A transferência e a contratransferência como importantes ferramentas na prática de AT

Autora: Camila Disconzi Genro – Estudante de graduação do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Formação no “Curso de Capacitação em Acompanhamento Terapêutico” da CTDW. Fone: (51) 9935-8012. E-mail: [email protected]

 

RESUMO

O presente trabalho visa à análise da relevância dos fenômenos de transferência e contratransferência presentes na intervenção do acompanhamento terapêutico (AT).

Os processos psicológicos presentes nesta modalidade de tratamento são identificados e analisados sob a ótica psicanalítica. Bem como, características das freqüentes demandas contidas no contexto diversificado no qual se encontra o profissional acompanhante terapêutico são abordadas.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico, Transferência, Contratransferência.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho foca a atuação do acompanhante terapêutico, enquanto promotor de saúde psíquica, diante dos fenômenos psicológicos emergidos durante sua prática profissional.

A relação entre este curioso contexto de tratamento, que extrapola as paredes do setting terapêutico tradicional, e os processos inconscientes de paciente e terapeuta/at é analisada mais profundamente. Sendo assim, abarcam-se processos psíquicos fundamentais ao entendimento psicanalítico da prática de acompanhamento terapêutico.

 

O dia-a-dia, o contexto familiar, social, o lazer vistos de dentro da realidade cotidiana vivenciada nos atendimentos sinalizarão os caminhos a serem percorridos, os objetivos a serem traçados e o término do trabalho, constituindo um impulso para a reconstrução de uma autonomia de base e para a plena utilização dos recursos e potenciais disponíveis no cotidiano do paciente. Trata-se de reabilitação enquanto reconstrução da existência. Esta reconstrução solicita rotinas e ritmos. As necessidades psicossociais específicas dos pacientes em reabilitação determinam esta reconstrução, como a capacidade de lidar com problemas cotidianos, desenvolvimento de auto-estima, habilidades sociais, desenvolvimento de autonomia e prática de cidadania (ESTELLITA-LINS, C.; OLIVEIRA, V. M.; COUTINHO, M. F., 2009, p. 5)

 

Apesar do propósito deste artigo, é presente a noção de que o conhecimento da atuação do acompanhante terapêutico e dos fenômenos psicológicos por ele vivenciados é substancialmente enriquecido pela vivência prática destes profissionais.

Desta forma, torna-se importante não negligenciar estes e outros processos de conhecimento inerentes à prática do acompanhante terapêutico.

Diante das exigências pelas quais o acompanhante terapêutico se depara em seu contexto profissional, torna-se de grande relevância o enfoque que busca salientar o desgaste psicológico que o mesmo está sendo submetido.

O que torna essencial a preocupação em preservar a saúde psíquica do at para que, assim, mantenha a integridade e a qualidade nos atendimentos aos seus pacientes.

O acompanhante terapêutico diante dos fenômenos de transferência e contratransferência

A atuação do acompanhante terapêutico (at), iniciada com o objetivo de “antagonizar” o modelo psiquiátrico, vem se inserindo cada vez mais nos diversos tratamentos contemporâneos que focam a saúde mental dos indivíduos. Diante da complexidade do ser humano e as exigências do mundo globalizado a prática de acompanhamento terapêutico (AT) acrescenta uma proposta menos “ortodoxa e/ou conservadora” a quem busca romper com o rótulo da loucura e não se contentar em estar à margem da sociedade.

Sendo assim, o profissional at assume, em parte, esta responsabilidade para com o paciente de inseri-lo enquanto sujeito de seu desejo. O acompanhante terapêutico, ao se apropriar desta posição, promove no indivíduo a internalização deste novo modo de ser e ver a si próprio e o mundo. “É marcante para um acompanhante operar na produção de uma (re)colocação do sujeito em funcionamento com a realidade urbana, de encontrar espaços onde a cidade incorpora o que ele tem.” (Porto; Sereno, 1991, p. 23). Desta forma, o presente artigo busca, utilizando o viés do profissional at, entender os fenômenos de transferência e contratransferência que abarcam o acompanhante terapêutico em sua prática. Sendo o primeiro conceito – Transferência, originalmente, abordado mais profundamente que o último.

 

Designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos incoscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade acentuada. (Laplanche, J.; Pontalis, J.-B., 1986, p. 668-669).

