A prática do Acompanhante Terapêutico com pacientes psicóticos: uma abordagem clínica

RESUMO

O artigo visa discutir a prática do Acompanhante Terapêutico (AT) vinculada a pacientes com patologias crônicas que necessitam de suporte qualificado. Neste caso, especificamente, nos deteremos aos transtornos mentais que acarretam prejuízos importantes e levam a dependência e necessidade de suporte nas atividades de vida. Com isso, emergindo a tentativa de resgate da cidadania dos indivíduos com grave sofrimento psíquico.

VINHETA CLÍNICA

Escolhi um caso relacionado a uma paciente que acompanhei por muito tempo (sete anos), sendo esta diagnosticada como esquizofrênica paranóide (CID 10- F 20.0). A identificarei como I.

I. era uma mulher adulta na faixa etária dentre os 40 anos. Residia com sua mãe e a família do irmão mais velho na mesma residência. A casa era dividida entre a família do irmão e a paciente e sua mãe.

A paciente era formada em filosofia, foi casada e durante sua segunda formação acadêmica começou a apresentar os sintomas da doença mental. Entretanto, segundo familiares e amigos sempre foi uma pessoa um tanto “diferente e excêntrica”.

Com o agravamento dos sintomas e a realização de um aborto a pedido do até então esposo a paciente iniciou um processo de intensa desorganização psíquica, necessitando algumas internações psiquiátricas.

Por fim, abandonou o segundo curso que fazia em universidade federal e as crises culminaram em sua separação conjugal. Com essa situação pontual fez uma tentativa de suicídio com internação em clinica psiquiátrica e início de medicação contínua.

A partir desta nova fase em sua vida a paciente começou com acompanhamento psiquiátrico, porém como não estava sendo suficiente, já que permanecia muito ociosa, fumando continuamente e tomando inúmeros cafés ao dia, o que lhe ocasionava dificuldade para dormir e desatenção foi encaminhada para um grupo de Terapia Ocupacional (no qual eu participava primeiramente como estagiária e depois como TO), onde iniciou a prática de atividades artesanais e sociais com os demais pacientes.

I. recebia uma pensão de seu ex-marido, mas acabava consumindo seu dinheiro com suas medicações e sua única atividade de lazer era a participação no grupo.

Em decorrência dos agravos de comportamento com inadequação e algumas ameaças verbais a sua mãe, foi sugerido pela TO e o psiquiatra a participação de um AT, sendo nesta fase que entrei para a equipe e a acompanhei por sete anos duas vezes na semana.

Em um primeiro momento a paciente pareceu muito resistente, procurando me confrontar e testar a todo instante com comparações e agressões verbais ora veladas, ora explicitas.

Com o passar dos encontros, onde normalmente o “ponto de partida” acontecia em sua residência I. foi permitindo uma proximidade gradual.
Costumávamos organizar sua rotina em casa, seu mundo de certa forma era seu quarto, onde fumava, escrevia poemas e desenhava.

Como era extremamente desorganizada e isso lhe trazia prejuízos procurávamos organizar o ambiente, bem como saíamos para caminhadas e atividades de lazer para que pudesse se exercitar. Com o passar dos anos iniciou um processo de confecção de cartões, onde estruturava o material com pinturas.

Era uma tarefa muito interessante, onde saíamos para comprar os materiais e confeccioná-los para assim, I. trabalhar seus dotes artesanais e muito criativos.

Com o passar dos anos, acabou saindo do grupo de TO e começamos a nos dedicar a divulgação destes materiais e distribuição dos cartões em lojas com acordo de permuta. I. sentia-se valorizada e satisfeita com sua produção e certo lucro financeiro que revertia para cigarros e mais materiais para a produção.

Nos últimos anos que a acompanhei apresentava oscilações de humor com questões paranóides importantes, onde apresentava riscos, inclusive para sua mãe que era uma senhora idosa, e em vários momentos agia com conduta um tanto manipuladora, sendo comum passar informações com duplas mensagens para a paciente, o que gerava raiva, ansiedade e culpa em I. por ora concordar com sua mãe e ora sentir-se confusa e desejar matá-la literalmente.

Esses sintomas eram trabalhados comigo e com o psiquiatra e repercutiam com importante contra transferência em várias etapas de evolução do tratamento.

