Psicose e Acompanhamento Terapêutico (AT)

“Longe de ser a loucura o fato contingente das fragilidades de um organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência. longe de ser para a liberdade ‘um insulto’, ela é sua mais fiel companheira, ele segue seu movimento como uma sombra. e o ser do homem, não somente não pode ser compreendido sem a loucura, mas também ele não seria o ser do homem se não trouxesse nele a loucura, como limite de sua liberdade.” (J. LACAN – “A Causalidade Psíquica”).

Talvez não exista local mais fértil para o contato com a dimensão da loucura que um hospital psiquiátrico. Também é difícil não encontrar no modo como tradicionalmente são abordados os doentes mentais – identificação de sintomas psicopatológicos e tentativa de cura dos mesmos pela sua anulação medicamentosa – uma certa institucionalização de modos desarazoados de ser causada por uma certa homogeneização entre os conceitos de psicose e loucura.

E, me parece pertinente considerar que boa parte das razões para a violência, o abandono e a exclusão social que historicamente sofrem os ditos doentes mentais reside nestas observações. Desta forma, considerei importante que conversássemos sobre algumas contribuições que, ao meu ver, a Psicanálise – desde Freud, Lacan e Calligaris – oferece a respeito do tema.

Esta aula consistiu, portanto, em abordar o tema da “estruturação do sujeito psicótico” e esclarecer alguns pontos a respeito “fenômeno psicótico” para que o grupo de alunos possa ter algumas referências teóricas que possam instrumentalizar suas experiências práticas. Segue abaixo algumas das proposições apresentadas.

Freud e a psicose

Em l895, o jovem médico Sigmund Freud em parceria com seu colega Dr. Josef Breuer publicou seus “Estudos sobre a Histeria” sem saber que este seria o marco inicial para a descoberta da “talking cure”, a Psicanálise.

É a partir do caso daquela que se tornou sua mais conhecida paciente, a Srta. Ana O., que o jovem Freud começa a se perguntar a respeito de alguns fenômenos psíquicos que segundo ele teriam relação direta com situações traumáticas vividas e estariam no cerne das neuroses.

Porém, uma série de fenômenos delirantes e alucinatórios que acometiam sua paciente em um “segundo estado de consciência”, do qual ela não tinha conhecimento quando se encontrava em seu “estado normal de consciência”, levaram-no a se perguntar se uma histeria crônica como aquela poderia ou não terminar numa psicose.

Passou, então, a considerar uma “psicose histérica” decorrente de uma invasão total da consciência por aquele “segundo estado”; observação que lhe possibilitaria mais tarde, em 1919 a publicação de sua conceitualização do inconsciente [1].

Mais tarde, em 1911, Freud publica o “Caso Schreber”, trabalho no qual analisa minuciosamente a Paranóia. Aqui encontramos a afirmação de que os paranóicos possuem a capacidade de revelar de forma distorcida exatamente aquelas coisas que outros neuróticos mantém em segredo, dando ênfase à existência de um sistema delirante.

Já em 1924, Freud publica dois textos esclarecedores sobre a questão das psicoses: “Neurose e Psicose” e “A perda da realidade na neurose e na psicose”. É importante observar que neste momento a teoria psicanalítica já havia sofrido sensíveis avanços como a sedimentação da teoria da sexualidade infantil e o estabelecimento da segunda tópica (Id, Ego e Superego).

Nestes trabalhos encontramos, dentre outras as seguintes observações:

  • a psicose consiste num distúrbio nas relações entre o ego (instância consciente de nosso aparelho psíquico em contato com o mundo externo) e o meio externo;
  • há a superação do ego por mecanismos inconscientes que o arrancam da realidade;
  • seu início consiste num desejo insatisfeito, numa frustração;
  • há uma negação da realidade, porém esta força à mente;
  • delírios (julgamentos distorcidos da realidade) e alucinações (percepções distorcidas) têm a função de servir a uma tentativa de remodelação da realidade, de modo a substituí-la por outra de acordo com os desejos.