O at se vê muitas vezes, diante de situações (demandas de pacientes, por exemplo) que lhe exigem equilíbrio emocional/psicológico. Aspecto que muitas vezes é ignorado, porém muito importante. Cada vez mais se torna necessário o desenvolvimento de prevenções e/ou melhor preparo/investimento na saúde psíquica do at visando também o bem estar do paciente, já que o self do profissional acaba envolvido nesse processo.

Assim, para Laplanche e Pontalis, a contratransferência é o “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais particularmente à transferência deste” (Laplanche, J.; Pontalis, J.-B., 1986, p. 146).

 

Pelo fato de o acompanhante encontrar-se muito mais exposto, o acompanhamento corre o risco de ser mais perturbado pela contratransferência. Esta pode tanto gerar uma identificação do acompanhante terapêutico com o paciente, como impedir que o paciente identifique-se com o acompanhante terapêutico. (…) A transferência, no trabalho do acompanhante terapêutico, não é interpretada, mas sim manejada, ou seja, é utilizada para um certo fim. Este fim é o cumprimento da tarefa característica do acompanhamento terapêutico. (Barretto, K. D.; Cenamo, A. C. V.; Silva, A. L. B. P., 1991, p. 189).

Por ser a contratransferência um recurso útil ao processo terapêutico, mais uma vez percebemos a importância do reconhecimento e processamento da forte carga emocional emergente por parte da dupla – paciente e at.

É importante lembrar que enquanto a transferência estava consagrada, a contratransferência permaneceu no anonimato, pelo menos até o ano de 1947 quando Winnicott apresentou “O Ódio na Contratransferência” e, mais tarde, além de outros autores, Margareth Little apresentou “A Reação Total do Analista às Necessidades de seu Paciente” suscitando a crítica de Klein que apontou que Little precisava de mais análise, sendo interferida por Winnicott, que retrucou dizendo que todos necessitam de mais terapia. Estes exemplos fazem parte do caminho percorrido pelo conceito da contratransferência, que nos dias atuais, são comumente retomados. Inclusive, hoje, Heimann e Racker são os autores mais referenciados, pois aproximam a transferência e a contratransferência como fenômenos complementares.  Heimann diz que a contratransferência é uma criação do paciente e sugere que ela se dá devido à transformação direta da transferência. E Racker conceitua a identificação do analista com o id e o ego do analisado como sendo, identificação concordante e identificação complementar respectivamente (THOMAZ, 1993).

Thomaz (1993), além de fazer menção aos fatos históricos dos conceitos, fala dos mesmos como sendo desdobramentos da memória, ou seja, “impossibilitado de exercer sua memória, o indivíduo lembra-se, transferencialmente falando, ou obriga o outro a lembrar, desta feita contratransferencialmente.” São postos a serviço do resgate da memória ou da produção de outra que será posta em seu lugar, o conhecimento, a associação livre e atenção flutuante. Mas o que há de novo na teoria é a tese segundo a qual a memória está presente várias vezes e ressalta a importância do componente afetivo no processo rememorativo. Conveniente, também, é lembrar que é no espaço das relações transferênciais/contratransferênciais, na relação psicanalítica, que se dá reconstrução das memórias. O equilíbrio entre o que é transferido e a contratransferência pode se chamar de terceira memória, feita pelo lado produtor de contratransferência.

Tais fenômenos elucidam os efeitos psicológicos desenvolvidos por acompanhantes terapêuticos, de certa forma eles devolvem ao profissional o “caráter humano” que muitas vezes é ignorado nesta profissão.

O texto “Transferência e Contratransferência” menciona os termos par antitético e unidade funcional a fim de mostrar um olhar unificado dos conceitos de transferência e contratransferência, assim como, traz memórias dos antigos conceitos.

 

[…] pode ser interessante raciocinar nestes termos, investigando a pariedade antitética desde o momento em que os termos da equação podem estar radicalmente opostos até onde se confundem de maneira a parecerem idênticos. […] O próprio Freud pode ter chegado ao conceito de transferência ou, se preferirem, ter tido o insight sobre o fenômeno transferencial justamente a partir de um estalo contratransferencial, ou seja, a contrapartida, no observador daquele. (p. 89).

O paciente, que usufrui da modalidade de tratamento de AT, reconhece nestes profissionais um objeto identificatório, principalmente quando seu desenvolvimento é atravessado pela adolescência.