Em função de seu diagnóstico e a perseverarão de pensamentos destrutivos principalmente em relação à figura materna a paciente trocou de psiquiatra, retornando para um antigo psiquiatra que já havia lhe tratado anteriormente e tinha um vínculo familiar distante com sua mãe.

Com o andamento do novo tratamento o psiquiatra acreditava que o serviço de AT era desnecessário e sugeriu que I. abandonasse o acompanhamento. Como existia uma grande desorganização financeira familiar com freqüentes pendências judiciais que aumentavam consideravelmente o nível de estresse da paciente, foi necessário concluir nossos atendimentos com vários meses em atraso e não recebimento.

Depois, voltamos a nos reencontrar quando esta me avisou sobre o falecimento de sua mãe, onde acabei indo ao velório e ofereci o suporte apropriado para aquela situação. Desde este fato passaram-se três anos que não mais a acompanho.

DESENVOLVIMENTO

Em função de a paciente apresentar diagnóstico de uma patologia psiquiátrica grave vou iniciar com um breve relato sobre esquizofrenia do tipo paranóide baseado na exposição do CID 10, décima revisão-versão 2008.

“Os transtornos esquizofrênicos se caracterizam em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados. Usualmente mantém-se clara a consciência e a capacidade intelectual, embora certos déficits cognitivos possam evoluir no curso do tempo. Os fenômenos psicopatológicos mais importantes incluem o eco, imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante, idéias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, transtornos do pensamento e sintomas negativos. A evolução dos transtornos esquizofrênicos pode ser contínua, episódica com ocorrência de um déficit progressivo ou estável, ou comportar um ou vários episódios seguidos de uma remissão completa ou incompleta. Não se deve fazer um diagnóstico de esquizofrenia quando o quadro clínico comporta sintomas depressivos ou maníacos no primeiro plano, a menos que se possa estabelecer sem equívoco que a ocorrência dos sintomas esquizofrênicos fosse anterior à dos transtornos afetivos. Além disto, não se deve fazer um diagnóstico de esquizofrenia quando existe uma doença cerebral manifesta, intoxicação por droga ou abstinência de droga. Os transtornos que se assemelham à esquizofrenia, mas que ocorrem no curso de uma epilepsia ou de outra afecção cerebral, devem ser codificados em F06.2; os transtornos que se assemelham à esquizofrenia, mas que são induzidos por drogas psicoativas devem ser classificados em F10-F19 com quarto caractere comum”.

No caso da paciente em questão seu diagnóstico era F20.0 Esquizofrenia Paranóide, sendo que se caracteriza essencialmente pela presença de idéias delirantes relativamente estáveis, frequentemente de perseguição, em geral acompanhadas de perturbações da percepção.

A realidade familiar-social-financeira desta paciente muito se assemelha à maioria dos portadores de doença mental, onde evidenciamos algumas dificuldades no processo de tratamento, as quais se relacionavam com o impacto da doença e a fragilidade do paciente e sua família frente ao processo de adoecimento.

Além disso, I. apresentava dificuldades relacionadas aos aspectos sociais que acabavam a colocando na condição de excluída das esferas de inter-relacionamentos.

Outros problemas somavam-se a esses, os quais constituíam obstáculos importantes à manutenção da qualidade de vida como a fragilidade em suas relações familiares e carência financeira para seguir seu tratamento medicamentoso, embora conseguisse uma das medicações via Ministério Público.

Assim, após uma breve noção do quadro clínico e da história da doença, o artigo procura relacionar o Acompanhamento Terapêutico (AT) com a prática em atendimentos a pacientes psiquiátricos, onde emerge a tentativa de resgate da cidadania dos indivíduos com grave sofrimento psíquico.

O AT busca a socialização de um sujeito que muitas vezes foi marginalizado não apenas pela sociedade, mas inclusive em seu meio familiar, colocando-se ao lado deste na tentativa de interação e anti-segregação.

Porém, precisamos falar sobre o passado e a história do AT para que só assim possamos relacionar a prática com a teoria contextualizada no momento histórico.

HISTÓRIA DO ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO

O trabalho do acompanhante terapêutico (AT) surgiu na Argentina, no final da década de 1960, como uma necessidade clínica para pacientes cujas terapêuticas clássicas fracassavam.