Visto isto, podemos observar que os trabalhos de Freud a respeito das psicoses possibilitaram avanços pertinentes ao mecanismo psíquico implicado nas mesmas. Porém, o próprio Freud considerou a Psicanálise não indicada a sujeitos acometidos por algum sofrimento psicótico devido sua incapacidade de contato com a realidade objetiva e pelo não reconhecimento de um outro a quem transferir suas angústias.

Lacan e a Psicose

Jacques Lacan (1901-1984), médico de origem francesa, embrenhou-se do conhecimento surrealista e estruturalista de sua época e agregou-os a uma releitura de Freud.

Em sua tese de doutoramento (1932), ocupou-se de um caso de paranóia de autopunição, o “Caso Aimée”, o que o colocou diante da obra freudiana. Tratava-se de um caso de uma mulher caída no anonimato da psiquiatria asilar (Hospital Sainte-Anne).

Nesta ocasião escreveu que o isolamento moral cruel imposto ao indivíduo moderno poderia ser a fonte para seus conflitos internos e já se preocupava com a possibilidade de benefícios para sujeitos com tendências autopunitivas em comunidades regradas como as religiosas e militares. Era clara sua preocupação com a possibilidade de cura para estes sujeitos.

Em 1955-56, Lacan resolvera propor uma estrutura subjetiva de ordem psicótica em seu terceiro seminário: “As estruturas freudianas das psicoses”. Retomara o caso Schreber de Freud através de sua topologia (Real, Simbólico e Imaginário).

Escreveu que tudo o que havia sido recusado na ordem simbólica, no caso da psicose, retornava no real. Parafraseou Freud (“Sobre o mecanismo da paranóia”), quando este afirmou que aquilo que havia sido internamente abolido retornava desde fora. E, para ele (Lacan), o que retorna desde fora é a representação da lei, o que chama de função paterna.

Estava estabelecido o conceito fundamental que possibilitou à psicanálise a abordagem às psicoses: a foraclusão. Nesta oportunidade, Lacan, dentre outras proposições, definiu o fenômeno psicótico como uma significação enorme que emerge na realidade (real) e que para o sujeito não se parece com nada, pois jamais entrou no sistema da simbolização (simbólico) e haveria de se traduzir em alucinações e delírios (imaginário).

Podemos pensar que é por isto que os psicóticos estão certos de que suas alucinações ou pensamentos são verdadeiros e que lhe ocorrem em tempo real. Na medida em que não possuem referências em sua pré-história de vida que lhe permitam suportar determinadas injunções, não podem incluir determinadas situações em seu esquema de representações psíquicas, recorrendo a formações delirantes ou alucinatórias como tentativas paralelas de simbolização.

Exemplificando:
– Um sujeito que foi abandonado por seu pai ao nascer e que têm sua mãe impossibilitada de referir a este ou a si mesma o a um outro o papel limitador, pode alucinar vozes que lhe comandam ou castigam, o que consistiria numa PARANÓIA.

Por outro lado, aquele que possui uma representação paterna frágil, que não permite uma intermediação do olhar do outro sobre o seu corpo, pode recorrer a alucinações de ordem visuais ou sinestésica e apresentar uma dissociação em sua personalidade, o que consistiria em um caso de ESQUIZOFRENIA.

Ou ainda, um sujeito que não encontra uma referência consistente para algum desamparo, ficaria abandonado ao que o outro lhe pede (DEPRESSÃO) buscaria escapar de tal pedido produzindo um discurso verborrágico (MANIA).[2]

A Clínica das psicoses

Em 1989, o psicanalista Contardo Calligaris publica seus seminários (realizados em Porto Alegre) sobre os estudos de Lacan a respeito das psicoses e vem avançar ainda mais em alguns pontos cegos sobre esta questão. A noção de estrutura psíquica em psicanálise diz respeito a uma constelação defensiva a partir da qual o sujeito irá procurar responder a pergunta: “o que o outro quer de mim?”.

Esta pergunta já começa a ser respondida nos primeiros anos de vida para mais adiante – na vida adulta – tomar a versão de um saber a respeito da demanda do Outro (representação do social, dos códigos que regulam as relações intersubjetivas).

Para Calligaris, a estrutura de defesa nos sujeitos psicóticos não passa pela referência a um sujeito suposto ao saber (não há o reconhecimento da existência de algum que saiba sobre a demanda do Outro).