 

O adolescente é para o terapeuta, desde que respeitada a evolução natural da vida, sempre um mobilizador do passado, de uma etapa vivida da qual existe um registro. Este dado tem uma correspondência contratransferencial peculiar no interjogo identificatório que se estabelece. O encontro transferencial-contratransferencial não se faz apenas sobre os registros e seus desdobramentos em memórias produzidas, como acontece, por exemplo, em psicanálise de adultos, mas entre um registro que está sendo contratransferencialmente recuperado e outro que se está processando naquele momento, se se considerar que a adolescência é uma etapa de grande riqueza nesse sentido. (Thomaz, 1993, p. 100).

 

Neste contexto, é o indivíduo que necessita se ressituar diante dos fatores reais, imaginários e simbólicos que caracterizam sua posição em relação a si mesmo e aos outros (Outro), processo atravessado pelas alterações de suas relações e de seu lugar social.

Percebe-se então, um sujeito alienado ao próprio desejo, pois sempre teve a mãe que lhe antecipasse os significantes da demanda. O adolescente, na posição de sujeito e não mais objeto do fantasma materno, precisa ter superado o tempo da “separação”.

O jovem precisa romper com o laço amoroso que lhe ata e lhe identifica aos objetos originários.

Os três elementos que compõem a “crise” na relação com o Outro presente nesta operação psíquica são: a notificação pelo discurso de que há um gozo possível fora do laço familiar; a experiência de uma nova erotização do corpo na relação com o Outro sexo; e a possibilidade de novas inscrições simbólicas, a partir das possibilidades de inserção deste sujeito em grupos não ordenados pela lógica das relações primárias.

O trabalho psíquico de alienação/separação retorna na reapropriação destas pulsões que durante a infância sustentaram o sujeito através da voz e do olhar da mãe.

O exercício da função paterna, próprio ao Édipo e agora assumido pelo at, fornece as condições de separação na medida em que aponta para um terceiro elemento (um “ele”) externo à díade mãe-filho. Neste sentido, é um dispositivo do discurso, do Outro, que permite ao sujeito representar-se no exercício pulsional sem precisar situar-se, sempre e necessariamente, no pólo do objeto.

Percebe-se a intensa demanda na qual o at deve estar preparado e, assim, torna-se capaz de promover a saúde psíquica de seu paciente, bem como preservar a sua durante sua prática profissional.

 

CONCLUSÃO

O presente artigo possibilitou uma maior intimidade com o tema abordado; mostrando a relevância do autoconhecimento do at, bem como do terapeuta, além da necessidade da supervisão, troca de informações e muitas vezes a busca de tratamento psicoterapêutico possibilitam a esse profissional preservar sua capacidade terapêutica e de sobreviver ao intenso sofrimento despertado em ambos – paciente e at.

A transferência e a contratransferência puderam ser abordadas sob um olhar diversificado diante da riqueza presente na atuação do acompanhamento terapêutico.

Ademais, torna-se importante ressaltar a importância dos fenômenos mencionados na construção do vínculo terapêutico entre at e paciente. Sendo este, um requisito essencial no processo de tratamento psíquico.

 

REFERÊNCIAS

  • Barretto, K. D.; Cenamo, A. C. V.; Silva, A. L. B. P. O setting e as funções no acompanhamento terapêutico. In: Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia, A CASA. (Org.) A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991. p. 187-207.
  • ESTELLITA-LINS, C.; OLIVEIRA, V. M.; COUTINHO, M. F. Clínica ampliada em saúde mental: cuidar e suposição de saber no acompanhamento terapêutico. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 14,  n. 1, fev.  2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000100026&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em  11  ago.  2010.
  • Laplanche, J.; Pontalis, J.-B.Vocabulário de Psicanálise. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
  • PORTO, M.; SERENO, D. Introdução à clínica do acompanhamento terapêutico: sobre acompanhamento terapêutico. In: Equipe de acompanhantes terapêuticos do hospital-dia, A CASA. (Org.) A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991. p. 15-40.
  • THOMAZ, T. O. Transferência e contratransferência. In: R. Graña. Técnica Psicoterápica na Adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 97-102.

 

Artigo publicado no “Site AT” em 30/12/2011.

Supervisão em AT.

 

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