Inicialmente o AT foi chamado de “amigo qualificado”, mas o termo foi modificado pelo conteúdo pouco profissional. O AT não é um amigo, ainda que possa estabelecer vínculos afetivos intensos com o paciente, mas sim, um agente terapêutico que realiza tarefas e é remunerado para isto.

Com o passar do tempo, também surgiram os movimentos antimanicomiais e a antipsiquiatria difundidos pela Europa entre as décadas de 1950 e 1960 e é nesse momento que surgem na Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos as “comunidades terapêuticas”, cuja proposta era buscar novas formas de relação com a loucura, criando locais de acolhimento.

No Brasil, no final da década de 1960, surgem as primeiras comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Nestes locais, o AT começa a ser exercido por universitários, denominados de “auxiliares psiquiátricos” que permaneciam dentro instituição e participavam do cotidiano dos pacientes realizando tarefas que consistiam em atividades de lazer como jogos, realização de festas, atividades diárias, entre outros.

Na década de 1970, com o regime militar que privilegiava a internação asilar em detrimento de outros tipos de tratamento da loucura, ocorre o declínio das comunidades terapêuticas, fazendo com que os auxiliares psiquiátricos percam sua funcionalidade e sua área de trabalho.

O AT definiu sua área de atuação principalmente com pacientes psicóticos, numa busca por reintegrá-los na sociedade e no vínculo familiar, através dos pressupostos psicanalíticos, exercendo muitas vezes a função de confidente e ego-auxiliar/superego.

Suas características pessoais também foram estudadas e se observou que essas condições incluem vocação para a assistência, alto grau de comprometimento, interesse por trabalhar em equipe, maturidade, autonomia, capacidade de empatia e vínculo, flexibilidade em estabelecer limites fortes, capacidade de aliar a teoria com a prática, além de ausência de preconceitos e estereótipos. (Berger, Morettin & Neto, 1991; Ibrahim, 1991; Mauer & Resnizky, 1987; Porto & Sereno, 1991 In: Londero e Pacheco, 2006).

De acordo com Estellita-Lins, Oliveira e Coutinho (2006), o acompanhamento terapêutico no Brasil pode ser considerado um caminho particular, embora se origine da teoria comum a todas as iniciativas de suporte e intervenção comunitários (com psicóticos ou não), e que se fortaleceu na segunda metade do século XX.

Esta modalidade procurou se distanciar do modelo do consultório, visando acompanhar o sofrimento e compartilhar a experiência da loucura, psicose, angústia e estranhamento.

O AT poderia ser contextualizado na reforma psiquiátrica como uma modalidade de intervenção em saúde mental baseada em cuidados domiciliares, embora alguns o situem entre uma modalidade psicoterápica, chegando à incorporação de um instrumental psicanalítico que prescinde do setting convencional.

Assim, o que podemos avaliar como mais importante é a forma de lidar com o sofrimento que se manifesta, sendo que a intervenção do AT busca encontrar a singularidade do sujeito na rua e também em seu lar.

A intervenção nestes espaços cria possibilidades substitutivas à internação ou à “prisão” domiciliar e, o deslocamento do espaço terapêutico consiste em permitir ao paciente sentir-se novamente integrado ao mundo social.

O PAPEL DO AT

Desta forma, Mauer e Resnizky (1987), discutem o papel do AT e sua trajetória ao longo da história, observando que o trabalho do acompanhante terapêutico surgiu como uma necessidade clínica em relação a pacientes com os quais as abordagens terapêuticas clássicas fracassavam, observando que sua função era basicamente assistencial.

Assim, a tarefa do AT não pode acontecer de maneira isolada do restante dos atendimentos, pelo contrário, deve estar presente dentro da equipe, pois o acompanhante terapêutico assiste o paciente em crise e as funções que lhe cabem são: 1) conter o paciente; 2) oferecer-se como modelo de identificação; 3) trabalhar em um nível dramático-vivencial e não interpretativo; 4) emprestar o “ego”; 5) perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente; 6) informar sobre o mundo objetivo do paciente; 7) representar o terapeuta; 8) atuar como agente ressocializador; e 9) servir como catalisador das relações familiares.