O que o psicótico vai fazer é percorrer um saber sem sujeito, no qual ele tenta encontrar a resposta. Isto diz respeito a uma errância psíquica e física, a qual caracterizaria uma psicose fora da crise.

Podemos tomar como exemplo os andarilhos das grandes cidades ou mesmo observar a riqueza de informações que alguns psicóticos encadeiam em um discurso que percorre várias direções aparentemente desconexas.

O que caracteriza uma crise psicótica seria a impossibilidade de encontrar neste “percurso errante” pelo saber alguma resposta. Então, há uma ameaça de destruição da subjetividade para qual o sujeito tenta uma amarração com sua própria história a partir de um saber que advém do real – que fala para si de fora.

É assim que seu interlocutor muitas vezes é tomado no conteúdo de um delírio ou alucinação como um personagem dos mesmos.

Observação sobre a psicose nas crianças

Sabemos que o constante exercício de simbolização, de apreensão e representação do mundo é contingência própria da infância. Sendo assim, as crianças podem apresentar episódios psicóticos devido à fragilidade, insuficiência ou excessiva rigidez dos adultos que intermedeiam tal exercício.

Uma vez que a criança está em desenvolvimento é possível reverter uma estruturação psicótica em construção através de intervenções terapêuticas. Em adultos isto não seria possível uma vez que já ultrapassaram esta etapa e tem que se reportar ao mundo com uma falha aberta em sua constituição psíquica.

Considerações finais

Este breve estudo sobre algumas contribuições da psicanálise a respeito das psicoses possibilita alguns avanços a respeito de sua compreensão e tratamento. Seria de bom grado que estas observações pudessem esclarecer sobre a diferença entre risco e periculosidade, já que o que os psicóticos em crise não possuem uma representação da lei que possa protegê-los de suas angústias frente à ameaça de destruição de seu mundo.

Isto esclareceria boa parte do fracasso dos tratamentos morais e dos persistentes confinamentos a que são submetidos em instituições psiquiátricas. Por outro lado, faz-se necessária a internação em momentos em que tal ameaça se faz impossível de ser evitada pela intermediação através da palavra.

Em suma, o que a psicanálise propõe é uma escuta do sujeito psicótico em sua busca por um saber paralelo para a organização do mundo. Trata-se de percorrer junto com um sujeito o caminho que seu delírio propõe e encontrar com ele algo próximo de uma “amarra” de sentido para o que lhe interroga desde fora. Neste sentido, a loucura e a capacidade imaginativa implicada em sua essência viria a contribuir.

Neste sentido, é preciso considerar práticas como o Acompanhamento Terapêutico [3], que possibilita trilhar um caminho pelo social, pertinente à política de abertura dos manicômios vigente na atual proposta de Saúde Mental.

No entanto, não há eficácia para tal proposta se sua prática não estiver atenta para a particularidade da história de cada um no que se refere a seus limites e possibilidades a respeito de si, de seu corpo, do outro e do “corpo social”. Ignorar tais observações pode fazer de algumas intervenções ameaçadoras e até mesmo alienantes.

As dificuldades e angústias que o trato cotidiano com o sofrimento psicótico coloca aos profissionais de saúde mental exige um trabalho de cruzamento de saberes, apontando para a criação de intervenções em rede. Talvez a disponibilidade para escutar e acolher tal sofrimento seja um quesito fundamental para esta tarefa.

Bibliografia utilizada

  1. Calligaris, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses.Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
  2. Freud, S. Obras Completas.Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
  3. Lacan, Jacques.O Seminário livro III: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
  4. ____________. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  5. Roudinesco, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo:Companhia das Letras, 1994.

Notas:

  1. Ver em Obras Completas de S. Freud: “O inconsciente”.
  2. Para melhor compreensão de estes exemplos ver na bibliografia: “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”.
  3. Sobre a qual desenvolvo alguns trabalhos. Visite: www.at-circulacao.cjb.net

Autor

Luciano Vignochi – Graduado em psicologia pela UNISINOS (1991-1996); formado pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre (1998 – 2001). Fone: 3388-6177. E-mail:[email protected] Considerações a partir da aula de 25/10/02 no Curso de Capacitação aos Estagiários do Hospital Psiquiátrico São Pedro.

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