, das ações indesejadas para, no futuro, trabalhar esse ponto, além de poder orientar profissionais da escola e familiares em como agirem caso esses comportamentos se repitam.

São nesses momentos tão desconfortáveis, não só para o paciente, mas também para todos à sua, volta que o acompanhante terapêutico pode “orientar o espaço social” (Kuras De Mauer e Resnizky, 2008): “O paciente perturbado psiquicamente se encontra perdido em um espaço social que não domina. Sofre importante desconexão do mundo que o rodeia. Na medida que o tratamento permita,, o acompanhante terá como função atenuar esta distância facilitando-lhe o  reencontro, em forma paulatina e dosificada, com algo que perdeu.”

O acompanhante terapêutico funciona, por assim dizer, como uma interface entre o mundo externo e o mundo interno do paciente, tentando integrar de maneira menos dolorosa possível, para ao paciente a sua realidade psíquica e a realidade externa. Estabelecendo, assim, o aporte da realidade exterior, com suas inevitáveis provações e frustrações auxiliando o paciente a definir a predominância do “princípio da realidade” sobre o “princípio do prazer”, assim como um terapeuta/psicanalisa auxilia seus pacientes no consultório.

A mobilidade do setting exigirá do acompanhante terapêutico uma maior disponibilidade para o inesperado, o novo, uma vez que pacientes graves são mais instáveis podendo, por um período longo de tempo após o início do acompanhamento, ainda apresentar comportamentos inadequados.

Embora a possibilidade de passeios e atividades ao ar livre seja real, não se pode acelerar um passeio com o paciente quanto este está ainda em um estado assinalado de fragilidade psíquica.

Antes de sair da instituição ou da casa/lugar onde se encontra o paciente, o acompanhante terapêutico deve favorecer o desenvolvimento das capacidades de diferenciação, separação, individuação e responsabilização do paciente, para que este consiga, minimamente, suportar transitar pela.

Da mesma forma que o setting controlado do consultório pode ser terapêutico para o paciente, a possibilidade de um setting a céu aberto também o é, pois o paciente percebe, ao longo do tempo, que lugares e atividades, antes dolorosas e desorganizadoras, podem ser tornar cotidianas e até mesmo prazerosas. Encontra-se aí a ressignificação.

Considerações finais

Freud pensou o setting como um instrumento na análise de neuróticos, assim como todo o cerne da teoria psicanalítica, contudo, vale lembrar, o Acompanhamento Terapêutico nasce na clínica das psicoses.

As teorias surgem quando os pressupostos teóricos não são mais capazes de abarcar as necessidades vigentes, desta maneira, uma revisão faz-se necessária. Revisar, repensar não significa anular ou mesmo negar os pressupostos teóricos anteriores. A teoria do Acompanhamento Terapêutico só foi possível graças ao desenvolvimento da teoria Freudiana e de todos que vieram posteriormente a ele, repensando e contribuindo para a melhora daqueles com maior sofrimento psíquico.

É na busca do alívio desse sofrimento que o acompanhante terapêutico trabalha, auxiliando um existir menos penoso e validar a possibilidade de mudança de pacientes anteriormente condenados a institucionalização, como psicóticos e demais pacientes graves.

O setting móvel permite exatamente isso, ir onde consultório não alcança, ou seja, buscar aqueles que não aguentam, não sustentam o gabinete, o settin fechado, mas que podem, e são, grandemente beneficiados por intervenções no âmbito das psicologias.

Referências Bibliográficas

  • FREUD, Sigmund; Ensaios de Metapsicologia, in FREUD (1914-1916) Ensaios de Metapsicologia e outros textos, Companhia das Letras, 2010.
  • KURES DE MAUER, Susana e RESNIKZY, Silvya; Capítulo II, Abordagens Múltiplas. O lugar do acompanhante terapêutico, página 21 a 44, in Acompanhantes Terapêuticos – Atualizações teórico-clínica (2008), Letra Viva.
  • ZIMERMAN, David E., in Psicanálise em perguntas e respostas (2005), página 207, Artmed.

Autora

Renata Luder Antunes de Oliveira – Graduanda em Psicologia na Universidade de São Paulo. Acompanhante terapêutica formada em dezembro de 2010 pelo Curso ContATo – SP. Telefone: (11) 8205-3467. E-mail: [email protected]

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