A prática do AT está relacionada à construção juntamente com o paciente em cada encontro. O AT se desfaz do setting analítico e reconstrói outro espaço juntamente com o paciente. Muitas vezes, o tempo é da patologia, dos sintomas, dos prejuízos que estes trazem e o sujeito passa a ser um objeto passivo com pouca oportunidade de participar de sua doença.

A própria internação hospitalar/psiquiátrica torna o indivíduo um ser absorto a espera de um diagnóstico com tratamento adequado e até mesmo na espera do desejo do outro.

Por isso, muitas vezes o AT deve ter um plano com algumas metas pré-definidas que possam ser construídas com o pacientes e suas possibilidades. (Rebello, 2006).

Por isso, avalio que o AT tem uma função ativa e essencial nesse processo, um agente no tratamento da psicose e neste caso especificamente, em um cenário-setting deslocado para o contexto da rua, onde tudo pode acontecer, já que estamos lidando com um sujeito com dificuldades peculiares da sua doença.

Em função disso, Guerra e Milagres (2005), destacam uma importante contribuição de Freud (1911), sobre o estudo da psicose, onde relatava a incapacidade de transferência desses pacientes, sua conseqüente inacessibilidade aos esforços terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma hipercatexia do seu próprio ego, e o resultado final de completa apatia o que impossibilitaria uma abordagem clínica.

O psicótico teria uma dificuldade de estabelecer vínculos com o outro, superinvestindo em si mesmo, o que inviabilizaria a instalação da transferência. E o delírio seria, ao contrário, uma forma de a libido novamente ligar-se aos objetos, seria uma tentativa de cura.

Tal pontuação de Freud abre, de certa forma, a possibilidade da existência da transferência em certos casos de psicose.

Acredito que a “finalização” com estudo de Freud sobre as psicoses faz-nos pensar que cada paciente tem a sua história e suas características individuais que podem, e muito, surpreender todos os profissionais que fazem parte deste processo.

CONCLUSÃO

Analisando o contexto histórico em que o AT foi criado, percebemos que sua base teórica fundamental tem sido a psicanálise, principalmente naquilo que se refere à etiologia das patologias, em especial, daquelas vinculadas às psicoses.

O AT tem uma representação marcante nesse processo atuando de maneira ativa para reconstrução da história de vida do sujeito, bem como participando na construção de uma nova inserção na sociedade.

No caso, do paciente psicótico, o AT pode servir de mediador das relações desse indivíduo com o mundo, reorganizando os vínculos familiares, sociais e de sua auto-estima.

O acompanhante terapêutico pode ser caracterizado por alguém que suporta a insegurança da rua e a psicose com coragem na busca de um caminho possível, sempre tendo presente os fatores de desigualdade e exclusão, ajudando na construção de uma nova possibilidade, de uma nova chance, de uma nova tentativa quando muitos, e nesses muitos incluímos a família, já desistiram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde; OMS; décima revisão-versão 2008.

Estellita-Lins, C.; Oliveira, V.; Coutinho M.F. (2006). Clínica ampliada em saúde mental: cuidar e suposição de saber no acompanhamento terapêutico. Ciência & saúde coletiva vol.14 no. 1 Rio de Janeiro Jan./Fev. 2009.

Guerra, A.; Milagres, A.; (2005). Com quantos paus se faz um acompanhamento terapêutico? Contribuição da psicanálise a essa clinica em construção. Estilos da Clínica, vol. 10; no. 19. SP Dez.2005.

Londero, I.; Pacheco, J. (2006). Por que encaminhar ao acompanhante terapêutico? Uma discussão considerando a perspectiva de psicólogos e psiquiatras. Psicologia em estudo, vol. 11; n.2; pp: 259-267. Universidade estadual de Maringá. SP.

Mauer, S. K.; Resnizky, S. (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos: Manual Introdutório a Uma Estratégia Clínica. SP: Editora Papirus.

Rebello, L. (2006). Ampliação de sentidos: um paralelo entre psicologia hospitalar e o acompanhamento terapêutico. Textos, Texturas e Tessituras no Acompanhamento Terapêutico. SP: Instituto A Casa. Editora Hucitec.

Autora

Claudine von Saltiél – Psicóloga e Terapeuta Ocupacional. Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. E-mail: [email protected]

Supervisão em AT.

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