O Acompanhamento Terapêutico no Cotidiano da Vida – Ou Memória da Loucura: E Agora José?

Autora:

  • Mirian Pantoja de Bustamante – Médica psiquiatra e psicoterapeuta, especializada em Psiquiatria pela UFRJ, responsável pela implantação da Casa de Convivência da Clínica Botafogo na década de 90.

Para começar, uma explicação sobre um título tão rebuscado: a exposição Memória da Loucura que orgulhosamente vejo acolhida no nosso Centro de Arte de Nova Friburgo, após temporada no Paço Imperial no Rio de Janeiro, apresenta-nos “personagens, documentos, fotos e cenários da trajetória da assistência à saúde mental no país desde a criação do Hospício de Pedro II, em 1852, até os dias de hoje (conforme texto do convite para a referida mostra).
A belíssima mostra Memória da Loucura nos coloca frente a tudo aquilo que precisamos repensar, por vezes abolir, por vezes melhorar, na assistência às pessoas acometidas por um transtorno mental.

Estamos exatamente no ponto do “E agora, José?”, o que vamos fazer? Como vamos cuidar deste indivíduo que nos procura com sofrimentos cada vez mais complexos, a quem o modelo hospitalocêntrico – a internação de caráter permanente e asilar – não conseguiu ajudar?
É aí que entra em cena, como mediador e facilitador, o Acompanhante Terapêutico. Segundo Luiz Cezar de Oliveira Inem em sua monografia O Dispositivo do Acompanhamento Terapêutico na Clínica da Psicose, “As primeiras comunidades terapêuticas no Brasil se formaram no final de década de 60, com o intuito de oferecer uma alternativa à psiquiatria clássica praticada até então. O primeiro registro de acompanhamento terapêutico realizado no Brasil foi em uma comunidade terapêutica em Porto Alegre (Clínica Pinel de Porto Alegre) aonde os acompanhantes terapêuticos que até então eram chamados de atendentes psiquiátricos, se caracterizavam por serem pessoas que não possuíam uma formação profissional específica, pertencentes ao censo comum, que se disponibilizavam a sair com os pacientes internados, pelas ruas da cidade, afim de fazer passeios ou acompanhá-los até sua residência, para uma visita antes da alta. Este atendente era visto como alguém que era capaz de mediar o contato entre o paciente e a sociedade”.

Atendente psiquiátrico, amigo qualificado ou acompanhante terapêutico. Vários têm sido os nomes dados a este indivíduo que tem por função o compartilhamento, por vezes cotidiano, da aventura do restabelecimento dos vínculos do paciente com sua família, com o trabalho, com o mundo, enfim.

O acompanhante terapêutico lida com o paciente em crise, servindo-lhe de ponte para a sua própria saúde quando o acompanha a um passeio, o que lhe restaura a autoconfiança; ou quando joga um jogo com ele, ajudando-lhe a recuperar a autodisciplina. A certeza de que a autoconfiança e a autodisciplina estão em algum lugar dentro daquele paciente dá ao acompanhante a determinação necessária para estimular o paciente a descobri-las dentro de si. A especificidade do seu trabalho o coloca numa posição privilegiada no sentido de estar inserido na cena dramática onde ocorrem grandes impasses, tanto para o paciente quanto para seu círculo de relacionamentos. Escutá-los, acolhê-los e mediar uma relação possível é o grande desafio. E o acompanhamento terapêutico certamente tem uma contribuição a dar na superação deste desafio, lado a lado com os outros profissionais da saúde mental.

O mais importante na luta anti-manicomial, tão bem representada pela Memória da Loucura, é a transformação da sociedade. Os não loucos (isto existe?) não sabem o quanto podem se beneficiar com a aceitação do diferente, representado pelo que grosseiramente chamamos de loucos. O acompanhante terapêutico é justamente aquele que se ocupa de mediar esta relação, tornando-a fonte de mútuo crescimento e prazer.

Há menos de um século, como bem comprovam os documentos em exposição no Centro de Arte, loucura era caso de polícia. Em quase todos os boletins de internação expostos na mostra, a procedência dos pacientes é a mesma: a delegacia de polícia. Significa dizer que, há menos de cem anos, gênios como o Bispo do Rosário e Lima Barreto, recebiam da nossa sociedade o mesmo tratamento reservado aos transgressores da lei. Infelizmente esta situação não é tão diferente hoje em dia. Justamente porque a mudança fundamental (a social) ainda não aconteceu. Não admira não ter acontecido. Na verdade é uma transformação muito mais difícil. Mas mudanças verdadeiras não acontecerão se cuidarmos apenas de um lado da questão.

O sofredor de transtornos mentais mudou graças a muitas conquistas, entre elas, o advento das medicações psiquiátricas e o conhecimento mais profundo das manifestações mentais, da psicologia humana.
Agora a bola está no pé da sociedade.

É necessário acolher, incluir o portador de transtorno mental como parte integrante e atuante no contexto social, como cidadãos de fato e de direito.

 

Fonte:

http://www.netflash.com.br/apnf/acompanhamentoter.htm

 

Artigo publicado no “Site AT” em 30/07/2003.

Supervisão em AT.

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